Kamilla, Valerie, Maryna, Yehor e Oleksii são todos profissionais das artes e têm também em comum as raízes no país que desde 24 de Fevereiro está sob uma ofensiva militar em larga escala.
Os cinco artistas provenientes da Ucrânia são os primeiros ocupantes da central-periférica, um novo centro de residências e investigação artística, em Alcobaça.
Vão ficar 12 meses e desenvolver um programa de actividades multidisciplinar.
A primeira exposição, da autoria de Kamilla Yanar, evoca o conflito com a Rússia desde 2014 e narra as histórias de pessoas forçadas a abandonar as respectivas casas, no Donbass, de onde ela própria é originária.
Com o título Temporary Corner, a exposição inaugurada na sexta-feira, 1 de Julho, na Rua Dr. Nascimento e Sousa, marca a abertura ao público da central-periférica, lugar improvisado para acolher artistas em risco.
Além de Kamilla Yanar, que após a invasão da Ucrânia pela Rússia veio para Portugal ao encontro da irmã, chegaram Oleksii Voitikh, Valerie Karpan, Maryna Khrypun e Yehor Poe, que se encontravam fora da Ucrânia no início da guerra, em Fevereiro, todos eles encaminhados pela organização internacional sem fins lucrativos Artists at Risk.
Em Alcobaça, querem “comunicar a cultura ucraniana”, “partilhar conhecimento” e activar a “diplomacia cultural” contra o que chamam de “apropriação pela Rússia da cultura ucraniana”, explica Valerie Karpan ao JORNAL DE LEIRIA. Até ao final do ano, contam inaugurar mais três exposições, que vão explorar o tópico da residência artística: “Home and hospitality”, ou seja, casa e hospitalidade. Querem também colaborar com outros grupos, em Portugal e no estrangeiro, incluindo espaços geridos por artistas na Ucrânia.
“Temos muitas tarefas aqui e em diferentes áreas”, observa Oleksii Voitikh.
Nos últimos meses, antes de chegarem a Portugal, trabalharam na Polónia e em França. Estão preocupados com a “propaganda” e as “narrativas russas”, porque acreditam que “têm mais influência” no domínio mediático. “É importante destruir mitos”, assinala. E afirma que a “guerra colonial” em curso junta a ofensiva militar a uma tentativa de aniquilação cultural.
Entretanto, não regressar à Ucrânia é uma “escolha pessoal”, defendem. “Não interessa onde estou a trabalhar”, salienta Oleksii. “Talvez seja mais produtivo aqui porque não tenho de procurar abrigo nem mantimentos”.
Na residência em Alcobaça, esperam “abrir a discussão” sobre como serem solidários “com as pessoas na Ucrânia” enquanto vivem fora do país. Valerie e Maryna estão a preparar um encontro internacional que vai decorrer em simultâneo, no Verão, numa cidade alemã e numa cidade polaca.
Abertura antecipada
A central-periférica deveria iniciar actividade em 2024 ou 2025, depois de um programa de reabilitação a cargo do Crea, ateliê de arquitectura sediado no Porto. “Contudo, dada a urgência e a necessidade de apoiar artistas no imediato, considerou-se necessário que as instalações pudessem ser usadas desde já, para o acolhimento de artistas que se encontram em situação de risco”, lê-se na nota de divulgação. “A improvisação foi ainda mais além quando Kamilla Yanar expressou o desejo urgente de apresentar o seu trabalho e contar as histórias de pessoas que tiveram que fugir de suas casas em busca de um lugar no mundo”.
O programa de residências que traz os cinco primeiros artistas a Alcobaça resulta de uma parceria entre a central-periférica, a organização cultural Babel, a Artists at Risk e a Fundação Oriente.
O projecto da central-periférica é coordenado por Margarida Saraiva (curadora e presidente da Babel) e Tiago Quadros (arquitecto), que garantem a direcção geral e artística, com a direcção de produção a cargo de Ana Margarida Battaglia Abreu, artista plástica formada nas Caldas da Rainha. Querem estabelecer “um lugar seguro” onde durante os próximos 12 meses se poderá assistir “a um programa criado pelos próprios artistas”.
“A obra que estamos a apresentar na central-periférica não tem um interesse étnico ou etnicizante. É relevante porque se reporta de forma íntima e subjectiva ao tempo que vivemos”, comenta Margarida Saraiva. A exposição “é uma apresentação simples e despretensiosa para dar resposta à necessidade da própria artista de partilhar as histórias de pessoas que viveram um processo parecido com o seu próprio”.
Redes internacionais
Margarida Saraiva confia que as residências artísticas “oferecem tempo, espaço e recursos aos artistas para eles poderem criar”, mas “também têm impacto nas comunidades locais”. E a Babel – que tem sede em Macau e toma como missão gerar oportunidades de investigação e aprendizagem nos domínios da arte contemporânea, arquitectura e ambiente – ambiciona investir em intercâmbios e na inserção do projecto “num conjunto de outras redes que são de natureza internacional”.
No final, o objectivo é materializar um espaço de produção multidisciplinar e transdisciplinar, com zonas de trabalho, cafetaria e galeria, além de alojamento para 10 artistas em simultâneo. No qual coexistam disciplinas artísticas e não artísticas, para, de caminho, apoiar o tecido criativo da região centro e oeste de Portugal, em articulação com outras periferias nacionais e internacionais.
Localizada no centro histórico de Alcobaça, com limites definidos pelo rio Alcôa e pelo Jardim do Amor, a central-periférica inclui, para além de uma casa, um jardim com cerca de 1000 metros quadrados.