Ter de cumprir horários e rotinas, sem intervalos de 45 em 45 minutos, são apenas duas de muitas regras que os alunos de cursos profissionais têm de seguir em contexto de estágio.
Apesar deste sistema de ensino estar mais vocacionado para o saber-fazer, a primeira experiência no mundo do trabalho nem sempre é fácil. Uma coisa é certa, as centenas de horas de contacto com a realidade torna-os mais maduros e responsáveis.
A constatação é generalizada, por professores e por empresas. “Os alunos levam os estágios muitoa sério e vêm muito diferentes: mais maduros e com outra mentalidade”, assegura Luís Sá Lopes, director pedagógico da Escola Técnica Empresarial do Oeste (ETEO), em Caldas da Rainha.
Sá Lopes garante que os estágios costumam correr bem, porque os alunos são acompanhados de perto pela escola. A fuga à norma prende-se com situações relacionadas com faltas ou atrasos, que o estabelecimento de ensino de Caldas da Rainha resolve com facilidade.
Aliás, o director pedagógico da ETEO diz que, em muitos casos, os alunos acabam por ficar a trabalhar nas empresas onde estagiam. “Dão boa conta do recado.”
Os estudantes dos cursos profissionais do Agrupamento de Escolas de Vieira de Leiria, no concelho da Marinha Grande, também costumam deixar boa imagem nas entidades onde estagiam. “Os nossos alunos destacam-se, na parte prática, e são raros os casos em que não se empenham”, afirma Fernando Henriques, adjunto da Direcção. “Tenho tido surpresas muito agradáveis, até da parte de alunos mais fracos, que depois se revelam muito dedicados nos estágios.”
Fernando Henriques acredita que o facto de ficarem sozinhos em contexto de estágio é fundamental para os responsabilizar, porque “saem da sua zona de conforto”.
E dá como exemplo os estudantes de Electrotecnia que costumam fazer o estágio na mesma empresa, ao longo dos três anos de curso, porque as entidades “fazem questão” de ficar com eles.“Os alunos quando regressam dos estágios vêm completamente diferentes, pelo contacto com a realidade”, confirma António Figueira, director pedagógico da Escola Tecnológica e Profissional da Zona do Pinhal (ETPZP), em Pedrógão Grande.
Considera, por isso, que estas experiências profissionais “fazem parte integral do projecto de crescimento dos alunos”, ao contribuírem para que fiquem mais responsáveis.
Formar seres humanos
Ao contrário do que se possa pensar, António Figueira esclarece que as características mais valorizadas pelas entidades que recebem estudantes em contexto de estágio são humildade, educação, interesse em aprender e gosto em trabalhar, e não as melhores médias. “Na EPTZP trabalhamos muito a vertente do ser humano.”
Talvez também por isso, garante que são “raríssimos” os casos em que o aluno desiste ou há problemas com a entidade empregadora.
O feedback que Teresa Faria, adjunta da Direcção do Agrupamento de Escolas de Porto de Mós, tem das entidades que recebem estudantes dos cursos profissionais também é positivo. [LER_MAIS] “As portas ficam sempre abertas nas empresas. Gostam dos alunos e se tivéssemos mais, com mais ficavam, porque dão uma ajuda”, explica.
Os estágios em contexto de trabalho dão ainda a oportunidade aos alunos de perceberem se têm mesmo interesse pela área que frequentam.
Teresa Faria afirma que, desde o ano lectivo passado, em vez de concentrarem as 600 horas de estágio no 3.º ano (12.º ano), optaram por possibilitar aos estudantes terem 200 horas de contacto com empresas logo no 2.º ano (11.º ano). “Havia alunos que não sabiam o que queriam, mesmo no 11.º ano”, justifica.
Trabalhos desajustados
Mas nem tudo funciona às mil maravilhas nos locais de estágio. “Por vezes, os estágios não correm da melhor forma, porque nem sempre vão ao encontro da formação dada”, admite António Figueira.
A título de exemplo, refere o sector da hotelaria, em que “as tarefas nem sempre se enquadram dentro do que se pretendia para o aluno”.
Nestes casos, há uma intervenção da escola, no sentido de “repor a normalidade” e, quando se verificam situações de reincidência, a ETPZP acaba por procurar outras soluções alternativas de estágio.
“Às vezes, acontece os alunos queixarem-se – a nós ou aos pais – por estarem a fazer coisas que não correspondem à formação”, afirma Luís Sá Lopes. Limpezas? “Sim, desse género.” Garante, contudo, que a escola actua de imediato.
“São jovens e temos de os defender. O estágio é uma coisa séria. Tem de se corresponder ao que ficou acordado no protocolo”, sublinha.
Em casos excepcionais, diz que os alunos são mudados de local de estágio, situação que ocorre sobretudo em empresas pequenas. “Quando surge alguma situação dessas, tentamos actuar de imediato para limar arestas”, garante Fernando Henriques.
“Normalmente, as coisas correm bem, o que não quer dizer que não possa surgir uma ou outra situação, que tentamos logo solucionar.”
Já a adjunta da Direcção do Agrupamento de Escolas de Porto de Mós diz que, “normalmente, os alunos trabalham na área específica em que estão a receber formação, mas se lhes pedirem para atender o telefone, não vão deixar de o fazer”.
Mal preparadas
Essa é uma das muitas tarefas que Cristina Caseiro, gerente da clínica de estética Vintage, em Leiria, tem de ensinar às várias estagiárias de cursos de esteticista que recebe todos os anos.
“São muito jovens, pelo que temos de lhes ensinar o bê-á-bá todo. Sinto-me, muitas vezes, mãe delas, ao ponto de lhes ter de ensinar que não podem comer pastilha elástica”, observa.
As principais críticas apontadas pela gerente da Vintage prendem-se com a falta de iniciativa, mesmo quando sabem que há tarefas que podem assegurar sozinhas, problemas de assiduidade ou mentirem sobre o estado de saúde. “Não vêem o estágio como um trabalho. Não têm de pagar casa nem carro”, justifica.
Cristina Caseiro trata as estagiárias como se fossem funcionárias.“Ensino-lhes tudo, dou-lhes manuais para lerem, quero que conheçam os serviços e os preços todos”, exemplifica. “Elas gostam de estagiar aqui, porque as ensino e lhes dou atenção. Saem a saber mais coisas do que aprendem na escola. Agora, tem de se ter muita calma e paciência”, afirma.
No final do período de estágio, sustenta que a diferença de comportamento é abismal. “Ficam mais responsáveis e maduras.”
Tirar fotocópias
Rosa Pedrosa, administradora da ínCentea – Tecnologia de Gestão, explica que também não diferenciam os estagiários dos colaboradores da empresa de Leiria. “Tirar fotocópias ou arquivar documentos são tarefas feitas por todos”, exemplifica, pelo que desmistifica o facto de, muitas vezes, serem consideradas tarefas menores.
“No caso dos estagiários que estão a frequentar o 10.º, 11.º ou 12.º anos, o principal embate é terem uma jornada de quatro horas de manhã e de quatro horas de tarde”, revela Rosa Pedrosa.
“É muito difícil estarem sentados a uma secretária a trabalhar, porque estão habituados a ter intervalos, de 45 em 45 minutos, na escola e a mudar de matéria.”
A dificuldade de concentração e a necessidade de estarem em permanente contacto com as redes sociais são os principais problemas identificados.
A administradora da ínCentea explica que todos os estagiários têm tutores, mas admite que, por vezes, acontecem contratempos que não permitem acompanhá-los em permanência.
De há uns anos para cá, passou a ser estabelecido um protocolo com as escolas da região, com cursos profissionais nas áreas da informática e técnicos administrativos e de gestão, no sentido de adequar o contexto de estágio aos conteúdos da formação em contexto de escola. “Começou a ser mais produtivo para eles e para nós. Passámos a ter uma relação win-win.”
Rui Tocha, director do Centimfe – Centro Tecnológico da Indústria de Moldes, Ferramentas Especiais e Plásticos, na Marinha Grande, afirma que também têm a preocupação de partilhar com os estagiários a cultura da empresa e de disponibilizar colaboradores para os acompanhar e ajudar a integrar, por forma a que fiquem a conhecer as diferentes áreas da indústria.
Um dos passos que pretendem dar, assim que obtiverem financiamento, é contratar psicólogos, filósofos e sociólogos para acompanharem os estagiários na Academia do Estágio, projecto-piloto idealizado pelo empresário Joaquim Menezes, que envolve várias escolas da Marinha Grande e de Leiria.
“O objectivo é proporcionar uma melhor integração dos jovens no mercado de trabalho, contribuindo para a sua fixação, e dar uma melhor imagem da indústria, criando uma relação mais próxima”, revela Rui Tocha.