Álvaro Rosa, o “Peles”, e Manuel Marques, o “Esgalhado”, como ficaram conhecidos desde os tempos em que jogavam futebol, pelo Marrazes e pelo Vieirense, respectivamente, são dois dos homens filmados pela lente de António Campos, cineasta de Leiria, que em 1975 realizava Gente da Praia da Vieira.
Quando se assinalou recentemente o centésimo aniversário do nascimento desta referência do cinema etnográfico e documental, e meses depois de ter sido aprovado pela Câmara da Marinha Grande o ante-projecto para a requalificação do auditório que recebeu o seu nome, na Praia da Vieira, o JORNAL DE LEIRIA foi ao encontro de quem diz ter tido o privilégio de conhecer o realizador. Recordam o homem e também a comunidade por ele registada que, entendem, já muito mudou desde então.
“Participei no filme aos 19 anos. Trabalhava na fábrica das limas, do [LER_MAIS]Tomé Feteira, jogava pelo Alverca e pescava. Foi numa tarde de pesca que veio o senhor Armando Filipe, aqui da praia, e me apresentou ao senhor António Campos. Pediu-me se não me importava de convidar amigos para entrarem no filme”, recorda o “Peles”.
Vivia-se o Verão quente de 1975. Além de ter filmado os pescadores, António Campos interessou- se pelos homens que destruíam as muitas barracas de madeira que se estendiam pela praia. O “Peles” e o “Esgalhado” foram filmados precisamente a desmantelá- las. A Revolução tinha trazido a liberdade e tempos de euforia, lembram estes homens da Praia da Vieira, que ambicionavam ver progresso na localidade e estavam preocupados com algumas barracas, que estavam desocupadas e que eram “monte de lixo e ratos”, ameaçando ruir.
Mas nem todos tinham a mesma perspectiva. “Os donos não queriam que fossem abaixo. Ligaram para a Base Aérea de Monte Real a dizer que íamos destruir barracas com gente lá dentro. Quando cá chegaram e viram que não havia ninguém, disseram-nos ‘por hoje param e começam amanhã”, recorda o “Peles”.
“Havia um bairro construído para os pescadores, mas preferiam viver nas barracas”, salienta.
“Esgalhado”, que à época também tinha 19 anos, já trabalhava desde cedo. Mal terminou a quarta classe foi directo para a fábrica de limas, sem nunca deixar de pescar. “Até tremia nas férias, porque sabia que ainda tinha de trabalhar mais”, recorda “Esgalhado”, que fala de tempos de muita dureza.
“A minha mãe tinha três trabalhos. Vendia peixe, fazia blocos de cimento e areia e acarretava água do mar, para os banhos quentes que aqui se faziam, bons para reumatismo”. A pesca também foi retratada neste filme de António Campos.
Por sorte, o realizador acabou por filmar o resultado de um dos maiores lances de sempre. “Deu 400 cabazes de carapau”, conta o “Peles”. A actividade piscatória foi de resto um dos aspectos que mais cativou o realizador, que já tinha rodado outros filmes na praia.
“A minha mãe apareceu num deles. Um filme mudo. Representava numa cena em que ia levar uma criança à bruxa”, conta o “Peles”, referindo-se à película O Tesoiro, de 1958.
“Foi um homem cinco estrelas, simples, que explicava bem o que queria” e que tinha muito interesse pelas coisas desta terra, salienta. Era uma praia onde as pessoas passavam dificuldades, mas onde havia entreajuda.
“Um sentido de comunidade” que se foi perdendo, lamenta o “Esgalhado”. Impera hoje o “individualismo”, observa o morador, referindo que o hábito de convívios, serões de bailes e cegadas se perdeu. Quanto ao Gente da Praia da Vieira, e apesar de nele terem participado, os dois homens só tiveram oportunidade de o ver vários anos depois, exibido no auditório António Campos.
Embora tenha sido feita recentemente a projecção desta e de mais duas películas do realizador, O Tesoiro (1958) e A Festa (1975), no Cine-Teatro Actor Álvaro (iniciativa promovida no âmbito do projecto FILMar, que resultou da cooperação entre a Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, a Junta de Freguesia de Vieira de Leiria e a Câmara da Marinha Grande), os moradores entendem que mais vezes terão de ser exibidos estes filmes, tal é a vontade da população se rever e de recordar os seus.
Também a requalificação do auditório António Campos é uma obra desejada, por poder recuperar as sessões de cinema, que animaram tantas gerações na Praia da Vieira, salientam os moradores.
Tiago Costa, coordenador do FILMar, adianta ao nosso jornal que a obra do realizador está a ser difundida em várias localidades e através de várias plataformas, sendo expectável que vários filmes da sua autoria voltem a ser exibidos no auditório António Campos, aquando da sua requalificação.