Não é apenas teatro, não é apenas música, não é apenas poesia, não é apenas palavra. O Estado de Excepção, espectáculo que o Leirena Teatro estreou nas ruas do Bairro dos Capuchos, em Leiria, no dia 5, à falta de melhor caracterização, é, nas palavras do poeta Alexandre O’Neil, “uma coisa em forma de assim”.
Já acontece desde Maio, em espaços privados, e manter- se-á até Julho, nos públicos. É a resposta do colectivo artístico às restrições do desconfinamento da pandemia de Covid-19. Os palcos são, necessariamente os espaços ao ar livre; as varandas, janelas e jardins.
Antes de se estrear na cidade, pela manhã, o grupo de teatro de Leiria levou o alinhamento previsto para a Rua Cidade de Tokushima, ao exame e crivo de um júri muito habituado a apreciar expressões artísticas.
Os utentes do Centro Social Paroquial de Regueira de Pontes foram os eleitos para fazer o escrutínio. A apresentação começou com um humorado olá e um número musical, acompanhado pelas palmas dos idosos para as escolhas do Leirena, nas várias expressões de artes de palco.
No capítulo da música, os artistas escolheram três canções saídas da inspiração de Zeca Afonso – Teresa Torga, Venham Mais Cinco e Chamateia – e Gota d’água, tema do cancioneiro popular, tornada “ainda mais” famosa na voz de António Zambujo.
Houve também uma selecção de poesia de Sophia de Mello Breyner, de Miguel Torga e de Bocage.
“Tivemos ainda a História Antiga, de Torga, e a história dos três irmãos que descobrem um tesouro, de Eça de Queirós”, conta Frédéric da Cruz Pires, o director artístico.
O “carro de combate” do Leirena chegou cedo a Regueira de Pontes, pois era preciso descarregar o material, montar o som, testar e ensaiar tudo. Madrugadores, através das janelas, alguns idosos liam as grandes letras brancas, em fundo vermelho, inscritas na lateral da carrinha do grupo: “Es-ta-do de Ex-ceP-ção”.
Com um P bem sonoro e articulado, como lhes foi ensinado nos bancos e carteiras “de pau”, com buraco para o inexistente tinteiro, da escola primária.
Passava pouco das 11 horas, quando o “júri” se dirigiu para as cadeiras no terraço lateral do edifício.
Calmos e de lentos passos, os idosos não deixavam transparecer a emoção e a vontade de participar naquele momento de animação e cultura.
“Vamos devagar porque não temos pressa”, diziam, partilhando piadas, que só eles entendem. “Quem está de fora… parte pedra. Ah! Pois é!”
Pouco depois, separados pela distância de segurança regulamentar e de máscaras prontas, mas sem as pancadinhas de Moliére, a “coisa em forma de assim” teve início.
O Leirena apresentou a dramatização dos textos de Torga e Eça, num “palco” com dois níveis: no chão, em cima de um estrado e mais próximos do público, os menestréis e o trovador Diogo; em cima do tejadilho da carrinha do colectivo Frédéric, que, a esta hora, já era, para os presentes, apenas “o Fréd”, encarna o papel do rei, “feio, barrigudo e careca”, que, há dois mil anos, mandou matar todos os recém-nascidos da Judeia, para que a profecia de um rei mais poderoso do que outro até então, não se concretizasse.
O conto é de Miguel Torga e a inspiração é o Evangelho do Novo Testamento.
“Alguém sabe como se chamava este rei da Palestina?” Os utentes, envergonhados, vão dizendo que não têm bem a certeza. Do lado de fora, no parque de estacionamento, entre o grupo de quem assiste da rua ouve-se: “é o Salomão!” E recebe a resposta mesmo ao lado: “Quando Jesus apareceu, esse já tinha morrido há mil anos! É o Herodes!”
Antes da pandemia, “o Fréd”, provavelmente, saltitaria pelo meio dos espectadores e contar-lhes-ia, ao ouvido, pequenos segredos e piadas. Agora, o contacto físico não acontece. Foi substituído pelo “contacto de mentes”… à distância regulamentar de segurança.
No meio da improvisada plateia, a D. Júlia observava aqueles rapazes subir e descer do tejadilho da carrinha, cantar e declamar. Não estava à espera que perguntassem se havia alguma “Júlia” no público.
Os outros idosos apontaram para ela e ela lá levantou a mão a dizer “presente!”. E foi um presente que recebeu, vindo do palco. Os actores dedicaram-lhe o poema É Urgente o Amor, de Eugénio de Andrade: “É urgente o amor./É urgente um barco no mar./É urgente destruir certas palavras, ódio, solidão e crueldade, alguns lamentos, muitas espadas./É urgente inventar alegria, multiplicar os beijos, as searas”.
Júlia, ruborizada, sorria. Já o “doutor Orlando”, a quem foi dirigido um escrito de Torga, deu a volta ao texto e aproveitou para, também ele, declamar uns versos. Missão cumprida.
Com o espectáculo aprovado, o Leirena transladou-se, para a cidade.
Ao lusco-fusco e mais uma vez sem as pancadinhas de Moliére, as janelas e varandas do Bairro dos Capuchos transfiguraram-se em camarotes, onde os moradores e quem passava, nunca em grupos maiores de 20 pessoas como manda a lei, puderam, também, entrar no Estado de Excepção.
Participação de grupos que ficaram sem trabalho O Estado de Excepção era para ter saído para as ruas em Abril, porém, a segurança pública ditou que apenas, em Maio, houvesse autorização para apresentações em espaços privados fechados, de lares e de IPSS.
A verba que iria ser utilizada para o Novos Ventos, festival de teatro comunitário anual do Leirena, realizado no concelho de Leiria, foi canalizada para esta iniciativa que visita as seis freguesias que iriam participar no certame de artes de palco: União de Freguesias de Leiria, Pousos, Barreira e Cortes, Monte Real e Carvide, Marrazes e Barosa, Arrabal, Bidoeira de Cima e Santa Eufémia e Boa Vista.
“No início do confinamento, estava a acontecer tanta coisa online e o Leirena até participou, mas sentimos que não era suficiente e avançámos para o Estado de Excepção. Nem toda a gente tem internet ou redes sociais e era urgente levar-lhes a cultura”, diz Frédéric da Cruz Pires.
A iniciativa conta com a colaboração de estruturas artísticas de teatro e artes performativas de municípios que fazem parte da Rede Cultura 2027, que está a preparar e a promover a candidatura de Leiria a Capital Europeia da Cultura em 2027.
“Lançámos uma inscrição aberta a estruturas artísticas que tivessem visto os seus projectos e espectáculos cancelados. Temos tido grupos de Leiria, de Torres Vedras, de Tomar e até da Chamusca.”
Do Estado de Excepção ao estado de piquenique
“No espectáculo desta sexta-feira, dia 12, em frente do Lar feminino de Santa Isabel, teremos dois bailarinos, Bruno Pardo e Marta Jardim, que pertencem à Companhia Olga Roriz, que vêm em nome próprio.
A Companhia de Teatro A Bolha, de Torres Vedras, também estará presente”, anuncia Frédéric da Cruz Pires. Nestes sábado e domingo, o Estado de Excepção continuará as apresentações em espaços públicos da cidade.
A programação é feita semana a semana, sempre com um olho no desenvolvimento nos números do contágio, não vá a situação evoluir negativamente e ser preciso cancelar tudo. Gato escaldado…
O próximo projecto do Leirena? Agarrar na experiência colhida com o Estado de Excepção e desafiar as Juntas de Freguesia a coorganizar piqueniques culturais.
“No território de cada freguesia do concelho há parques de merendas e parques verdes e a nossa proposta é guardar quatro apresentações para, num sábado ou domingo de Julho, convidarmos as pessoas a levarem a sua cesta de piquenique e mantinha e assistirem, na relva, a números que deambulem pelo espaço.”
A primeira apresentação aconteceu na Associação de Desenvolvimento e Bem Estar Social, na Barreira.
Do lado de fora, o Estado de Excepção. Do lado de dentro, separados por uma grande janela de vidro, os utentes.
“Correu tão bem, tão bem, que houve uma senhora que nos ofereceu 3,5 euros para irmos beber uma cerveja! Claro que não havia contacto físico e que visualmente foi difícil. Não se sente a comunicação, o toque e o afecto. Mas como ajudámos a quebrar a rotina e levámos alegria àqueles corações, foi fantástico”, recorda o director artístico.
É um espectáculo para os seniores, mas também para os funcionários e técnicos da instituição. Dedicam-se poemas; os de Bocage aos homens “mais marotos” e os de Sophia aos técnicos.
“Eles estiveram, desde Março, a cumprir a sua missão de ajudar e apoiar as pessoas nos lares.”
“Temos o músculo da adaptação bem trabalhado na nossa cabeça!”
Por estes dias, há uma pergunta que irrita solenemente o director artístico. “’Estão a reinventar-se?’ É uma pergunta estúpida! Nós e os nossos colegas desta e das outras áreas artísticas, sem apoio algum, andamos a ‘reinventar-nos’ todos os dias, todos os anos! Temos produções novas, temos [LER_MAIS]conceitos, linguagens, temas e estéticas novas! É sempre tudo novo. Apresentamos sempre projectos novos consoante o que estamos a viver. Isto não é um trabalho de escritório, onde passou a haver teletrabalho! Temos o músculo da adaptação bem trabalhado na nossa cabeça!”
O responsável lembra que jamais se conseguiu trabalhar bem na arte.
“A pandemia fez com que a máscara caísse e se vissem as mazelas e a forma como a cultura é (mal)tratada em Portugal. Todos os anos se fala de uma política cultural descentralizada, que é uma completa mentira. A cultura está inteiramente voltada para os centros urbanos e Lisboa, Porto e Coimbra.
Não há uma política cultural do Estado Central focada na descentralização para a inclusão e para um equilíbrio territorial de todo o sector artístico e profissional.”
O responsável pela estrutura teatral refere ainda a proliferação dos recibos verdes e a ausência de mecanismos de apoio de quem está, nos estatutos, à frente das organizações culturais.
“Quem, por exemplo, é presidente de uma Direcção não tem direito a nada!” Sublinha que o facto de o Município de Leiria ter afectado uma verba de 300 mil euros para o associativismo, quando os restantes concelhos não tinham ainda esse mecanismo pronto, foi crucial. Mas não é o suficiente para resolver o problema da cultura e dos criativos.
“Só conseguiremos ultrapassar isto, se estivermos todos juntos e se toda a gente puder dizer o que pensa e ser ouvido. Eu não sou músico, não sou técnico… é importante saber as dificuldades dos outros. Há quem não tenha apoios da Segurança Social, da DG Artes, de nada e tem filhos para sustentar. Estão sem nada!”