Entre milhares de colaboradores que a empresa QuerMarias já recrutou para exercer trabalho doméstico profissionalizado, desde que iniciou actividade, em 2005, boa parte são já colaboradores com formação académica superior. Além disso, existe um grupo que tende a crescer, que são os domésticos, empregados do sexo masculino, expõe Arminda Serrano, sócia-gerente desta empresa de recrutamento, que actua por todo o País e também em território internacional.
Desta forma, Arminda Serrano justifica que é cada vez menor o preconceito associado à profissão, que outrora estereotipava o empregado doméstico, associando-o a mulheres, de baixa escolaridade, que se dedicavam à função por falta de alternativas.
“Teremos recrutado três ou quatro homens, que começaram por fazer trabalho doméstico normal, que progrediram, e que hoje, na casa dos 50 anos, são mordomos”, relata Arminda Serrano. Alguns começaram a trabalhar em Londres e vieram mais tarde a empregar-se em Portugal. Outros fizeram o percurso inverso e estão hoje a colaborar no estrangeiro.
Além destes, prossegue a responsável pela QuerMarias, há muitos outros homens recrutados pela empresa, que trabalham a limpar, a cozinhar e a tratar de idosos. “Nalguns casos, há idosos sozinhos, que preferem contratar homens para tratar de si e da sua casa, porque, sendo do mesmo sexo, se sentem menos inibidos”, justifica a sócia-gerente.
Nesta actividade, defende Arminda Serrano, os senhores são “altamente profissionais” e muito “vaidosos” da sua função, acrescenta. Por outro lado, há também muita gente com formação superior, que escolhe fazer do trabalho doméstico a sua carreira. “Licenciados em Direito, Comunicação Social e profissionais de Enfermagem”, exemplifica.
Mónica Marto, responsável pelo recrutamento de recursos humanos na empresa House Shine Leiria, que se dedica a limpezas domésticas profissionais, confirma o interesse de licenciados nesta actividade. Recorda, por exemplo, o “contributo fantástico” de uma professora de ensino básico que, entre empregos em escolas, durante as férias de Verão, se dedicou à limpeza de casas através da House Shine.
Maria Costa, de 52 anos, natural de Viseu, já tinha completado o 7.º de escolaridade quando, aos 16 anos, decidiu ser empregada doméstica. Nessa altura, as habilitações até lhe poderiam ter aberto portas noutra profissão. Mas Maria preferia trabalhar nesta área, onde nunca se sentiu inferiorizada.
Pelo contrário. “Deixei amizades pelas dezenas de casas onde trabalhei”, conta a doméstica. Nalgumas delas, limitou-se a limpar. Noutras, “fazia as refeições, limpava, tratava da roupa e ia às compras. Era uma autêntica governanta”, recorda, com orgulho. [LER_MAIS]Numa das casas, onde durante anos deu assistência a uma idosa, viu os seus netos a crescer. “Eram como família”, realça.
Para se exercer esta profissão é preciso brio e honestidade, observa Maria, salientando que as famílias confiam às empregadas domésticas o seu dinheiro, as chaves de casa e senhas de alarmes. E tudo o que é ouvido num lar, tem de ficar guardado em sigilo, frisa Maria Costa.
Se uma funcionária for competente e organizada, pode ganhar um bom vencimento, afirma. “Há 17 anos, recebia 5,5 euros à hora e tinha todos os meus direitos assegurados. Mas fazia os meus descontos apenas sobre o meu trabalho numa das casas. Nas restantes, isso já não compensava”.
Depois de se ter retirado da actividade durante algum tempo, para poder dar assistência a uma pessoa próxima, que não estava bem de saúde, Maria voltou ao trabalho doméstico, desta vez através de uma empresa, onde se dedica à limpeza de casas particulares e de empresas.
Arminda Serrano realça que, na sua empresa, a selecção e o recrutamento são feitos com empregadores que estabelecem contrato legal com os empregados e que fazem as devidas contribuições para a Segurança Social. Explica que o mercado laboral está devidamente regulamentado em matéria de trabalho doméstico. Mas sabe que, à margem da QuerMarias, há patrões e empregados que optam por não regular a situação, por entenderem que é mais conveniente para ambos.
Legislação nem sempre é cumprida
Num artigo recente da Deco Proteste, a Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor destaca os direitos que assistem aos empregados domésticos. Assim, além da remuneração (o salário pode ser acordado à hora, ao dia, à semana ou ao mês, sendo que o subsídio de férias e o subsídio de Natal correspondem ao valor da remuneração mensal), o empregador tem de contratar um seguro de acidentes de trabalho, declarar as quantias pagas ao trabalhador no ano anterior, assim como as contribuições pagas à Segurança Social e, se for o caso, as retenções efectuadas para efeitos de IRS.
Os empregados domésticos têm também direitos relacionados com a Covid-19. A Deco Proteste passa a esmiuçar: “enquanto trabalhadores por conta de outrem, os trabalhadores domésticos têm os mesmos direitos excepcionais determinados pelo perigo de contágio com a Covid-19, por exemplo, subsídio em caso de isolamento profilático, de assistência a filho menor de 12 anos cujo estabelecimento de ensino tenha sido encerrado ou apoio extraordinário ao rendimento”.
Vivalda Silva, coordenadora do Sindicato dos Trabalhadores de Serviços de Portaria, Vigilância, Limpeza, Domésticas e Actividades Diversas, também se congratula pelo facto de, ao longo dos anos, o trabalho doméstico ter deixado de ser alvo de preconceito e descriminação. A sua luta continua a ser no sentido de fazer cumprir os direitos de quem exerce esta actividade.
“Muitas pessoas foram despedidas nesta fase de pandemia, porque os empregadores deixaram de ter condições económicas para as manter. E muitas delas, por terem apenas um contrato verbal, não sabiam dos direitos que tinham”, expõe a sindicalista. “Algumas nunca tinham gozado férias nem estavam inscritas na Segurança Social”, exemplifica.
“Sabemos que alguns destes trabalhadores também não querem fazê-lo, uma vez que têm outros empregos, onde já fazem os seus descontos. É uma situação que é mais difícil de controlar, trabalhando em casas particulares, do que se estivessem a laborar numa fábrica. Mas defendemos sempre que, se existe uma lei, ela tem de ser cumprida”, realça Vivalda Silva.
Em 2021, no décimo aniversário da Convenção do Trabalho Digno para o Trabalho Doméstico, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulga um relatório onde também conclui que a pandemia “expôs as vulnerabilidades persistentes do trabalho doméstico”. Revela que “os 75,6 milhões de trabalhadoras e trabalhadores domésticos em todo o mundo foram significativamente afectados” e que a Covid-19 degradou as condições de trabalho, “que já de si eram muito más”.
Embora constate “alguns progressos”, a OIT sublinha que 36% destes trabalhadores “permanecem totalmente excluídos da legislação laboral”.
Por outro lado, pelo menos no que diz respeito ao nosso País, tornaram- -se “pouco usuais” os casos de exploração de pessoas que se dedicam ao trabalho doméstico, situação bem diferente do que acontecia há cerca de uma década, expõe Paulo Carreira, presidente da Amigrante, a Associação de Apoio ao Cidadão Migrante sediada em Leiria.
Ao longo dos anos, o trabalho de sensibilização tem vindo a sortir efeitos, defende o dirigente.
Arminda Serrano, sócia-gerente da QuerMarias, também refere que há muito deixou de ter conhecimento de situações de exploração de empregadas domésticas. “Há dez ou 15 anos, era mais usual ouvir falar sobre mulheres vindas da Ucrânia e do Brasil, que eram ludibriadas com promessas de contrato de trabalho nesta actividade, e que nunca chegavam a ser cumpridas por parte dos empregadores”, expõe.