O que o leva a ter, no seu catálogo, mais de 1500 títulos de obras que não compensam financeiramente?
A nossa actividade começou em 1982 e temos títulos de qualidade, que não são muito procurados. Outros vendem bem e equilibram as contas. Sentir-me-ia muito mal se estivesse numa editora que não pudesse arriscar em livros que sei que, provavelmente, não irei vender. Volta e meia, temos um livro que "vende muito" e, à escala portuguesa, é um bestseller com mais de 30 mil exemplares. No ano passado, editámos 130 livros, o que dá mais de dez por mês, além das reedições. Apesar de tudo, temos uma grande flexibilidade que os grandes grupos editoriais, como a Leya, a Porto Editora e a Presença, não têm. Na Relógio d'Água, somos 15 pessoas nas áreas editorial e de distribuição e isso permite-nos investir mais na qualidade das obras. Nunca editei um livro só porque acredito que vai vender muito. O ideal seria juntar qualidade e vendas muito amplas, como acontece com os livros do Miguel Sousa Tavares ou com os da Elena Ferrante.
Alguma vez teve a surpresa de um manuscrito, sobre o qual tinha dúvidas se deveria editar, ser bem aceite pelo público?
Depende muito do acolhimento que os media e os críticos fazem à obra e autor, mas é mais frequente o caso oposto: pensar que venderei muito e isso não acontecer. No entanto, posso dar o exemplo de A Era do Vazio, de Gilles Lipovetsky, que foi um êxito surpreendente. Ou O Sexo dos Anjos, de Júlio Machado Vaz, que teve nove edições, em ano e meio. Foi surpreendente, porque tudo começou com um programa na rádio. Transcrevemos os programas, ele escreveu mais uns textos intercalares e lançámos o livro, com uma expectativa relativamente baixa e foi uma surpresa. Houve outros casos onde isso se verificou, como a canadiana Alice Monroe, de que editámos seis livros e, cada um, vendeu uns 600 exemplares. Fui-a publicando porque gostava muito da sua escrita, mesmo sabendo que ela dava um ligeiro prejuízo. Contudo, assim que venceu o Nobel da Literatura, passou a vender dez mil exemplares por título.
Arrepende-se de ter deixado escapar algum autor?
Não sou daqueles editores que pensam que são infalíveis. Cometi vários erros editoriais, embora nunca o tenha feito contra o critério de qualidade da Relógio d'Água. Basta dizer que o desconhecido Gonçalo M. Tavares me encontrou um dia na rua e disseme que queria editar na minha editora um livro. Pedi-lhe que me enviasse o original. O livro não me entusiasmou e não o editei. Isso foi, evidentemente, uma lacuna. Mesmo não sendo um dos seus melhores livros, era já visível a qualidade como posteriormente se viu. Desde aí, já editou na Relógio d'Água oito livros e irá editar muitos mais, porém, o primeiro, recusei-o. O importante é acertar mais vezes do que as que se falha e não cometer erros contra os critérios básicos da editora, de qualidade literária e ensaística das obras.
Lê todos os manuscritos que lhe enviam?
O papel do editor é saber escolher bem os livros que edita, sob critérios objectivos. Leio todos os livros que edito. Publico cerca de dez títulos por mês e tenho de ler total ou parcialmente cerca de 15 títulos. Claro que, muitas vezes, eles já me chegam filtrados, por críticas internacionais de pessoas cujo critério merece confiança. Nos autores portugueses, à partida, não há uma apreciação estabelecida sobre a sua obra e cada livro é um livro novo. Mas, às vezes, é mais fácil em livros que vêm de escritores que publicam regularmente e com quem tenho uma certa amizade. É o caso dos ensaios do António Barreto, da ficção de Hélia Correia ou Jaime Rocha. Como sou obrigado a ler, escolho bem os títulos e procuro juntar o útil ao agradável. Só um editor que não lê se pode dar ao luxo de publicar maus livros.
Por estes dias, quais são os autores e obras que lhe andam na cabeça?
O último foi o Lincoln no Bardo, o primeiro romance de George Saunders, que é extremamente inovador em termos formais. Internacionalmente, os escritores estão a ir contra as formas tradicionais de escrita. Ele conseguiu inovar sem perder a narratividade, continuando a prender a atenção do leitor, embora seja experimental e inovador. Depois temos Gabriel Tallent, com o livro O meu amor absoluto, que aborda um tema muito difícil. Fala da relação de um pai e de uma filha, um pouco perdidos e abandonados. É uma relação muito intensa entre eles… há ali um aspecto sexual entre ambos. É um livro arriscado para um editor, mas é uma grande obra. Destaco também Rachel Kuschner e A Prisão de Marte, que iremos editar em breve. Dos portugueses, temos Caos e Ritmo, obra grande, filosófica e complexa, do filósofo José Gil. Não será tão facilmente divulgável como Portugal Hoje – O Medo de Existir, que vendeu quase 80 mil exemplares, sendo o ensaio que, em Portugal, mais vendeu. Em breve, teremos também o novo romance da Hélia Correia, Um Bailarino na Batalha, que será marcante em termos editoriais.
"No jornalismo escrito, as condições são muito precárias e a credibilidade dos jornalistas diminuiu, devido a essa precariedade e aos conteúdos especulativos e de tablóide"
Números recentes do sector livreiro mostram que há chancelas que, em Portugal, publicam 20 ou 30 livros por mês. Publica-se demasiado?
Isso é subjectivo. Globalmente, não há leitores para tanta edição. Por dia, em Portugal, e considerando todo o género de títulos, publicam-se 30 livros. É excessivo tendo em conta a capacidade da rede livreira, de exposição, divulgação e número de leitores disponíveis. Mesmo que só se editem dez livros de literatura e ensaios, por dia, já é excessivo. Por outro lado, como as tiragens médias baixaram, também se percebe que se esteja a publicar mais. Além disso, a edição tem particularidades que não se verificam noutros sectores. Por exemplo, quase 80% das nossas exportações são para a União Europeia, mas uma editora não pode exportar para a UE. Podemos fazê-lo para os países de língua oficial portuguesa, mas todos eles atravessam problemas graves. Em Angola há umas quatro livrarias. Na Guiné, existe uma pequena livraria, dentro de um hotel. O Brasil, que tem uma rede livreira grande, atravessa dificuldades e é um país continental, o que impossibilita colocar livros em certos locais. Além disso, há a dificuldade da língua.
Mas as editoras nacionais esperavam que o Acordo Ortográfico abrisse as portas desse mercado.
Essa foi uma das razões invocadas para se avançar com ele. Mas, nem todos os países aderiram, em especial, os maiores países africanos. O que se verifica é que o Brasil aderiu, mas Angola e Moçambique continuam a usar a versão europeia anterior da ortografia. De qualquer modo, mesmo em relação ao Brasil, não se trata de uma simples questão de ortografia, é o léxico e a sintaxe, que são muito diferentes. Um livro de Portugal, para os brasileiros, que inovam muito em termos linguísticos, soa sempre a arcaico. É muito difícil exportar para lá. E quando um livro em português do Brasil aparece em Portugal, escrito por um autor mais idiossincrático, parece mais estranho do que ler em francês ou inglês. Arranha-nos a mente. O Acordo Ortográfico não facilitou o intercâmbio cultural e não teve qualquer papel positivo nas exportações.
Qual é a sua opinião sobre a vanity publishing, a chamada publicação de autor?
Aumentou o volume da edição. Há editoras que só fazem isso. A Chiado Editores é o caso [LER_MAIS] mais conhecido. Desde que lhe paguem, publica tudo o que lhe aparece. Um editor deve escolher e dar uma garantia de qualidade aos seus leitores habituais. Essas “editoras” não são editoras, são plataformas de publicação. Há casos caricatos de autores que publicaram pela Chiado, que chegam ao lançamento, e lhes fazem notar que os livros estão cheios de gralhas. "Só paguei a primeira revisão. Não quis pagar a segunda", explicam.
Há 35 anos, quando fundou a Relógio d’Água, era jornalista n’O Jornal. Como vê as mudanças na forma como os profissionais têm, hoje, de exercer o ofício?
O jornalismo desse tempo era muito diferente. Ainda não havia redes sociais e o público tinha confiança nos jornais e nas suas notícias. O Jornal chegou a ter, praticamente, a mesma tiragem que o Expresso mas caiu, devido a uma colagem promovida pelo director ao PRD, partido ligado a Ramalho Eanes, o que fez com que o jornal perdesse a imagem de isenção que tinha. Também, trabalhei no Diário de Lisboa, que era uma publicação com uma vida própria. Actualmente, aposta- se muito em estagiários mal pagos e se alguém com mais idade fica na equipa é para ser uma “memória”. No jornalismo escrito, as condições são muito precárias e a credibilidade dos jornalistas diminuiu, devido a essa precariedade e aos conteúdos especulativos e de tablóide. Por outro lado, as redes sociais introduziram uma dimensão com a qual a imprensa escrita nem sempre soube lidar. Entrou em concorrência com as redes sociais e começou a ir atrás delas e dos fenómenos virais. Muitas vezes, os jornais precipitam-se sem fazer a investigação que lhes permite ir além do que as redes sociais alcançam. A única resposta a isto, além das plataformas digitais dos jornais, é a aposta na qualidade, nas reportagens e investigação, porque as redes sociais não fazem nada disso.
Continua empenhado politicamente, como nos dias em que lutou contra o Estado Novo?
Nasci num regime de tipo policial, militar, repressivo e burocrático. Não havendo liberdade de expressão, associação e de crítica, era necessário empenhar-me politicamente para mudar isso. Quando comecei a actividade política, o PS parecia-me muito manso, o PCP oferecia um modelo de sociedade com o qual não me identificava e eu procurei uma alternativa de extrema- esquerda trotskista, que, mais tarde, deu origem ao PSR. Estive na clandestinidade. Foram tempos difíceis… apesar de tudo o PCP tinha outras condições. Se um militante adoecesse, se calhar, era tratado na URSS, enquanto nós passávamos fome e frio. Após Abril de 74 pareceu- me que o processo poderia conduzir a uma ditadura e a uma guerra civil. A partir de Março de 1975, com as nacionalizações dos bancos, com as quais concordava, devido ao perigo de fuga de capitais, comecei a afastar-me. Hoje, a minha intervenção é através da edição. Procuro estar aberto a todas as correntes, mas há um empenho político, que é visível na ficção e no ensaio, onde procuro contribuir para que as pessoas estejam esclarecidas nas opções que fazem.
O editor que também escreve
Francisco Vale diz que ser editor é ter o papel do amigo que sugere bons livros, mas o responsável pela editora Relógio d’Água, também se aventurou no mundo das letras.
Escreveu dois romances e um livro de ensaios e, embora se orgulhe da sua obra, concluiu que a escrita é muito exigente e necessita de uma "relação obsessiva". "É incompatível com ser-se editor. Além disso, um escritor ou é mesmo muito bom, ou mais vale estar quieto." Hoje, diz, escreve “por procuração", através dos autores que publica.
No prelo tem, contudo, mais um ensaio que deverá sair dentro de pouco tempo. É considerado um dos mais destacados editores portugueses, contando na lista de autores que procuram a editora, que criou em 1982, com Fernando Dacosta e António Palouro, com nomes como Agustina, António Barreto, Hélia Correia ou Gonçalo M. Tavares. Mas, antes de abraçar em pleno a edição, foi jornalista n’O Jornal.
Após fazer reportagem, crónica e outros géneros da escrita jornalística, resolveu ser correspondente de guerra no Líbano. Voou para Aleppo (Síria), mas, quando lá chegou, não o deixaram sair do aeroporto porque as autoridades diziam não existir um país chamado Portugal.
Valeu-lhe uma referência a Mário Soares, que ali andara num périplo da Internacional Socialista. Depois, tentou seguir para o Líbano, para cobrir a guerra civil. “Quando cheguei à fronteira num táxi colectivo, fui recambiado.”
Terminava assim a sua tentativa de alargar horizontes jornalísticos, como correspondente de guerra.