Da Coreia do Sul para a casa de Lisete Ribeiro, nas Fontes, a viagem da dupla Haepaary tem como destino a aldeia onde brota o rio Lis e mais uma edição do festival Nascentes com palcos e cenários insólitos.
A música electrónica inventada em Seul vai ouvir-se num relvado com horizonte quase até Leiria e a anfitriã, de 74 anos, só coloca uma condição: “Não quero que vão para a varanda. Tem uma vista boa, lá de cima, mas tenho medo que caiam”.
A casa é um dos espaços emprestados ao Nascentes para o programa que se materializa entre 3 e 7 de Julho. Outra novidade, este ano, é o terreno do Alpista, posicionado entre uma horta e um campo de milho e temporariamente transformado em cinema ao ar livre para a projecção do documentário Yours Truly, Fear, que acompanha os 5ª Punkada. A banda da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra protagonizou em 2022 o momento do festival de que Lisete Ribeiro nunca se esquece. “Até chorei”, diz ao JORNAL DE LEIRIA. “Mexe connosco, é muito humano”.
Em 2024 volta a haver concertos no rio, na nascente do Lis, no largo da capela, na adega do Luís, na eira da D. Lúcia, na eira das Camarinhas e na horta da D. Maria dos Anjos. Músicos de quatro continentes e 18 nacionalidades que, segundo Gui Garrido, mostram que os habitantes das Fontes estão, sobretudo, “abertos a descobrir novas realidades”, como espectadores e participantes improváveis da cultura contemporânea que aterra no meio rural.
Aceitam a “troca de experiências” com “curiosidade” e “generosidade”, assinala o director do Nascentes, o que permite estabelecer territórios “de intimidade, de fragilidade e de escuta”.
Organizado pela Omnichord e a Ccer Mais em parceria com a comunidade e com a Associação Cultural e Recreativa Nascente do Lis, responsável pelos petiscos servidos, literalmente, em mesas sobre o rio, o festival “está a unir” novos e menos novos, e pelo menos durante cinco dias, “toda a gente aparece”, realça Paula Baptista, filha de Lisete Ribeiro. “No primeiro concerto do primeiro dia [em 2021] muitas pessoas foram assistir com medo que não viessem pessoas de fora”. É também a autoestima que se renova. “Nós, que moramos aqui, não apreciamos o que temos”, explica. “E agora quando há um concerto vamos lá e olhamos”. Afinal, “é bonita a nossa aldeia”.
Nas ruas das Fontes já estão instaladas as placas do Nascentes que sinalizam os caminhos do afecto: “Tudo pode acontecer”, “Amor nunca é demais”, “Elogiem-se muito”, “Cuidem do lugar”, entre outras mensagens. Vários moradores da aldeia tornam-se estrelas na comunicação do festival, em vídeos que enfatizam a relação entre o global e o local, a escala maior e o detalhe.
“Estas casas, estes jardins, estas hortas, estas adegas, estão abertas o ano todo para nós”, comenta Gui Garrido. “A partir do conhecimento cada vez mais profundo, há uma vontade de ir construindo novas narrativas que só existem porque estas pessoas existem aqui”.
Em 2024, o Nascentes vai editar em colaboração com a livraria Arquivo a fanzine A fragil(idade) do tempo, por Raquel Folião, que entrevistou vários habitantes das Fontes, o primeiro fascículo de um projecto em que se ambiciona registar toda a população da aldeia, adianta Gui Garrido. Noutra iniciativa, o lançamento do álbum Extinção, do multi-instrumentista Samuel Martins Coelho, com selo Omnichord, surge em formato caixa que inclui objectos ligados às Fontes. E o colectivo da Ccer Mais vai apresentar uma instalação “criativa e onírica” inspirada na grota e nos mitos que lhe estão associados. “É a nossa homenagem”, mas “muito contida”, conclui Gui Garrido. “O mundo pode caber todo na palma de uma mão, tem a ver com estares aberto para ele”.