Tem o seu nome inscrito numa placa numa cadeira da plateia do Teatro Politeama, entre nomes de outros artistas, como Eunice Muñoz, Simone de Oliveira ou Ruy de Carvalho. Esperava um reconhecimento desta magnitude por parte de Filipe La Féria?
Eu não esperava, sinceramente. Sei que ele é muito meu amigo e tive muitas provas disso. Mas não pensei que ele me tivesse ao nível dos maiores. Não tenho nada a ver com o Ruy de Carvalho, nem com a Rita Ribeiro, nem nada disso. Mas ele é uma pessoa que surpreende quando menos se espera.
Estreou-se nas produções de La Féria aos 50 anos. Que qualidades lhes reconheceu o encenador?
Ele já me tinha visto antes de eu ir para Angola. Porque eu tinha estudado cá em Portugal. E cantava. Depois casei e fui para Angola para começar a minha carreira de professora. E ele deixou de me ver e eu também não tinha contactos muito chegados com ele. Quando cheguei de Angola, já casada e mãe, queria arranjar uma maneira de me meter na vida artística. Eu queria ir para o palco. Mas [LER_MAIS]o meu pai dizia-me ‘estiveste tanto tempo fora que já ninguém se lembra de ti’. Um dia fui a um casting que ele fez. Queria fazer um espectáculo com novos talentos. Fez um casting no Politeama e foi muita gente. Quem me avisou que havia esse casting foi o João Portugal, que nessa altura estava em Lisboa. Eu estava na Marinha Grande e nem sabia. ‘O Filipe La Féria vai fazer agora um casting no Politeama que é a sua cara chapada. Faça favor de lá ir’, disse-me ele. Porque, entretanto, na Marinha Grande, na Escola Secundária Eng.° Acácio Calazans Duarte, já eu tinha feito um espectáculo com 70 e tal figuras, escrito por mim, onde entravam alunos, pais de alunos, professores, empregados da escola. Envolvi a comunidade escolar toda e fizemos no Teatro Stephens um espectáculo que foi uma coisa séria. Então fiz o casting. Levei um sketch com o Mário Laranjo. Ensaiei com ele, mandei fazer roupas, tudo. Tinha 50 anos naquela altura. Encontrei uma fila pela rua fora, algumas 200 ou 300 pessoas, rapazinhos novos, com viola, e eu dizia ao Mário ‘eu sou a avó desta gente toda’, ‘eles vão mandar-me para casa’.
Enganou-se.
Quando viu a minha prova, o La Féria disse-me ‘Onde tem andado? Estou há anos à sua procura’. Eu e o Mário ganhámos e ficámos para fazer um grande espectúculo no Politeama com vários artistas. A Paula Sá, por exemplo, o La Féria descobriu-a também nessa altura. E disse-me que eu ficava a trabalhar com ele. Expliquei que não podia, que era professora na Marinha Grande. Respondeu-me ‘arranje-se como quiser e daqui já não sai’. Fiz O Vison Voador, que passou na televisão, com a Io Appolloni, a Helena Isabel, o Luís Aleluia, com esses todos. Comecei com as idas a Lisboa, diárias, durante a noite, sozinha, de Inverno, com chuvas torrenciais, com o carro a patinar, durante oito anos. Até fomos falar com a ministra da Educação, para saber se eu podia meter uma licença sabática. Não deram licença. Aí chorei muita lágrima. Porque as peças que eu fazia, a certa altura iam para o Porto. Foi um bocado duro.
Mas agarrou as oportunidades e trabalhou com os melhores.
O mais interessante foi isso. A dada altura, o La Féria disse-me ‘você vai escrever uma série para a televisão comigo’. Escrevi com ele uma série chamada Casa da Saudade, que era passada num lar de idosos, que tinham sido artistas no antigamente. Aí, contracenei com os melhores actores de Portugal, os maiores. Carmen Dolores, Helena Vieira, Artur Agostinho, Glicínia Vieira Quartin, Maria José Valério, Virgílio Teixeira, etc.
Tem espírito de vedeta?
Eu? Não. Pelo contrário. Mas tinha a certeza que era capaz de contracenar com qualquer grande actor, que era capaz de estar ao seu nível, ou perto disso. Sabia, desde pequenina.
Muito se fala hoje de assédio no meio artístico. Passou por situações deste tipo?
Não. Porque além de actriz, eu era directora de cena. Tinha de impor respeito. Era professora e estava habituada a manter a ordem e o respeito. E quando havia qualquer coisa que não me agravada, tinha carta branca do senhor Filipe La Féria, para ir ter com a actriz ou com o actor, fosse ele o melhor do mundo, e ralhar com ele.
E ralhou?
Então não ralhei. Houve alguns que deixaram de me falar. Mas tiveram sempre respeito por mim. Até os técnicos, os rapazes mais novos, dizem-me, quando vou lá, que não há ninguém naquele teatro que não tenha um enorme carinho por mim. Desde o técnico ao actor.
Ao contrário do que poderá parecer, Helena Rocha não teve uma aparição súbita no meio artístico e já tinha gravado discos durante os tempos de estudante, na metrópole.
Foi nessa altura que dei os primeiros passos no meio artístico, a cantar. O meu maior êxito discográfico foi O Calhambeque, do Roberto Carlos. Ele veio do Brasil, com o seu empresário, falar comigo e com o senhor Martins, que era o meu empresário, da Casa Valentim de Carvalho. Para gravarmos ao mesmo tempo. Ele no Brasil e eu em Portugal.
Mas quando regressa a Angola deixa a vida artística em suspenso?
Tinha prometido aos meus pais que ia tirar um curso superior. Os meus pais não tinham fortuna para nos deixar, a mim e ao meu irmão. E a única coisa que nos queriam deixar era um curso superior para que pudéssemos ganhar a vida razoavelmente. Prometi-lhes que faria isso. Então, tive de jogar com essas duas facetas, com a promessa e com a vocação. Saí de Angola para estudar em Portugal e comecei a cantar. Nessa altura saiu O Calhambeque. Sempre que ia de férias a Angola, se por lá se apresentasse uma companhia de revistas, vinda de Lisboa, do Parque Mayer, eu ia ver. O maestro da companhia chegou a convidar-me para entrar e fazer o resto da turné com eles. Mas o meu pai agradeceu e disse-lhe que não. Nesse dia cheguei a casa, atirei-me para cima da cama e chorei tanto… Quando acabaram as férias e regresso a Lisboa, o maestro telefona-me e chama-me à televisão. O produtor, o senhor Melo Pereira, disse-me que iam fazer o programa Lugar aos Novos e convidou- me para participar. Disse-lhe logo que sim. Fiz aquele programa e todos os outros que apareceram, em Portugal e em França. Mas aí tive de pedir autorização ao meu pai, porque eu era menor. Prometi-lhe que faria o curso, mas que me deixasse ser feliz. Depois mandaram-me para a guerra na Guiné, para cantar para os soldados. Estive lá, com as balas a passarem-me por cima da cabeça. E foi lá que conheci o homem que viria a ser meu marido.
Que memórias guarda dos tempos de professora em África?
Tenho boas memórias. Apliquei a vertente artística no ensino. Por exemplo, ensinava uma estrutura da gramática inglesa, o present perfect, e depois, no final da aula, apresentava-me com um gravadorzito de cassetes, onde levava a música tocada, para eles cantarem uma letra, com essa estrutura que eu tinha ensinado. Tem muito que ver. A professora está num palco e os alunos no público.
Como foi deixar Angola?
Eu nasci lá, os meus pais nasceram lá, os meus avós e bisavós nasceram lá. Foi deixar o passado todo. Fui arrancada pela raiz sem ter feito mal a ninguém. Um dia estava a dar aulas e entraram pela sala dois guerrilheiros a apontar uma metralhadora para os alunos e para mim.
Ao chegar a Portugal sentiu-se estigmatizada?
Ao princípio todos nós sentimos isso. Passávamos de carro, em Lisboa, e toda a gente batia com as mãos [no capô] a mandar-nos para a nossa terra. Aquilo magoava. Quando, afinal, as pessoas que vieram de lá fizeram aqui carreiras de grande sucesso e são pessoas muito importantes em todos os campos.
O rótulo ainda existe?
Pelo contrário. Depois vim para a Marinha Grande e com aquele espectáculo, o tal que fiz com pais, alunos, todos, fui acarinhada.
Durante muitos anos participou em inúmeros concursos televisivos. Fazia parte do plano para voltar as luzes da ribalta?
Exactamente. Para entrar na televisão, tinha de ser pelos concursos. Não podia chegar e dizer que há 20 anos cantava. Tinha de mostrar qualquer coisa. Então comecei a participar e ganhava os concursos todos. Ganhei três carros, uma viagem à Turquia, outra ao México e ganhei dinheiro. Comprei um frigorífico. Porque eu vinha de Angola e não tinha nada. Tinha duas filhas e estava grávida da terceira. Como era professora, tive facilidade em arranjar emprego. Mas o meu então marido, que era engenheiro agrário, só arranjou lugar em Viseu e só podia vir de 15 em 15 dias, porque não havia dinheiro.
Actualmente é mais fácil viver do ensino ou da arte?
É mais fácil viver do ensino. O ordenado é pequeno, mas é certo. Ao passo que com a arte nunca sabemos se vamos ficar três meses sem ganhar, um ano sem ganhar, dois anos sem ganhar. E há artistas que estão a passar fome. A vida artística é tremenda. Ninguém dá valor aos artistas.
E os papéis escasseiam à medida que a idade avança.
Pois claro. Quem é que vai contratar um velho ou uma velha? Mas no teatro ainda vão buscar peças boas, onde entram pessoas idosas. O actor Ruy de Carvalho está a fazer duas peças agora, ao mesmo tempo, com 90 anos. Mas a televisão quer é meninas de biquíni ou então sem biquíni.
Há uma idade para deixar as luzes da ribalta?
Não. A vida é uma ribalta. Nós estamos sempre nas luzes da ribalta. Fui há pouco tempo passear a S. Pedro de Moel e vinha devagarinho. Um polícia manda-me parar o carro e diz-me: ‘eu agora devia multá-la’. Perguntei-lhe porquê. ‘Porque a senhora chumbou-me no 7.º ano a inglês’, disse-me ele. ‘Se te chumbei era porque não sabias, olha que história’. A vida é de facto uma ribalta. E quando uma relação entre professor e aluno é intensa, quando é verdadeira, quando é de amor, de competência profissional… Para mim, os meus alunos, considero-os como filhos. [Também nas artes] não há idade para deixar. Quando a pessoa tem aquela chama cá dentro, não se apaga se não com a morte.