O que é que um projecto como o Brincar de Rua pode dizer de uma sociedade?
Há uns meses, cruzei-me com umas pessoas que tinham um folheto do Brincar de Rua e estavam a dizer que o projecto era ridículo. Apresentei-me e disse-lhes que concordava com elas. Mas, o ridículo é que cerca de 70% dos miúdos portugueses passem menos de uma hora ao ar livre, sendo Portugal o país mais seguro e com maior número de horas de sol da Europa e o terceiro mais seguro do mundo.
Além de, como diz, não fazer sentido, essa realidade tem consequências.
Tem consequências avassaladoras, relacionadas com o excesso de peso e as doenças que daí advêm, os problemas de falta autonomia e de competências pessoais e sociais, com a dificuldade na relação com os outros e na resolução de conflito. Chega a ser triste que tenha de haver um projecto como o Brincar de Rua, que procura inverter o sistema e fazer a promoção do brincar. O nosso desafio é chegarmos a uma determinada comunidade, ajudá-la a criar dinâmicas, para que, ao fim de algum tempo, já não sejamos necessários. O que nos propomos é criar condições para que os miúdos possam, naturalmente, ocupar e explorar o espaço da sua cidade, que venham brincar para rua, conhecendo novos amigos e até aprender a lidar com o seu próprio corpo e a enfrentar os desafios de viver em sociedade.
O medo dos pais é um obstáculo a essa vivência da cidade?
Sem dúvida. Os miúdos não brincam na rua, porque os pais não deixam. Qualquer pai, mentalmente saudável, protege a sua prole. É um comportamento natural. Fizemos um inquérito às famílias sobre as razões pelas quais os filhos não brincam mais na rua. E as principais razões apontadas prendem-se com a segurança rodoviária e o receio dos atropelamentos, o medo dos raptos e da violência vinda de adultos e o sentir que o filho não tem ferramentas para lidar com outros miúdos. As estatísticas mostram que os receios em torno da segurança não são baseados em factos concretos. Por exemplo, entre 2006 e 2017 houve uma redução de quase 50% no número de atropelamentos em Portugal. Em relação aos raptos sabemos que para as famílias do Rui Pedro, da Maddie e de outros meninos desaparecidos este é um flagelo brutal, mas a verdade é que os números relativos a este tipo de crime não são estatisticamente significativos. Estamos a restringir e transformar a vida das nossas crianças com base numa realidade cuja probabilidade de acontecer é muito diminuta. E, com isso, tiramos-lhes oportunidades de crescimento, de lidarem consigo próprias e com quem está à sua volta e de avaliarem situações de risco.
O que lhes vai acontecer quando crescerem e tiverem mesmo de ir para a rua?
Esse é que é o problema. Não têm ferramentas de crescimento, que os ajudem a lidar com as coisas boas da vida, mas também com os obstáculos. Não é um livro que lhes vai ensinar como enfrentar os desafios da vida, a serem capazes de ter uma ideia e de a concretizar e de, perante uma situação de confronto social, defenderem um ponto de vista. Há hoje a tendência de higienização da vida das crianças, que é um verdadeiro tiro no pé.
Como é que se pode ultrapassar essa realidade?
Além de mudar mentalidades, é preciso mudar a vida em comunidade. Num prédio de uma qualquer cidade o conhecimento entre quem lá vive não vai, na maioria dos casos, além de um 'bom dia' ou de um 'boa noite' ou das reuniões de condomínio. A perda do sentido de comunidade cria um vazio no espaço de rua. Perante o desconhecimento, o natural é evitar e proteger. Se não conheço as pessoas que estão à minha volta, não confio e meto-me, a mim e aos meus, dentro das seis paredes (tecto e chão, incluídos). [LER_MAIS] No Brincar de Rua não garantimos que as crianças vão ser mais sociáveis, mas seguramente, terão mais oportunidades do que se ficarem dentro de casa. Este é um projecto também para a comunidade. Os grupos são micro-comunidades onde as pessoas aprendem a conhecer-se. A maioria dos grupos funciona uma vez por semana. Não é isto que vai mudar a vida das pessoas. Mas se elas se conhecerem, é mais provável que se venham a desenvolver novos laços comunitários.
A forma como as cidades estão organizadas são convidativas ao brincar?
Quando começámos com o Brincar de Rua, em Leiria, estávamos apreensivos. Pensávamos no caos urbanístico e que não tínhamos sítios para pôr as crianças a brincar. Chegámos, até, a equacionar começar na Marinha Grande. Acabámos por descobrir em Leiria um conjunto de espaços que se adequavam ao que pretendíamos. Veja-se o que se passa com os brinquedos: Podemos pensar que, para brincarem, os miúdos precisam de uma série de brinquedos ou, simplesmente, dar-lhes um pau, que se pode transformar numa espada ou num suporte para uma cabana.
Isso também se aplica às cidades?
Também. Não é preciso ter um parque infantil ou equipamentos fantásticos para se poder brincar na rua. Na vila onde cresci [Castro Verde], havia apenas um parque infantil, que ficava do lado oposto à zona onde vivia. Nunca ia para lá, mas brinquei muito na rua. O que se pretende é, olhando para o espaço comunitário, criar condições para que os miúdos possam brincar, seja num jardim ou num espaço mais contido ou até na via pública, pedindo aos automobilistas para que não estacionem em cima do passeio ou que tenham mais cuidado com a velocidade. Há que aproveitar todos os cantos que as cidades nos oferecem. Também podemos avançar ruas de convivência partilhada, com trânsito, mas com grandes limitações de velocidade e piso diferente. As oportunidades criam-se, se houver vontade para que elas aconteçam. O principal condicionante não é o facto de a cidade ser mais ou menos caótica do ponto de vista urbanístico.
Qual é, então, o maior condicionante?
O maior condicionante é a comunidade como um todo e os indivíduos que regem a vida das crianças. Leiria está num processo interessante de construir uma ideia identitária do que é ser de Leiria e de apaparicar a cidade. Mas, se não tivermos crianças que vivam a cidade, que a explorem e que a descubram, isso vai-se perder. As cidades só criam identidade se tiverem pessoas que as fruam, que as utilizem e que as ajudam construir. Se tivermos gente amorfa, que não sai, que não participa, a identidade dos sítios perde-se.
Também há falta de brincadeira nos recreios da escola?
O que falta é pensarmos o espaço e o tempo lúdico que as crianças têm e o tipo de experiências que lhes podemos dar. O bichinho do telemóvel já está enraizado nas crianças, desde o 1.º ciclo. Ser criança é estar atento a tudo e a querer novidades. O nosso cérebro está desenhado para ser uma máquina de absorção de informação, especialmente nos primeiros anos de vida. Nesse contexto, os telemóveis são açúcar para o cérebro humano. Alimentam essa necessidade de informação. Biologicamente estamos definidos para procurar estímulos, coisas novas. É normal que os miúdos sintam este tipo de dispositivos como algo de bom. Mas quando estão com estes equipamentos, é tempo que não estão a correr, a saltar e a descobrir o seu corpo. Como posso resolver problemas básicos, como atravessar a rua ou equilibrar- me para fazer um jogo, se não aprendo a lidar com a ferramenta que é o meu corpo, porque só manipulo os meus polegares e tenho os olhos e os ouvidos focados no ecrã? Este é um problema gravíssimo, ao nível do desenvolvimento pessoal e na preparação das crianças para os novos desafios.
Mesmo que muitos dos desafios do futuro estejam associados ao digital?
É verdade que muitas das crianças de hoje terão empregos relacionados com o digital. Mas para chegar ao nível de saber utilizar a ferramenta digital, com criatividade e com planeamento, temos de viver outras coisas. O telemóvel cria-nos umas palas, como aquelas que se colocam aos cavalos para que estejam focados no caminho a seguir. As crianças não podem ter palas a obrigá-las a focarem-se em determinado ponto. Têm de conseguir olhar em volta. Se não lhe damos essa clareza do conheceram-se a si próprias e explorar o que está à sua volta, vamos ter as tais crianças totós de que fala o professor Carlos Neto.
Há, cada vez, mais escolas a proibir o telemóvel nas escolas. No ano passado, a medida foi adoptada por todas as escolas públicas francesas e agora o estado do Michigan (EUA) decidiu fazer o mesmo. O que pensa deste tipo de medidas?
Tenho muitas reticências em defender a proibição destes dispositivos nas escolas e ainda mais reticências em dizer que o que se deve fazer num sítio também se deve aplicar noutro. A decisão tem que ver com a capacidade de a comunidade escolar integrar esta ferramenta. Se tivermos docentes que estão à vontade com o uso de smartphones, se a escola já tiver wifi nas salas de aula e materiais para que alunos possam fazer pesquisas e trabalhar com esta ferramenta, não faz sentido proibir. O problema é que hoje se entregam telemóveis aos miúdos como uma ferramenta para que eles se divirtam consigo próprios e só lhe damos essa conotação. As crianças portuguesas passam, em média, entre duas horas e meia e quatro horas em frente a ecrãs. Nos EUA, há estudos que apontam já para mais de oito horas. Como é que é possível? Os miúdos estão cada vez menos debaixo do céu e mais tempo dentro de casa.
E isso acontece também nas aldeias.
O não brincar na rua não é um problema das cidades, é um problema da sociedade. Há muitas ambivalências na cabeça das pessoas. Uma delas é a de pensarmos que ao ir brincar, se desliga o interruptor do cérebro das crianças. A ciência mostra o contrário. Stuart Brown, neurocientista, tem feito várias investigações nesta área. Uma delas envolveu uma experiência que consistiu em pôr miúdos a brincar e colocar- -lhes um daqueles capacetes que medem a actividade do cérebro. É incrível ver como a brincar tudo acende. A imaginação está ao rubro e todos os sentidos estão a funcionar. O brincar não só estimula a imaginação, mas permite também dar o passo seguinte, o de pôr essa imaginação a funcionar. A actividade de brincar é a nossa principal ferramenta até aos cinco anos e uma das principais até aos 12 anos. A música é importante, porque ajuda a desenvolver o raciocínio lógico, a capacidade de estruturar o pensamento e de ser uma pessoa mais organizada e criativa. O xadrez ajuda com o raciocínio lógico e o futebol dá competências motoras e mostra o sentido de equipa.
Mas são actividades estruturadas pelos adultos.
Exactamente. Todas essas e outras actividades do género têm validade, mas, para além das actividades que são definidas e organizadas pelos adultos, tem de haver espaço para que as crianças descubram as coisas por elas próprio, para que tenham uma ideia e a materializem. Esse é um espaço essencial para o crescimento pessoal. Se continuamos a sobrecarregar as crianças com hiper-agendas, em que definimos todos os seus tempos, vamos torná-las adultos autómatos.