Dificuldades em dormir, ansiedade, medo, angústia e depressão são alguns dos sintomas que a pandemia da Covid- 19 está a provocar em algumas pessoas, com ou sem histórico de doenças mentais. A pressão, o sentir-se impotente e as mortes acima do normal também deixam marca nos profissionais de saúde.
O Centro Hospitalar de Leiria (CHL) criou uma linha de apoio coordenada pelo serviço de Psiquiatria. No entanto, o estigma que continua a existir com as doenças mentais e a vergonha de ser apontado como fraco são alguns dos motivos que travam os pedidos de ajuda formal, sobretudo de profissionais de saúde. Muitos não deixam de procurar os colegas da Psiquiatria desabafando o que sentem, mas poucos permitem que seja agendada uma consulta ou que o seu nome fique no sistema.
“Como dizia no outro dia o António Raminhos [humorista], também espero que um dia seja tão natural dizer que se vai ao psiquiatra como se diz que se vai ao dentista. Em Portugal não é nada assim”, lamenta António Mota, um dos enfermeiros da área mental que está à frente desta linha de apoio. “Talvez um dia seja tão normal como dizer que se tem hipertensão”, reforça Ana Raquel Gouveia, outra das enfermeiras envolvidas no projecto.
[LER_MAIS] Cláudio Laureano, director do serviço de Psiquiatria, avança que a procura pela linha “não é grande, o que pode ser um bom sinal, mas também mau, porque as pessoas podem ter vergonha”.
“Às vezes há dificuldade em reconhecer, numa auto-avaliação, que se precisa de ajuda, até porque a doença mental ainda é vista como uma fraqueza: não fui forte o suficiente. Continua a existir um estigma por parte do próprio ou de certas pessoas que o rodeiam, que fazem algum julgamento em relação a esse tipo de situações e tudo isso dificulta o pedido de ajuda, o que vai acarretar sempre mais sofrimento e agravamento da situação”, sublinha Cláudio Laureano. No caso dos profissionais de saúde, o acesso à auto-medicação poderá também atrasar ou protelar o pedido de ajuda.
Há vários anos a trabalhar na saúde mental, Lídia Vieira, enfermeira chefe da Psiquiatria, revela que há muitos colegas que a procuram, “fazem desabafos, choram, mas não querem ajuda formal”. Procura apoiar dentro do possível, indicando estratégias e tentando monitorizar a situação.
“Quando tento marcar consulta recusam. Uma jovem a quem alertei da necessidade de consultar um especialista, optou por ir à privada. As pessoas não querem expor as suas fragilidades e inseguranças.”
Os enfermeiros da Psiquiatria fizeram algumas intervenções relacionadas com a expressão de emoções junto de determinados serviços do CHL. “Todos choraram. Sentem-se frágeis”, refere ainda a enfermeira chefe.
Para António Mota, o que mais o chocou foi a “solidão” dos profissionais de saúde que, apesar de estarem rodeados de utentes e de colegas, sentem- se sós. “Todas as dinâmicas que se alteraram levam a um sentimento de sobrevivência.” Cláudio Laureano confessa que a resposta mais indicada até seria o encaminhamento para uma consulta de psicologia, mas lamenta que o CHL tenha dois psicólogos para 400 mil habitantes.
Stress pós-traumático
O impacto da pandemia está longe de ser conhecido. Ao nível da saúde mental, os especialistas concordam que os efeitos poderão ser devastadores “se compararmos com a infecção do SARS-CoV-1 (que não teve o impacto do SARS-CoV-2), os estudos realizados na altura mostraram que nos três ou quatro anos a seguir, os infectados apresentaram prevalências de síndrome pós-traumático, perturbações de ansiedade, de pânico e depressivas, muito acima da média da população geral”, revela Cláudio Laureano.
O psiquiatra admite que o “sentimento de impotência e de exaustão” leva ao “desenvolvimento de níveis de ansiedade e mesmo posteriormente a quadros depressivos reactivos e burnout, não só em profissionais de saúde como em quem trabalha em instituições e tenha lidado com muitas mortes que não eram expectáveis”.
António Mota acredita que o trabalho na saúde mental vai aumentar consideravelmente no pós-pandemia e também acredita que constatar- se-á “muitas pessoas a sobreviverem como os ex-militares que passaram a vida toda a sobreviver e a sofrer silenciosamente por causa do stress pós-combate”.
Por isso, o enfermeiro desafia o Governo a que seja criado um programa a nível nacional para dar resposta a todas as situações. “Não devem ser projectos individuais, mas um desígnio nacional que estabeleça uma estratégia que facilite o acesso à ajuda dos sobreviventes.”