Dia 21 de Abril de 1974. Abel Lopes, então com 23 anos, estava no “mato”, em Quinhamel, na Guiné-Bissau. Foi de lá que escreveu a última carta para a família antes da Revolução dos Cravos. A destinatária era a sua “querida mana” Isabel, a quem confessava estar “farto” da guerra, da Guiné e do “terrorismo”, mas que “o amor à liberdade” o fazia “ter paciência” para acabar a missão “sem qualquer castigo”.
A carta chegou a Fátima, terra da família, já depois do 25 de Abril e foi guardada pela irmã dentro de um livro, onde esteve perdida após o falecimento da destinatária, até ser encontrada por uma jovem da freguesia, entre as páginas de um exemplar de O Crime do Padre Amaro, adquirido numa loja social. A missiva vai agora voltar às mãos do autor.
“Reler aquelas palavras [através de fotografia da carta], mexeu comigo. Trouxe muitas recordações”, conta Abel Lopes (na foto ao lado), confessando-se “contente” por voltar a ter a carta, que considera “um tesouro”. “Será herança da minha sobrinha”, revela o antigo militar, que destaca a importância das cartas em tempo de guerra. “Era a única comunicação que tínhamos com as famílias. Às vezes, esperávamos dias para as enviar. Outras, escrevíamos à pressa porque, entretanto, tinha chegado um helicóptero que as podia levar.”
A história do reencontro de Abel Lopes com a missiva tem como protagonista Rita Oliveira, assessora de políticas públicas na área da saúde, e começou com uma visita à loja social da Associação Mãos Unidas, em Fátima, onde comprou dois clássicos da literatura: O Padrinho e O Crime do Padre Amaro, este último de uma edição de 1972.
Já em casa, entusiasmada com a compra, fez um filme para partilhar o “achado” com o namorado. Ao folhear o livro, deparou-se com três folhas de papel “muito fininhas”. “Percebi logo que era uma carta e não resisti à curiosidade de a ler. Pelos detalhes, constatei que as pessoas envolvidas seriam de Fátima”, conta a jovem, de 26 anos.
Por considerar que era uma carta “demasiado bonita” para ficar consigo e que, por isso, devia ser devolvida aos envolvidos, Rita Oliveira recorreu às redes sociais para tentar chegar a essas pessoas. Partilhou a história no grupo de facebook Amigos de Ourém e o seu concelho, e, em menos de 24 horas, chegou à fala com Abel Lopes, com quem se encontrou esta quarta-feira, no programa Dois às 10, da TVI, para a entrega da missiva.
O momento foi testemunhado por Mónica Marques filha de Isabel Lopes e sobrinha do autor da carta, que, após o falecimento da mãe doou alguns pertences da progenitora à loja social, entre os quais os dois livros adquiridos por Rita Oliveira.
“Esta é uma história com muitas coincidências, como o facto de sermos todos de Fátima e de tanto os meus pais como os da Mónica trabalharem como fotógrafos. Aliás, a Isabel foi a primeira mulher fotógrafa reconhecida pela Associação Nacional de Fotografia”, conta a jovem assessora, que se confessa emocionada pela quantidade de pessoas que se uniram em torno da história. “O cruzamento de várias gerações tornou tudo ainda mais bonito.”