A nova Lei de Bases da Habitação, em vigor desde Outubro, lembra que todos têm direito a uma casa. E que o princípio – geral, universal e consagrado na Constituição da República Portuguesa – se aplica independentemente da etnia, sexo, língua, território de origem, nacionalidade, religião, crença, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, género, orientação sexual, idade, deficiência ou condição de saúde.
Na prática, no entanto, nem sempre é assim.
O testemunho mais recente chega da associação InPulsar, que está a trazer para Leiria, em parceria com o Município, o programa Casas Primeiro, para tirar os sem-abrigo da rua. Um mês depois, continua sem conseguir fechar arrendamentos. Em parte, pela escassez de apartamentos T1 e T0 disponíveis no mercado. Mas, também, porque ainda há quem se deixe dominar pelo preconceito.
“Está a ser difícil, mais difícil do que eu esperava”, admite o presidente da InPulsar, Miguel Xavier, que se manifesta “atónito” e “extremamente desiludido” com a resposta da agência de mediação imobiliária a que inicialmente recorreu, uma recusa motivada por estarem em causa pessoas sem-abrigo: “Tenho as casas de que o senhor precisa, mas não vale a pena falar, porque o proprietário nem cães aceita”.
O programa Casas Primeiro é financiado pela Câmara de Leiria, que garante um ano de rendas e três meses à cabeça. Contempla também mobiliário e equipamento básico, consumos de água, electricidade e gás e acompanhamento diário por uma equipa de acção social.
Miguel Xavier sublinha que o modelo é originário de Nova Iorque, está validado na Europa e existe há 10 anos em Lisboa, onde tem uma taxa de sucesso acima de 90%, ou seja, os participantes não voltaram a viver na rua e os contratos são respeitados. “Se este projecto arrancar bem, podemos aumentar o número de utentes”, realça o presidente da InPulsar.
São quatro os beneficiários, para já, mas, em Leiria, os levantamentos realizados apontam para um total de 16 sem-abrigo.
Em Portugal, a Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, publicada em Diário da República há quatro meses, prevê que ninguém fique na rua por mais de 24 horas. E visa erradicar o problema até 2023.
Ficam à porta
No Bairro da Cova das Faias, em Leiria, há uma história que tem semelhanças com a anterior e é sobre como Lídia e Filipe ficaram sem uma casa noutra zona da cidade por serem, ambos, de etnia cigana. Um vizinho queixou-se, durante a mudança. E o senhorio declarou o acordo sem efeito, devolvendo a primeira renda.
“Souberam que erámos ciganos e mandaram-nos embora. Já com as coisas lá dentro e tudo”.
Casados, 19 e 22 anos de idade, dois filhos, moram com a família numa habitação de três quartos que acomoda três adultos e sete crianças. Daí o desejo de sair para um lugar com mais espaço e conforto. Actualmente, Lídia e Filipe estão inscritos na Câmara de Leiria, à espera que lhes seja atribuído um imóvel de renda social. Ela é doméstica, ele compra e vende automóveis.
O episódio que viveram há um ano não é o único em que são vítimas de discriminação. Garantem que há cafés e bares onde Filipe fica à porta, lembram os sapos colocados nas lojas para afastar ciganos, contam que nos supermercados é comum serem vigiados pelos seguranças através dos corredores.
“Em todo o lado há racismo. Julgam as pessoas sem as conhecer”. Ele dá mais um exemplo, de quando trabalhou no estrangeiro: “Falavam bem comigo. A partir do momento em que souberam que eu era cigano, mudaram as maneiras deles”.
De acordo com a InPulsar, que tem um projecto a decorrer na Cova das Faias, quando os moradores informam no currículo que são do Bairro, raramente os chamam a entrevistas de emprego. Para o evitar, a associação colabora agora directamente com empresas de trabalho temporário que depois tentam colocar os candidatos (de etnia cigana, mas não só).
Gay não entra
Pelo recém-criado Movimento LGBTI Leiria, que representa lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexo, o porta- voz João Cartaxo reporta ofensas no trabalho, barreiras no acesso ao emprego e, mais uma vez, discriminação no arrendamento de casa. São experiências que a comunidade homossexual continua a viver e que colocam os livros de Direito à frente de algumas mentalidades.
“A nível legislativo já avançamos muito, somos protegidos pela Lei”, afirma, mas, “ainda há trabalho a fazer junto das populações, principalmente no seio familiar”.
Fala com conhecimento de causa: já sofreu agressões verbais e físicas de um colega de empresa e assegura que há “muito bullying homofóbico” em contexto laboral. “Às vezes são as brincadeiras que parecem inocentes”, mas que “influenciam o bem-estar da pessoa”.
O movimento LGBTI Leiria pretende contribuir, precisamente, para “abrir mentes” e afirmar “uma comunidade que merecer ser vista como outra qualquer”, explica ao JORNAL DE LEIRIA. Segundo João Cartaxo, em alguns sectores o preconceito ainda transforma a homossexualidade numa desvantagem, por exemplo, nas entrevistas de recrutamento. E de tempos a tempos repetem-se os relatos de proprietários que recusam habitação a casais do mesmo sexo. “Uma clara discriminação por orientação sexual”, assinala.
Daí que, a maioria, em Leiria, “ainda vive dentro do armário”. Só aparece “de vez em quando” e num ambiente “muito escondido”. Para combater a intolerância, estão agendadas para os próximos meses várias sessões públicas de informação. E em 2020 realiza-se a primeira marcha LGBTI+ em Leiria.
A nova Lei de Bases da Habitação define que as políticas públicas se baseiam na universalidade do direito a uma habitação condigna e na igualdade de oportunidades. Com medidas de discriminação positiva, quando necessárias.
151 famílias no distrito de Leiria precisam de ser realojadas
Nove municípios do distrito de Leiria identificaram famílias a realojar – 151, no total – no âmbito do Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional, publicado no ano passado, que identifica situações de precariedade habitacional em Portugal, ou seja, em que os alojamentos não têm as condições mínimas de habitabilidade.
O relatório, um diagnóstico exaustivo de carências habitacionais graves no País, resulta da auscultação aos municípios pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana e mostra que Peniche (36), Marinha Grande (31), Alcobaça (28) e Nazaré (28) são os concelhos do distrito de Leiria com maior número de casos sinalizados, mais do que Pombal (15), Óbidos (6), Alvaiázere (3), Caldas da Rainha (3) e Pedrógão Grande (1).
O Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional teve por objectivo servir de base à preparação e implementação do 1.º Direito – Programa de Apoio ao Direito à Habitação, mas enquadra-se, também, no documento Para uma Nova Geração de Políticas de Habitação, aprovado em Conselho de Ministros a 4 de Outubro de 2017.
Nos resultados do inquérito, junto dos 308 municípios portugueses, constata-se que 187 municípios reportam carências habitacionais, com 25.762 famílias em situação habitacional claramente insatisfatória. A maioria (74%) nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto.
Leiria (151 casos) está entre os distritos com menor número de famílias identificadas a necessitar de uma resposta habitacional – melhor só Vila Real (103), Castelo Branco (40 famílias) e a Região Autónoma dos Açores (131). Pelo contrário, os distritos de Lisboa e do Porto são os que apresentam, a nível nacional, um maior número de famílias a realojar. Respectivamente, 9.869 e 5.084 agregados. Em terceiro lugar, aparece Setúbal (4.161).
Quanto à tipologia de alojamento das quase 26 mil famílias a necessitar de casa nova, verifica-se uma forte prevalência de barracas e construções precárias (47%), enquanto 25% correspondem à categoria conjunto urbano consolidado degradado. Só depois surgem os bairros sociais (15%), que reflectem, tipicamente, edificações da primeira metade do século XX actualmente degradadas e situações de alojamento temporário que já ultrapassaram largamente a sua duração expectável. O documento revela também que 26% das construções são clandestinas e que em 15% dos casos há arrendatários do sector público.
No relatório final do Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional é apresentado um cenário de estimativa de investimento, no quadro do Programa 1.º Direito, para suprir as carências habitacionais sinalizadas pelos municípios. Assim, o realojamento das 25.762 famílias identificadas no território nacional, tendo por base os valores médios previstos para cada tipo de solução preconizada, teria um custo aproximado de 1.700 milhões de euros. Isto num modelo de financiamento idêntico aos programas de realojamento PER e PROHABITA, com parcelas de capitais próprios, empréstimos e comparticipações a fundo perdido.
O documento defende que a aquisição ou a reabilitação de fogos devolutos do parque público ou privado deverão ser as soluções de realojamento preferenciais em detrimento da construção nova. Mas aponta também como soluções a reabilitação de fogos de habitação social ou de propriedade própria e o arrendamento de prédios ou fracções autónomas de prédios urbanos no parque habitacional, além da aquisição de terrenos e construção de empreendimentos habitacionais, em casos excepcionais.
De acordo com o relatório, que se baseia numa análise comparativa e cruza dados com os Censos 2011 e o Inquérito à Habitação Social em Portugal, de 2015, promovido pelo Instituto Nacional de Estatística, a totalidade do parque habitacional português recenseado como vago ascende a cerca de 735 mil fogos, ou seja, largamente superior ao número de famílias com graves carências habitacionais identificadas pelos municípios. Quanto ao total de fogos de habitação social vagos à data do inquérito, dariam para realojar apenas 27% das famílias sinalizadas.
Discriminação e racismo preocupam Amnistia
O direito à habitação é o tema da primeira sugestão de recomendação a Portugal por parte da Amnistia Internacional, num documento publicado já este ano, em Maio. Em causa, a necessidade de garantir mecanismos de defesa do acesso a habitação condigna e de protecção contra desalojamentos forçados. Em especial, nos grandes centros urbanos.
Já antes, no relatório de 2017/2018 referente a Portugal, a Amnistia Internacional assinala as condições habitacionais inadequadas das comunidades ciganas e de ascendência africana. E apoia-se no testemunho da relatora especial das Nações Unidas: há casos de discriminação no acesso a habitação condigna e outros em que as pessoas vivem abaixo dos padrões do direito internacional dos direitos humanos.
Mas há outros alertas da Amnistia Internacional sobre a situação em Portugal: prendem-se com discriminação, racismo e xenofobia, violência de género, migrantes, requerentes de asilo e refugiados, condições de detenção e prisão, tortura, outros maus tratos e uso excessivo da força pela polícia.
Segundo Mariana Violante, “a questão da violência de género tem muita expressão em Leiria”, desde logo porque, “no ano passado, o distrito foi o que teve maior número de mulheres mortas pelos companheiros”.
A porta-voz do Grupo de Leiria da Amnistia Internacional lembra que a discriminação resulta normalmente de “um cruzamento de circunstâncias”, em que os aspectos étnicos e culturais se cruzam com as condições económicas e a oportunidade de estudar. Daí a Amnistia Internacional defender a desagregação de estatísticas com referência a etnia, nacionalidade e origem. “Para falarmos de discriminação temos de conhecer os dados e neste momento os estudos que são feitos e os números que são avançados são muito difíceis de obter. Torna muito difícil perceber quais são os números reais. As nossas suspeitas são de que os números ficam muito aquém da realidade”.
Patrícia Grilo, técnica da Rede Europeia Anti-Pobreza em Leiria, nota que a discriminação, o racismo e a xenofobia constituem “um fenómeno complexo” e que “está a ser feito um trabalho no sentido de caminharmos para a integração das comunidades”. No entanto, “ainda há muitos preconceitos e estereótipos negativos associados aos estrangeiros e às comunidades ciganas”, que é necessário “desconstruir” com “informação” e divulgação de “experiências positivas e boas práticas”.
Paulo Carreira, presidente da Amigrante, que em Leiria dá apoio gratuito na legalização de cidadãos estrangeiros, faz um balanço positivo, na comparação com outros tempos, para dizer que é “muito raro” chegarem à associação relatos de discriminação de imigrantes, apesar do aumento do fluxo de brasileiros e ucranianos, entre outras nacionalidades.
No ano passado, a Amigrante realizou 2011 atendimentos, mais do dobro do que em 2017. “E este ano já ultrapassámos os números de 2018”. O que continua a acontecer são os arrendamentos de alojamento sem contrato, que dificultam a obtenção de comprovativos de morada, e o primeiro mês de trabalho à experiência, sem vínculo nem pagamento.
Com experiência no Bairro da Cova das Faias, em Leiria, onde coordena o projecto Giro Ó Bairro, da associação InPulsar, o técnico de serviço social Alexandre Santos fala de uma “mudança de mentalidade” entre as famílias ciganas, protagonizada sobretudo pelos mais jovens, que prolongam o percurso na escola e procuram cursos de formação e emprego, o que está “a abrir outras portas”.
Ali, com uma população “muito frágil”, vítima de intolerância, a InPulsar trabalha desde cedo com as crianças, mas acaba por garantir suporte às famílias em várias áreas, para diminuir as desigualdades.
No ano passado, em Portugal, a CICDR – Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial recebeu 346 queixas em razão de origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem, com as três primeiras posições, por factor de discriminação, a serem ocupadas pela etnia cigana (21,4%), cor da pele negra (17,6%) e nacionalidade brasileira (13%).
Opor Direito e preconceito tende a invisibilizar a sobreposição entre um e outro. O racismo e o sexismo são formas de opressão estrutural, historicamente construídas, que atravessam Estado, Direito, instituições, grupos, indivíduos, esquerda e direita. Afirmar a ausência de preconceitos não seria expressão de uma opinião, mas negação das evidências. Assegurar constitucionalmente a igualdade é insuficiente. Precisamos de um Estado que combata activamente as hierarquias sociais em vez de as reproduzir. A violência policial a que assistimos no bairro da Jamaica ou o tratamento diferenciado de uma manifestação de pessoas negras na Avenida da Liberdade, o espancamento dos jovens da Cova da Moura por quem tem dever de proteger, as decisões judiciais que culpabilizam vítimas de abuso sexual, os muros físicos e metafóricos que separam grupos, não são excepções à regra, ainda que possam ser interpretados como tal por quem tem o privilégio de ser confrontado com as violências estruturais apenas quando são mediatizadas. Usufruir do privilégio branco não significa ser activamente racista, mas ter licença para ignorar que o racismo existe. Desse lugar, é possível argumentar que andamos a inventar divisões. Estas, no entanto, vêm de longe. Pode dizer-se que uma criança não vê cor. Mas, se é certo que ninguém nasce racista, escutemos relatos de quando uma criança se descobre negra. Com frequência, não é um momento de auto-identificação, mas um processo de hetero-identificação, acompanhado da desvalorização do seu corpo e da percepção de barreiras sociais. Para uma criança cigana, a escola e os seus manuais monoculturais significam o confronto com a depreciação da sua cultura. Mais de 500 anos de comunidades ciganas em Portugal não chegaram para lhes dar lugar nos livros de história. A tolerância é insuficiente, porque se alicerça na condescendência sem quebrar hierarquias entre culturas. É tempo de reconhecer a continuidade de opressões do passado, converter diferenças verticais em diferenças horizontais e promover aprendizagens recíprocas que nos fortaleçam colectivamente. Mais do que aceitar-nos nas nossas diferenças, saibamos enriquecer-nos dessa diversidade.
Texto de Sara Araújo, socióloga e investigadora na Universidade de Coimbra
Todos somos iguais – e nenhuma opinião em contrário é admissível ou justa. Não quer isto significar que mesmo num País tolerante, como o nosso, não haja episódios de discriminação. Mas por todas as situações que nos chocam e ofendem, há toda uma vida de relações perfeitamente saudáveis, que são a enorme maioria. Essas são, felizmente, as próprias e habituais dos portugueses. Esta qualidade da maior parte das pessoas não impede, porém, que alguns possam recear o que lhes pareça desconhecido ou aparente ameaçar os seus hábitos e cultura. Esse sentir deve ser escutado, principalmente para que possa ser compreendido e resolvido. Porque pode resultar do medo, da incerteza quanto ao futuro. E isso pode fazer nascer ou crescer preconceitos e atitudes discriminatórias, principalmente se alimentado por discursos inflamados, tantas vezes pouco sérios e intencionalmente manipuladores, e pela desinformação acrítica a que estamos cada vez mais sujeitos. Em qualquer caso, não tenho dúvidas que a maior arma contra o preconceito é a Informação. E que se a Educação não falhar, as diferenças de género, de cultura, de origem ou de comportamento não serão obstáculo ao reconhecimento do mérito e do trabalho. Conciliar informação e educação, ambas com qualidade, pressupõe um enorme esforço de toda a comunidade, dos pais, da escola e do Estado, num desígnio duradouro. Mas ainda é longo o caminho a percorrer para que todos tenham acesso a condições semelhantes, independentemente do lugar onde nascem ou do enquadramento socioeconómico que tenham. Para este fim é fundamental trabalhar enquanto Sociedade. E este percurso tem mesmo que ser feito, porque nem o preconceito nem a discriminação acabam por decreto. Se, por fim, somos todos iguais perante a Lei, há que assegurar o efectivo cumprimento dessa Lei. É uma função do Estado e de todos nós, tarefa da qual não nos podemos demitir. É um papel árduo e exigente, mas nada do que é verdadeiramente importante, nada do que vale a pena, é fácil.
Texto de Ana Pedrosa-Augusto, advogada e vice-presidente do Aliança