Já passaram quase quatro anos, mas Virgílio Cruz e Luísa Fonte recordam, “como se fosse hoje”, o turbilhão de emoções que viveram naquele 15 de Outubro de 2017, quando o fogo dizimou, quase por completo, as matas nacionais de Leiria, do Pedrógão e do Urso.
A meio da tarde, Virgílio estava no bar que explora junto à lagoa da Ervedeira, na freguesia do Coimbrão, e brincava com os amigos, dizendo- -lhes que, se o fogo chegasse, se metiam dentro da água. Nessa altura, as chamas ainda não tinham atravessado o rio Lis e a coluna de fumo e de fogo estava longe, no concelho da Marinha Grande.
Pouco horas depois, tudo se alterou. A ironia deu lugar à preocupação e ao medo. À chegada das chamas, Virgílio não se meteu na água. Fugiu, antes que fosse tarde de mais.
“Por volta das 21 horas, o fogo atravessou o rio [Lis] e à meia-noite chegou aqui”, conta Virgílio Cruz, sentado num dos bancos do parque de merendas anexo à lagoa, um dos dois “cantinhos” da zona que escaparam à fúria das chamas. O outro foi o edifício que serve de apoio ao bar.
Em poucos minutos, toda a vegetação em torno da lagoa foi engolida pelas chamas, que devoraram também os passadiços. “As cordas a arder formavam uma linha de fogo. Parecia o rastilho de uma bomba”, recorda Virgílio Cruz, que ainda conseguiu libertar os cavalos que se encontravam presos num terreno localizado nas imediações da lagoa. Num primeiro momento, os animais fugiram em direcção ao fogo, mas acabaram por escapar.
A essa hora, Luísa Fonte fugia, de carro, da aldeia da Ervedeira com o filho de três anos, gravando na memória uma imagem que “ficará para sempre”.
“Olhei para trás e vi as chamas a galopar. Recordo-me bem de ouvir o crepitar das labaredas. É um momento inesquecível.” Regressaria no dia seguinte à aldeia e à lagoa. O verde da vegetação, onde em criança e na adolescência tantas vezes se protegeu do sol entre os mergulhos na água, tinha dado lugar ao cinzento, com a atmosfera impregnada do cheiro a fumo.
Um impulso do coração
Dias depois, a comoção deu lugar à acção. Uma semana após o fogo, “num impulso do coração” e ainda “emocionados” com o que tinha acontecido, o Grupo de Amigos da Lagoa da Ervedeira (GALE), constituído em associação em 2018, conseguiu juntar perto de 600 pessoas numa acção de limpeza na mata nacional envolvente ao espelho de água.
A quantidade de resíduos – vidro, plástico queimado e pregos que haviam caído dos passadiços – foi de tal forma “assustadora”, que o grupo percebeu que não podia ficar por aí.
“Aquela gente que se juntou a nós, vinda de vários pontos do País, deu-nos ânimo para continuarmos”, [LER_MAIS]alega Luísa Fonte, a ainda presidente do GALE, cargo que deixará em breve por ter sido eleita para o executivo da Junta de Freguesia do Coimbrão.
Com a organização de caminhadas ecológicas, o grupo deu continuidade aos trabalhos de limpeza, na esperança que, entretanto, a reflorestação chegasse àquela zona de mata nacional. “Percebemos que era preciso pormos mãos à obra”, recorda Virgílio Cruz, um dos fundadores do GALE e actual vice-presidente da associação.
A plantação das primeiras árvores na envolvente à lagoa aconteceu em Março de 2019, mas das cerca de 650 que plantaram, só sobrevivam aproximadamente 230. “Sabíamos que a época do ano não era a mais indicada, mas foi quando nos cederam as plantas”, justifica o dirigente.
Com a lição apreendida, efectuaram uma nova plantação em Outubro desse ano, com o apoio da Câmara de Leiria e adoptando outro tipo de cuidados. Fizeram uma caleira para cada árvore, colocaram estilha para “reter alguma humidade” e iniciaram a rega, aconselhados por um engenheiro agrónomo e utilizador regular do espaço para praticar desporto.
Virgílio Cruz conta que foi Licínio Pereira que começou a acompanhar o desenvolvimento e o “estado de saúde” das árvores e que, no início do Verão de 2020, começou a efectuar regas regulares em parceria com o GALE e os demais voluntários.
“Percebemos que tínhamos de fazer mais do que plantar. Era preciso cuidar, para que o maior número de árvores sobrevivesse”, diz Luísa Fonte. E o cuidar traduziu-se na organização de acções de rega, recorrendo, mais uma vez, a voluntários.
Resultado: a segunda plantação – que envolveu 900 árvores – pinheiro bravo, pinheiro manso, medronheiros e salgueiros – teve uma taxa de sucesso “a rondar os 95%”, frisa, com orgulho, Virgílio Cruz, que acredita que, no próximo Verão os exemplares já terão robustez suficiente para continuarem a crescer sem necessidade de rega manual.
Mas, se tal for necessário, os amigos da lagoa lá estarão para repetir o ritual e garantir que não será por sede que as árvores morrerão.
Este refúgio “salvou-me a vida”
Tanto Virgílio Cruz como Luísa Fonte reconhecem que o trabalho feito na envolvente à lagoa “é uma gota no oceano” que representa a recuperação das matas nacionais de Leiria, do Pedrógão e do Urso.
Mas acreditam no virtuosismo do que tem sido realizado naquele local, manifestando-se convictos que, se não fosse esta acção pró-activa, a reflorestação “ainda não teria chegado” à Ervedeira.
Uma convicção firmada num historial de “alguma inoperância” das entidades oficiais em relação à lagoa e envolvente, explicam os dirigentes, recordando os “vários alertas” que fizeram antes do incêndio para a situação de risco em que a zona se encontrava, quase todos “sem resposta”.
“Havia sítios com mais de um metro de altura de manta morta. Foram enviados emails para a APA [Agência Portuguesa do Ambiente] e para a câmara, mas os avisos caíram em saco roto”, lamenta Virgílio Cruz, nascido e criado na aldeia da Ervederria.
“A lagoa diz-nos muito. É parte da nossa vida”, assume Luísa Fonte. Ele vai mais longe: “Não tenho vergonha de dizer que a lagoa me salvou a vida. Com os problemas de saúde que tenho tido, encontrei aqui um refúgio para os dias maus, que me ajudou a sobreviver.”
Nível da lagoa a subir
O GALE foi constituído em 2014, quando alguns moradores da aldeia começaram a trabalhar na limpeza dos canais que alimentam a lagoa e que, com o abandono da actividade agrícola, foram ficando obstruídos e até desaparecendo.
“Começámos com a limpeza em 2014, num ano muito chuvoso, mas com a seca, com os fogos e com os helicópteros de combate a incêndios a virem abastecer na lagoa, o nível da água tem baixado. Desde 2018 que fazemos a monitorização e verificámos uma subida de 2,2 metros”, conta Virgílio Cruz.
Outra das acções em que o grupo se tem envolvido é o combate às acácias na envolvente à lagoa, uma guerra muito difícil de ganhar, reconhece o vice-presidente da associação.