Quando a pandemia enviou toda a gente para casa num estado de emergência forçado pela escalada de contágios, novos palcos se abriram no ambiente digital, por acção dos artistas, dos criadores e das estruturas da cultura, que através da arte cuidaram dos dias do confinamento com solidariedade e afecto.
Também o grupo de teatro O Nariz, em Leiria, recorreu ao online e a diversas redes sociais para estabelecer um intervalo na rotina Covid e substituí-la por um momento diário de partilha e lazer, com outras narrativas, de outros tempos e lugares.
A iniciativa Contos ao Pôr-do-Sol – Um Conto por Dia é agora editada com o apoio da Direcção-Geral das Artes. Mais do que um livro que fixa e transmite a tradição oral, trata-se de um objecto multiformato que alia a palavra à ilustração com registo vídeo e tradução em língua gestual portuguesa.
O duplo lançamento está agendado para os dias 9 e 10 de Dezembro, em Leiria e Marinha Grande, sempre às 21:30 horas, no Teatro Miguel Franco e na Casa da Cultura Teatro Stephens.
Nos períodos de confinamento de 2020 e 2021, o colectivo O Nariz reuniu 62 contadores e músicos, de Portugal, Espanha, Argentina, Cabo Verde, Inglaterra, Brasil e Itália, que diariamente construíram e ampliaram um acervo com dezenas e dezenas de enredos.
A edição a divulgar esta semana é uma selecção de 30 histórias originalmente apresentadas online, com base na qualidade da gravação, numa escolha que procura a maior diversidade possível e dá prioridade aos contos da tradição oral sem recurso a suporte escrito.
No livro, descobrem-se ilustrações de 14 ilustradores convidados e ainda a interpretação em língua gestual portuguesa dos vídeos seleccionados, que se encontram acessíveis através de QR code. Um objecto inclusivo e acessível a diferentes públicos.
O projecto reúne os contadores Adriano Reis (Cabo Verde), Ana Moderno (Leiria), Antonella Gilardi (Itália), António Fontinha (Mafra), Cecília Guerra (Castelo Branco), Celso Fernández Sanmartín (Espanha), Cristina Taquelim (Beja), Fábio Supérbi (Brasil), Filipe Eusébio (Pombal), Graeme Pulleyn (Inglaterra), João Lázaro (Leiria), Jorge Serafim (Beja), Liliana Gonçalves (Leiria), Luís Mourão (Leiria), Matia Losego (Itália), O Lorpa (Leiria), Pedro Oliveira (Leiria), Pompeu José (Tondela), Tâmara Bezerra (Brasil), Thomas Bakk (Brasil) e Valter Peres (Açores), os ilustradores Abílio Febra, David Condeço, Hirondino Pedro, Inês Canha, Joana Mundana, João dos Santos, Leonor Lourenço, Maria João Franco, Mantraste, Paulo Simões, Rui Pedro Lourenço, Sandie Jones Mourão, Tiago Baptista e Zé Oliveira, e as intérpretes de língua gestual portuguesa Carolina Silva, Jéssica Ferreira e Joana Queirós, sob a coordenação da docente Joana Sousa.
“A comunicação oral continua a ser muito importante”, diz Vitória Condeço, da companhia O Nariz. “O conto, o fantástico, aquilo que não está escrito, de que não se pode ir à procura nos livros” e que “vai passando de geração em geração”, de avós para netos e de pais para filhos. “Funciona um bocadinho como a magia”.
Os Contos ao Pôr-do-Sol e o Encontro Internacional de Contadores de Histórias são dois projectos que O Nariz desenvolve há vários anos e quando o grupo de teatro de Leiria quis agir no confinamento – “achámos que precisávamos de fazer alguma coisa, estar presentes e solidários com todos em casa”, lembra Vitória Condeço – a oralidade e as histórias tradicionais transitaram para a internet e continuaram caminho. Uma vez por dia, à hora do pôr-do-sol.
No Teatro Miguel Franco e no Teatro Stephens, com alguns contadores de histórias em palco, a apresentação do livro multiformato será mais um capítulo no trabalho de vocalização da cultura imaterial, de passagem de conhecimento, de pedagogia da memória e da valorização da arte milenar de contar e ouvir contar uma história, que O Nariz pretende interminável.
As Duas Mulheres e o Céu, por Tâmara Bezerra, é o conto representado na imagem que acompanha este texto, com ilustração de Joana Mundana. Uma história de África, de um tempo em que as girafas se encolhiam para não baterem com a cabeça no céu. Duas camponesas, de famílias desavindas, encontram-se no centro da aldeia e começam a trabalhar em silêncio. Até que uma puxa o fio da conversa e tudo muda. Com a energia do diálogo e gestos entusiasmados, vão furando o céu com a ferramenta de trabalho, sem se aperceberem, um furo após o outro, como estrelas no firmamento. Até que o céu decide afastar-se para a distância onde se encontra hoje. Quem é que pode parar uma conversa entre duas mulheres? Provavelmente, ninguém. Porque, quando se encontram, têm a força de transformar até o universo, garante Tâmara Bezerra.