As farmácias vão disponibilizar medicamentos destinados a doenças como o cancro ou infecções como o VIH. Como é que receberam esta notícia?
É uma notícia positiva, principalmente, para os doentes, e esse é o aspecto mais importante: ter a possibilidade de dispensar medicamentos em proximidade, que até agora apenas eram dispensados em farmácias hospitalares. A Ordem dos Farmacêuticos (OF) tem estado a preparar uma norma técnica, que seja o guião da intervenção dos farmacêuticos neste processo. O nosso objectivo é que os doentes elegíveis possam ter acesso a estes medicamentos em proximidade, que a qualidade da dispensa se mantenha e que a informação que é prestada ao doente e também o seu feedback seja o mesmo.
Há risco de faltarem estes medicamentos?
O processo continua centralizado no hospital, que presta cuidados ao doente e gere a terapêutica. Apenas o dar acesso ao medicamento em proximidade é que é um papel do farmacêutico comunitário. Há estudos, incluindo um que foi publicado pela Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares, que demonstram a satisfação do doente por pilotos que já foram sendo desenvolvidos em alguns hospitais. Esse estudo demonstra que os doentes têm de se deslocar, muitas vezes, centenas de quilómetros. Se pensarmos num doente que, por exemplo, vive no Baixo Alentejo, e tem de se deslocar todos os meses a Lisboa, é um problema em termos de disponibilidade, de tempo, de comodidade e financeiro. Se pensarmos nos doentes que são seropositivos e que têm de ter acesso à terapêutica HIV nos hospitais, muitos deles, estão estáveis, e só precisam de uma consulta de seis em seis meses ou anualmente. Têm uma vida activa normal e terem de faltar todos os meses ao trabalho apenas para se deslocarem à farmácia hospitalar, quando podem ter esse acesso em farmácia de proximidade é muito relevante, quer para a qualidade de vida dos doentes quer para a economia do País. Esse estudo apontava para 185 milhões de euros de poupança em deslocações. Isto é impressionante.
Num momento em que milhares de portugueses não têm médico de família, qual é o papel das farmácias?
Têm tido um papel complementar ao médico, contribuindo para evitar uma maior pressão quer nos médicos dos cuidados primários quer nas urgências hospitalares. Esse é um papel que ainda está pouco explorado em Portugal, mas que já acontece noutros países desenvolvidos da Europa, na Austrália ou no Canadá. Com um SNS [Serviço Nacional de Saúde] em dificuldades, que não responde a todas as necessidades, toda a capacidade instalada é pouca para garantir o acesso à saúde. Se os farmacêuticos comunitários conseguirem, através da sua intervenção estruturada e integrada, retirar pressão ao SNS… Dou um exemplo: uma infecção urinária não complicada é uma não urgência do ponto de vista técnico, mas para quem a tem, necessita de a ver resolvida. Se o farmacêutico tiver uma intervenção protocolada, que identifique o tipo de infecção e o antibiótico indicado, retira provavelmente 90% dos casos do sistema. É só um exemplo de intervenções que podem ser feitas de forma estruturada.
Têm sido dados passos?
Sim. Aliás, não podíamos ir noutra direcção, porque é o que está a acontecer em todos os países. Às vezes, tendemos a ser conservadores o que é contraproducente relativamente aos direitos e interesses dos doentes. Temos de ser um bocadinho menos conservadores, aprender com aquilo que os outros já fizeram e não ter medo de tomar decisões. Em muitas destas intervenções é preciso ter acesso a dados clínicos dos doentes e em Portugal a sua partilha não é automática nem facilitada. Essa é uma realidade que urgentemente temos de mudar, porque facilita uma melhor prestação de cuidados aos doentes.
Qual tem sido o papel das farmácias para com os idosos?
Esse papel é uma parte importante do tempo do farmacêutico comunitário. Temos uma população envelhecida, portanto, temos cada vez mais pessoas a viverem mais tempo com mais doença. Os casos de doenças que são curáveis com a terapêutica são limitados. Normalmente, transformamos doenças agudas em doenças crónicas. A pessoa quando vive mais anos vai coleccionando doenças crónicas cuja terapêutica ajuda a viver com elas. Do ponto de vista do exercício dos farmacêuticos é um desafio, porque pessoas com comorbilidades e com terapêuticas em elevado número têm um maior risco de reacções adversas e de interacções entre as diferentes terapêuticas. Um dos serviços que os farmacêuticos têm de ter também estruturado é a revisão da terapêutica. É garantir que não há duplicações de terapêutica que foram prescritas por médicos de diferentes especialidades e que não há sub-dosagens, sobredosagens, medicamentos que estão em falta porque o idoso se esqueceu de renovar a prescrição, etc. Esse é um papel fundamental do farmacêutico, às vezes, pouco reconhecido. Preocupa-me muito esta população envelhecida que está sozinha ou institucionalizada. É fundamental que o farmacêutico também se torne mais próximo destes doentes que precisam de acompanhamento para gerir adequadamente a terapêutica. Outro aspecto é que o farmacêutico tem de sair da farmácia e prestar um serviço ao domicílio.
É preciso reconquistar o poder de ‘doutor’ que o farmacêutico tinha no século passado?
Não quero olhar para isto como um poder, mas importância e utilidade. Os farmacêuticos, que tinham uma grande intervenção na comunidade, passaram a ser menos visíveis com a industrialização dos medicamentos, que deixaram de se produzir na farmácia. A verdade é que os farmacêuticos sempre asseguraram a dispensa de medicamentos, mesmo os industrializados. E há uma diferença entre vender e dispensar. A lei obriga o farmacêutico a garantir que os medicamentos são dispensados com o conjunto de informação adequada para o seu uso racional, quer em termos de eficácia quer em termos de segurança. Isto é uma intervenção que muitas vezes não é valorizada, mas é fundamental. Estas coisas que parecem subtis, fazem a diferença entre uma adesão ou não à terapêutica. Neste momento, estamos a pedir aos farmacêuticos mais papéis na sua área de intervenção, de acordo com a sua formação. Este é um aspecto que ajuda a desenvolver a profissão numa determinada direcção, de maior intervenção no doente e que pode levar a uma outra discussão. As intervenções geram um valor em saúde e têm um valor. Terá de ser discutido, não pela OF, a remuneração destas novas intervenções. O voluntarismo e profissionalismo são áreas diferentes. Intervenções em saúde são profissionais, não são baseadas no voluntarismo.
Os farmacêuticos estavam sub-aproveitados?
Estavam. As pessoas não têm a noção da formação de farmacêutico, que tem um mestrado integrado em Ciências Farmacêuticas. Há uma formação superior, altamente diferenciada, muito virada para a clínica, que cria um potencial imenso no farmacêutico, que muitas vezes não é adequadamente explorado. Se investimos na formação, cara, de profissionais farmacêuticos e não aproveitamos o seu potencial, é má gestão de recursos.
As falhas de medicamentos continuam a fazer-se sentir-se. Como inverter esta situação?
Não podemos olhar para o problema que parece ter todo o mesmo resultado, mas ver que resulta de causas de diferentes situações. Temos problemas extrínsecos como o fabrico ou a falta de matérias-primas. E depois temos os nacionais, como o preço dos medicamentos e as actividades de exportação paralela. Tivemos uma medida muito positiva do Ministério da Saúde, que foi aumentar em 5% o preço dos medicamentos até 10 euros, e 2% entre 10 e 15 euros. Somos dos países europeus onde os preços dos medicamentos são mais baratos e, portanto, há uma tendência para exportar a partir de Portugal para mercados mais caros. Exportar é bom para a economia do País, mas não se pode exportar se não for garantida a cobertura das necessidades nacionais. E, às vezes, aqui é que há algum desequilíbrio que leva depois às falhas. Falhas sempre houve, mas o que me preocupa é a frequência destes casos, que tem vindo a aumentar.
E o tempo de falha?
É verdade. Não se pode dizer que não é um problema. Podemos dizer que não é um problema grave ou que temos alternativas. Mas, se não nos prepararmos, qualquer dia temos um problema de saúde pública e, por isso, é que é preciso tomar medidas, identificar bem as causas e ir resolvendo-as. Sempre que um doente vai à farmácia e lhe dizem ‘não tenho, mas há uma alternativa’, é um problema. As pessoas não iniciam a terapêutica hoje, têm de voltar ao médico a pedir nova prescrição e ir de novo à farmácia. Não queremos isto num País desenvolvido. Há um estudo que demonstra que hoje, por cada dia de trabalho do farmacêutico, mais de quatro horas são a tentar encontrar um distribuidor, um laboratório que possa ter aquele medicamento ainda em stock. Isto é dramático. Outra coisa é ter de gerir a oferta e a procura. Se tenho dez doentes e só três embalagens fico com um dilema ético: quais são aqueles que merecem ter as três embalagens disponíveis?
É necessária uma reserva nacional?
É necessária uma reserva estratégica nacional. Não quero confundir reservas estratégicas com falhas. A reserva estratégica é ter o País preparado para, em situações de emergência, ter os medicamentos que são precisos. Não temos essa reserva e é urgente que tenhamos e que seja uma reserva estratégica verdadeiramente útil e funcional. Há muitas vezes uma ideia de que a reserva estratégica é ter um armazém enorme e muitas embalagens de tudo aquilo que é preciso se, por exemplo, cair um avião em Lisboa, se houver um terremoto ou uma doença infecciosa. O que é importante é que seja uma reserva estratégica, que envolva todos e que seja viva. Não é armazenar tudo e depois passa o prazo de validade e vai tudo para o lixo. Não é assim que se faz hoje. É garantir, com os diferentes intervenientes do circuito do medicamento, que uma quantidade em circulação é aumentada em x por cento, que se mantém em circulação, e o Estado tem a possibilidade de, sempre que é necessário mobilizar esse x por cento adicional. É urgente Portugal ter uma reserva estratégica de medicamentos e de dispositivos médicos para situações complicadas. A reserva estratégica não resolve as falhas, mas nalguns casos pode resolver falhas pontuais. Se eu tiver um antibiótico na reserva estratégica e se ele de repente me falta, é natural que possa ir lá buscá-lo. Se eu não tiver reserva estratégica, não tenho a opção.
Assim, há maior risco das vendas de medicamentos na internet?
Esse é um verdadeiro problema de saúde pública. Os portugueses, tal como os cidadãos de outros países, recorrem à internet por diversas razões: ou porque o medicamento não está disponível em Portugal, ou porque há barreiras de acesso, nomeadamente o médico não prescrever. Há toda uma rede de falsificadores internacional com sites muito credíveis, onde as pessoas ficam com a sensação de ter acesso a um medicamento de qualidade. Os estudos demonstram que mais de 50% dos medicamentos que são adquiridos assim, são falsificados. É importante ter a noção que a dificuldade de acesso no mercado legal, pode levar a que as pessoas mais facilmente sintam o apelo para comprar na internet. É também importante que as autoridades tenham um contributo na literacia das pessoas, para que percebam que comprar um medicamento na internet não tem os mesmos riscos do que comprar um livro.
Como está posicionado Portugal na investigação e ensaios clínicos de medicamentos?
Uma empresa que está a desenvolver um medicamento, vai desenvolver ensaios clínicos nos países mais competitivos. Em Portugal, temos um problema de competitividade. Há muitos anos que os nossos políticos dizem que a investigação clínica é estratégica, mas teimamos em não criar condições que nos permitam ser competitivos com outros países da nossa dimensão. E era fácil, tendo uma rede que se chama SNS, ter uma abordagem estruturada e uma estratégia relativamente à investigação clínica. A maioria dos ensaios clínicos continuam a ser feitos em serviços clínicos dos hospitais do SNS. O que nos preocupa muito é o abandono dos farmacêuticos hospitalares do SNS, nomeadamente aqueles que estão dedicados aos ensaios clínicos. Não havendo farmacêuticos dedicados ao ensaio clínico, é um passo limitante para que aquele hospital se torne competitivo. Infelizmente, há outras vias que também contribuem para a falta de condições da investigação clínica, o que faz com que Portugal, que podia trazer milhões de euros em ensaios clínicos e com isso melhorar as estruturas hospitalares, permitir aos profissionais estarem mais preparados para a investigação e, ao mesmo tempo, dar um acesso mais precoce a medicamentos inovadores a determinado tipo de doentes, não o faz por falta de estratégia.
As farmácias de hoje são quase clínicas. Este é o caminho?
Para mim, uma farmácia é uma farmácia e não deve ser uma clínica. Costumo estimular os colegas a desenvolverem novos serviços na nossa área de intervenção, naquelas em que nos diferenciamos. A vacinação é um exemplo. A revisão da terapêutica é outro. As farmácias devem ser o espaço por excelência da intervenção do farmacêutico na comunidade e não de outros serviços que indiferenciam a farmácia, que criam momentos de atrito que são evitáveis com outras profissões e que não acrescentam valor.
Perito internacional