Abdicam de férias, de tempo em família e de momentos de lazer. Assumem o risco no salvamento de pessoas, animais e bens. O que os move? O altruísmo, sobretudo, até porque, em termos materiais, ser bombeiro voluntário não traz nada em troca.
“São voluntários por opção, mas profissionais na acção.” As palavras são de Jaime Marta Soares, presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, que considera estes elementos o “principal agente da protecção civil em Portugal” e recorda que se há um acidente, chamam-se os bombeiros; se o gato não quer descer da árvore, liga-se aos bombeiros; se alguém esquece a chave em casa, acodem os bombeiros; e no combate aos incêndios florestais, são os homens e mulheres fardados de vermelho que enfrentam as perigosas chamas sem receber nada em troca.
Mais de 90% dos bombeiros são voluntários. Jaime Marta Soares salienta que “98% do socorro é realizado pelos bombeiros – só 7% são incêndios florestais – e desses 94% é da responsabilidade das associações humanitárias voluntárias”. Por isso, o presidente da Liga considera que “os bombeiros são o maior exército de Portugal”.
Guilherme Isidro, comandante dos Bombeiros Voluntário de Ourém, reforça que “pelo número de elementos que dispõem e pela sua ocupação geográfica no território”, os voluntários “são muito importantes”, até porque “em muitos locais do País são o único garante da defesa das populações, seus bens e meio ambiente”.
Como forma de aumentar a resposta, as associações humanitárias têm contratado bombeiros assalariados. “São diferentes dos profissionais, que não fazem mais nada. Estes elementos são pagos depois da hora de voluntariado”, explica Jaime Marta Soares.
José Ferreira, presidente da Escola Nacional de Bombeiros, defende ainda a existência de uma segunda equipa de intervenção permanente, para dotar as corporações de uma capacidade de resposta mais rápida. “Hoje, a realidade da maioria das corporações é ter um grupo misto. No distrito de Leiria, não há corporações 100% voluntárias, porque em todos os quartéis existem homens e mulheres contratados”, revela José Ferreira.
Este responsável lembra que “80% da emergência pré-hospitalar é da responsabilidade dos bombeiros”. Aliás, “quando se vêem as ambulâncias do INEM, a maioria pertence às associações humanitárias”.
No distrito existem 24 associações humanitárias de bombeiros voluntários e um corpo municipal, sedeado em Leiria. A falta de financiamento e de incentivos é contestada por quem dirige os voluntários, que não deixam, contudo, de cumprir o seu dever.
A Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC) dá uma compensação de 46 euros, por 24 horas de serviço às corporações que têm elementos que integram o Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Florestais (DECIF), o que representa o valor de 1,91 euros por hora.
[LER_MAIS] Por uma questão de justiça, nos Bombeiros Voluntários de Leiria, a que pertencem as secções de Monte Redondo e Cardosos, a verba não é distribuída apenas por quem integra as equipas de combate a incêndio. “Tenho aqui homens e mulheres sempre disponíveis para irem para o terreno, que abdicam de ir para a praia com a família, então porquê dar a uns e não aos outros?”, afirma o comandante Luís Lopes.
Como forma de compensação pelo seu trabalho, a corporação oferece “mimos”, como vales de gasolina, prémios para os filhos quando têm sucesso escolar, entre outras pequenas recompensas. Quando estão de serviço as refeições são asseguradas pela corporação, onde também podem lavar a roupa. Jaime Marta Soares constata que ninguém está nos bombeiros para receber, mas pelo “altruísmo”.
Além disso, também considera que além dos homens e mulheres que combatem incêndios, há que ter em conta todos os outros que têm de dar resposta às inúmeras ocorrências que não desaparecem com os fogos.
O presidente da Liga dos Bombeiros apela ao poder institucional para ter “respeito” e “compreender” estes cidadãos que se limitam a “fazer o bem para cumprir uma missão, sem pedir nada em troca e até arriscam perder a vida”.
“Saibamos compensar as associações humanitárias para que não tenham sufoco financeiro e possam investir em melhores viaturas e equipamentos de protecção individual. A lei do financiamento dos bombeiros, que está a ser discutida, terá de ser um incentivo ao voluntário.” Luís Lopes salienta ainda que nos últimos dez anos os bombeiros perderam milhares de elementos, pelas mais variadas razões.
“Algumas delas é o facto de darem tanto e receberem tão pouco. Não têm de receber dinheiro, mas dêem-lhes algumas condições para poderem desempenhar essa função, porque alguém tem de o fazer.”
No entanto, não é apenas por falta de incentivos que começa a existir dificuldades no recrutamento de novos elementos. Segundo o comandante dos Bombeiros Voluntários de Leiria, tem também a ver com o “espírito de emigrante cá dentro”.
“Muitos jovens estão a estudar fora e quando vêm ao fim-de-semana também querem estar com a família. Quando acabam os estudos já estão mais relacionados com o local onde estudaram e alguns não voltam. A disponibilidade hoje é menor do que há uns anos”, acrescenta Luís Lopes, lembrando que o próprio ritmo de vida foi alterado.
1,91
euros é o valor à hora pago pela Autoridade Nacional de Protecção Civil aos bombeiros voluntários que que integram as equipas de combate a incêndios florestais. São 46 euros por 24 horas de serviço, na fase Charlie
108
milhões de euros é o valor que a ANPC prevê gastar no combate aos incêndios florestais, mas “só em Outubro será possível determinar com rigor os encargos com despesas extraordinárias e combustíveis”. Deste valor, 5,4 milhões serão para as Equipas Intervenção Permanente
1,3
milhões de euros é o montante a financiar os bombeiros voluntários do distrito de Leiria. Segundo dados da ANPC, a associação humanitária de Pombal é a que mais vai receber (127 mil euros), seguida de Caldas da Rainha (116 mil euros)
231
mil euros é o valor atribuído pela Câmara de Leiria aos Bombeiros Municipais, a única corporação profissional do distrito de Leiria. A autarquia atribuiu ainda uma verba de 780 mil euros às restantes corporações voluntárias do concelho
“Antes as pessoas tinham o seu trabalho das 9 às 17 horas e havia disponibilidade. Agora, alguns têm dois trabalhos ou filhos, que não têm onde deixar depois das 17 horas, porque isso requer mais encargos económicos”, constata ainda o comandante, revelando que o aumento da empregabilidade também influenciou a disponibilidade.
“É bom, mas ficámos com menos horas dos voluntários.” Guilherme Isidro destaca que a “vontade de participar na sociedade é intrínseco do perfil português, muito disponível para ajudar os outros”, como comprovam as várias campanhas de solidariedade.
Por isso, considera que “a própria sociedade devia olhar para este enorme conjunto de pessoas que se predispõem a arriscar a vida em prol dos outros, conferindo- lhe através de incentivos legais algumas facilidades sociais, é de todo necessário que os governantes o façam”.
Profissionalizar os bombeiros?
José Ferreira não gosta de distinguir os voluntários dos profissionais: “são todos bombeiros”. Não defende, para já, a profissionalização, mas entende que deveria existir – não uma – duas equipas de intervenção permanente.
O presidente da ENB lembra que “é uma ilusão pensar que só existem voluntários em Portugal” e exemplifica que em França são 190 mil e na Áustria 200 mil. A diferença está nas características do voluntariado. Por exemplo, em França, quando o bombeiro está de plantão durante a noite é-lhe pago o valor das horas que fizer em serviço externo.
Luís Lopes entende que tem de haver sempre uma força que responda em situações de excepção, seja profissional ou voluntária. “Tem de existir uma equipa para responder à emergência pré-hospitalar e outra equipa que possa estar em incêndios urbanos, desencarceramento ou incêndios florestais”, adianta o comandante dos Bombeiros Voluntários de Leiria.
Para este responsável não é com uma força profissional que se vai responder às situações de excepção, pois será sempre necessária mais gente quando surgem inundações, episódios de ventos fortes ou grandes incêndios florestais.
“Se alocar todo o efectivo profissional a ocorrências de excepção vou deixar de ter pessoal para a actividade do dia-a-dia.” O comandante afirma que há países que formam bombeiros que só são accionados em situações específicas ou fazem uma escala periódica.
“Não vejo inconveniente algum, mas também é possível serem as forças armadas a desempenhar essa função. Assim, posso ter um efectivo e existirem elementos pagos pelo Estado que podem responder em missões de excepção.”
Concordando com o sistema actual, em que existem corpos de bombeiros mistos, Guilherme Isidro defende que o caminho é existirem em todas as corporações “um número de elementos profissionais para dar resposta à primeira intervenção, de acordo com os riscos da sua área de influência”.
Depois, o efectivo poderá ser “complementado com voluntários preparados e empenhados em participarem consoante a sua disponibilidade”. “Destas duas vertentes se faz um todo, como acontece nos Bombeiros Voluntários de Ourém.”
Patrões não complicam
Cada caso é um caso, mas a maioria dos patrões é sensível ao pedido dos comandantes para a dispensa dos colaboradores que são bombeiros em situações de excepção como os inúmeros fogos florestais que todos os anos surgem no Verão.
O comandante dos Voluntários de Leiria garante ter a melhor relação com as entidades empregadoras, que até se antecipam a perguntar se precisam que dispense o funcionário. “Só peço a dispensa quando é mesmo necessário e também sou sensível quando alguém me diz que tem uma encomenda urgente para entregar e precisa do seu funcionário naquele dia”, afirma Luís Lopes, que garante que a compreensão de todos tem facilitado a colaboração.
O comandante releva mesmo que há casos em que o patrão não desconta o dia e outros em que é o colaborador que opta por meter um ou dois dias de férias para não prejudicar a entidade patronal, dada a boa relação existente entre as partes.
De acordo com o Decreto-lei 241/2007, os bombeiros voluntários “podem faltar ao trabalho para o cumprimento de missões”, “sem perda de remuneração ou quaisquer outros direitos e regalias, desde que o número de faltas não exceda, em média, três dias por mês”.
Também estão autorizados a faltar ao trabalho para frequência de cursos de formação na Escola Nacional de Bombeiros, “sem perda de direitos, até ao máximo de 15 dias por ano, sendo as respectivas entidades patronais compensadas dos salários pagos pelos dias de trabalho perdidos”.
A Autoridade Nacional de Protecção Civil, “quando proceda à requisição de bombeiros voluntários, compensa estes dos salários e outras remunerações perdidos”, contempla ainda a legislação.