Tem-se verificado alguma resistência aos antibióticos. Existem novas bactérias ou aprenderam a sobreviver ao ataque dos antibióticos?
Elas aprenderam porque são muito mais espertas do que nós. Para fazer uma analogia muito óbvia: uma bactéria vive 20 minutos, logo é este o tempo que tem para aprender, e nós temos uma vida inteira. As bactérias são as mesmas, mas nós somos diferentes, mesmo pertencendo à mesma espécie. As bactérias também pertencem à mesma espécie, mas vêm de ambientes diferentes, são sujeitas a stresses diferentes, logo têm comportamentos diferentes. É o que acontece com as bactérias hospitalares. Como estão sujeitas ao stress que lhes é imposto por permanente desinfecção e utilização de antibióticos, leva a que sejam as superbugs (superbactérias) e no hospital temos bactérias que resistem aos antibióticos, o que torna difícil o tratamento. Criámos o primeiro antibiótico há um século, o que revolucionou o mundo. Morríamos aos 40 anos e hoje a esperança média de vida quase que duplicou. Isto deve- -se aos antibióticos, mas também a medidas de higiene. Quando se descobriram os antibióticos ficou-se tranquilo, porque passou a existir uma arma para matar a ‘bicharada’.
Depois dessa descoberta houve algum ‘desleixo’ na investigação de novos antibióticos?
Não será desleixo, mas houve este diferencial… Existe uma grande preocupação da parte da indústria farmacêutica em encontrar medicamentos para fazer face a doenças como o HIV, cancro ou outras mais mortais… E essas doenças são estanques. Não quer dizer que não seja preciso descobrir novas terapêuticas. O que aconteceu foi que se descobriram os primeiros antibióticos e o pessoal ficou todo contente. Nos primeiros anos houve um grande investimento da indústria farmacêutica para novas moléculas e de repente parou. Então há um hiato de muitos anos em que não surgiram novas drogas antibióticas, mas as bactérias continuaram a ser sujeitas ao estímulo. Elas querem o mesmo que nós: sobreviver, não lhes podemos levar a mal. Nós é que lhes vamos impondo stress e elas vão respondendo e encontram defesas para as moléculas que lhes estamos a "oferecer" para as tentar matar. Elas fazem isto de um dia para o outro. E nós de um dia para o outro não descobrimos uma nova molécula. Este desinvestimento da indústria farmacêutica esqueceu-se de pensar que as bactérias são inteligentes.
Qual a solução para terminar com a multi-resistência?
Educar na utilização correcta dos antibióticos, educar a sociedade e educar os prescritores, que são os médicos. Eles fazem o melhor que podem, com as ferramentas que têm, mas também têm de ser educados. Toda a sociedade tem de ser educada para a utilização adequada de antibióticos . Também é preciso descobrir novas moléculas para poder combater os organismos que já estão resistentes a todas as moléculas. Julgo que o mais difícil será educar, embora saibamos que demora 20 anos a encontrar novas moléculas e não podemos ficar à espera este tempo todo. Infelizmente, os antibióticos são muito mal usados. Ainda há muito esta cultura: estou constipada tomo um antibiótico. A culpa não é de ninguém, é de todos. Estou a tirar o curso de medicina, porque tenho interesse nesta parte dos antibióticos e pensei que a melhor forma para encontrar soluções é conhecer todos os lados. Gostava muito de poder conseguir um instrumento de pesquisa muito rápido para identificar os micro-organismos. Agora, prescrevemos um antibiótico na suposição de se tratar de uma determinada bactéria. Para saber, temos de fazer as análises hoje e obter rapidamente o resultado. O que acontece actualmente é que só se sabe daqui a três dias ou até uma semana depois e não podemos deixar a pessoa sem medicação. Gostava muito que houvesse um aparelho que desse esta resposta no imediato. Esse é um dos meus objectivos enquanto investigadora. Além da doença celíaca que quero muito estudar, queria ter esta segunda linha de investigação dedicada à resistência a antibióticos no diagnóstico.
“Nos primeiros anos houve um grande investimento da indústria farmacêutica para novas moléculas e de repente parou. Então há um hiato de muitos anos em que não surgiram novas drogas antibióticas, mas as bactérias continuaram a ser sujeitas ao estímulo. Elas querem o mesmo que nós: sobreviver, não lhes podemos levar a mal”
A introdução de antibióticos nos alimentos contribuiu para essa multi-resistência?
Claro que sim. Neste momento, é mais fácil controlar a resistência a antibióticos pela via veterinária do que pela via da saúde humana. Na veterinária, os antibióticos são usados como factores de crescimento e isso tem implicações: fica no alimento que comemos e, por isso, podemos adquirir resistências a antibióticos por essa via. Depois há disseminação no ambiente. As bactérias são inteligentíssimas, porque não só adquirem capacidade de resistirem a antibióticos, como transmitem esse conhecimento ao grupo. [LER_MAIS] Elas têm uma característica genética que não temos – não partilhamos os nossos cromossomas com ninguém – elas partilham os elementos genéticos móveis (pequenas poções de cromossoma) umas com as outras. Quando morrem rebenta a célula e ficam esses pedacinhos de genes móveis, que as outras bactérias à volta recolhem e retêm a informação. Assim vão perpetuando esta resistência. Esta componente da veterinária é muito relevante, porque ingerimos isso tudo e fica no nosso intestino, onde temos a segunda maior quantidade de bactérias – a primeira é na pele –. Depois precisamos de um antibiótico e já lá está a resistência e o medicamento não funciona tão bem. Quando a comunidade científica conseguiu dar provas à Europa de que isto era um problema, rapidamente criaram-se normas para impor ao sector agro-pecuário a redução dos antibióticos na indústria alimentar e conseguiu-se diminuir a quantidade de antibióticos na veterinária. Na saúde humana é mais difícil, porque não vamos estar com um doente com uma suspeita de infecção e não fazer nada, porque não podemos usar antibiótico. O que tem de se fazer é usá-los de uma forma mais racional. Já vai havendo mudanças, mas é preciso mais. São precisas mais medidas de controlo de infecção e de higienização. O aparecimento da gripe das aves foi 'maravilhoso', porque conseguimos controlar uma série de organismos patogénicos, porque as pessoas estavam muito atentas ao problema. É preciso perceber que temos de estar sempre despertos.
No mercado existem cada vez mais produtos anti-bacterianos: sabonetes, detergentes… O uso contínuo deste tipo de produtos pode diminuir a resistência do corpo humano às bactérias?
Pode. Quando falei da higienização é de forma equilibrada. Assistimos a uma higiene exagerada e tem-se verificado um número crescente de pessoas com alergias. Isso deve-se exactamente a isso: como nos higienizamos de mais, não educamos o nosso sistema imunitário a reagir contra agressões externas e depois começa a reagir contra si próprio ou contra coisas esquisitas, porque nunca contactou com elas na idade certa. Este excesso de higiene pode contribuir para o mesmo, o que torna esta problemática num desafio ainda maior, que é encontrar este equilíbrio. Não podemos chegar a um hospital e dizer que se tem de esterilizar tudo porque é o ideal. Se calhar, o ideal é haver sempre um basal de micro-organismos, porque nós somos mais bactérias do que células no nosso corpo. Só na pele tenho mais células bacterianas do que células minhas. Ao lavar as mãos com o sabonete anti-bacteriano está-se a matar as bactérias que são boas. Isso pode levar as que são menos boas a ter mais hipóteses de sobreviver e causar infecção. Esta pressão desinfectante leva também a que mais facilmente as bactérias encontrem estratégias para se defender. Quando levam com o antibiótico vão buscar a informação que lhes permite resistir. No hospital há que lavar as mãos entre doentes, devemos ter o sabonete anti-bacteriano, porque é um local que tem muita especificidade e é necessário cuidados redobrados. No dia-a-dia não é necessário, nem saudável.
As alterações climáticas têm influência no aparecimento de novos micróbios?
Não iria tão longe. Na investigação vamos percebendo que estes patogénicos convencionais não eram assim tão convencionais. Houve outros micro-organismos que não eram encarados como patogénicos que agora podem sê-lo. O que nos podem trazer as alterações climáticas são as zoonoses. Por exemplo, a malária pode chegar a Portugal, porque o mosquito que está em África pode chegar ao continente. A geografia das doenças infecciosas é que se pode alterar e será possível o seu desenvolvimento mais rápido.