Depois dos Estado Sónico, depois dos Big Me, depois de 20 anos a viver no Canadá, onde trabalha nas explorações de petróleo, há um novo horizonte diante de Garry Vicente, músico da Marinha Grande de repente descoberto durante uma noite open mic num bar de Edmonton em que cantou dois temas originais, voz e guitarra, que convenceram a editora Northern Lights Indie Label a propor-lhe gravar o primeiro EP a solo, aos 56 anos de idade.
No outro lado do desafio que para o working class hero da Marinha Grande é uma espécie de american dream canadiano está o músico Jarrid Lee, dono da Northern Lights Indie Label, que viu do público a performance de Garry Vicente e não lhe poupa elogios. “A voz rouca e temperada mistura-se perfeitamente com o dedilhado e com histórias que normalmente não ouviríamos em Alberta, Canadá. Há um certo estilo único de cafeteria mundana que lembra aos meus ouvidos música que se encaixaria perfeitamente numa banda sonora para cinema ou nos créditos finais de um grande filme”, comenta numa resposta enviada por escrito ao JORNAL DE LEIRIA. “O que achei diferente foi o óbvio sotaque português e a sua personalidade vibrante que me intrigou ao ponto de querer descobrir quem ele é e, mais importante, quem ele é como artista. Há naturalidade, como um veterano experiente, e sem saber ele ilumina o amor pela música evidente na sua arte”.
Se todos estes atributos se reúnem na mesma pessoa, conclui, “francamente, o céu é o limite”. E argumenta: “Quando a preparação encontra o talento, o sucesso certamente virá”.
Segundo Jarrid Lee, o EP tem “lançamento previsto para este ano de 2024”, com o título Songs To Somewhere. “Estamos no processo de arranjar apoio financeiro para ir para estúdio”, explica Garry Vicente. “Pôr uma música nas rádios e depois avançar com as outras”. A editora conta com músicos baseados na Georgia (Estados Unidos) responsáveis por gravar os restantes instrumentos, à distância. “Para mim é uma coisa nova, nunca trabalhei assim”. O primeiro single, “My Heart Is Not A Stone”, “fala de solidão, mas em termos positivos”.
Entretanto, o site já está online com canções antigas, vídeos, fotografias e a capa do EP, que incluirá cinco temas, quatro deles em inglês. Entre o folk e o rock, com o texto a discorrer sobre relações, o sentimento de pertencer a dois países, a necessidade de encontrar um caminho apesar de todas as dificuldades do dia a dia e também assuntos profundamente íntimos, como na única faixa em português, escrita para a mãe: “Para Longe De Ti (Nunca)”.
Dos Estado Sónico aos Narrators
O primeiro registo de estúdio de Garry Vicente é o álbum de estreia dos Estado Sónico (banda formada em 1989 na Marinha Grande) que data de 1995. Seguiram-se outras gravações com Estado Sónico e com os Big Me, colectivo que fundou a seguir, também na Marinha Grande. Em 2015, já no Canadá, distribuiu “para família e amigos” um EP com o grupo The Narrators, em formato acústico. Aos 56 anos, é a primeira vez que edita a solo.
Nascido numa família portuguesa emigrada em Thompson, na província de Manitoba, Garry cresceu na Marinha Grande desde os quatro anos, mas voltou ao Canadá em 2004, primeiro Calgary e logo no ano seguinte Edmonton, onde continua a residir e costuma ir a palco, duas vezes por semana, em bares com microfone aberto.
“Têm-me mantido activo”, sinaliza, durante uma conversa por telefone. “Agarro na guitarra, sai qualquer coisa e escrevo uma música e depois tenho a oportunidade de ir tocá-la ao vivo, logo passado alguns dias”.
No mês de Dezembro, uma noite destacou-se de todas as outras. “Ainda nem acredito, agora no fim de velho é que sou descoberto”, escreveu no Facebook. “I’m so happy [Estou tão feliz]. É super-reconfortante saber que a nossa arte é apreciada”. A energia e o espanto prevalecem, volvidas semanas. “Fiquei surpreendido e com mais pica para continuar a fazer música”, diz ao JORNAL DE LEIRIA. “É uma coisa que se vê nos filmes, ser descoberto num open mic não é normal, depois dos 50”. Um caso em que os astros se alinharam, acredita. “Ele [Jarrid Lee] não é daqui desta província, o tempo não estava muito bom e decidiu ficar mais uma noite cá e apareceu lá. Tudo deu certo para a gente se conhecer, foi sorte”.
O momento “é importante”, concede. “Porque eu continuo a compor como se tivesse uma banda”. Coração exposto, emoções à flor da pele. É a oportunidade para Garry V fixar a história de Garry Vicente. “Já escrevi tanta música, mas depois não as gravo, deixo de as tocar, às vezes já nem me lembro delas”, explica. “Estou entusiasmado porque assim registava alguma coisa para ficar”.