De portas fechadas, devido ao risco de contágio de Covid-19, os Centros de Dia revelaram ser, de forma inequívoca, uma resposta social da maior importância não só para os seus utentes bem como para as suas famílias. Os idosos contaram ao JORNAL DE LEIRIA como têm sido os seus dias, agora mais cinzentos, sem as actividades e os rostos amigos dos seus Centro de Dia.
Já as famílias confidenciaram a dura realidade de quem tem agora de se desdobrar em tarefas para manter a gestão do lar e da vida profissional, sem desc urar o bem-estar dos seus pais, com quem ficaram a tempo inteiro desde há meses.
Do lado de lá, estão os responsáveis pelos Centros de Dia, a quem já foi dada permissão para reabrir, desde 15 de Agosto, mas cujas premissas exigidas para a reabertura são tão difíceis de cumprir, que muitos não sabem como nem quando terão condições para voltar ao ac tivo.
Os dias ficaram mais vazios
Para Manuel Brites, de 76 anos, o encerramento do Centro de Dia da Associação de Solidariedade Social das Cortes (Assiste) foi um duro golpe. Habituado a partilhar os dias com outros idosos, a jogar às cartas e ao dominó, o viúvo vê agora os dias a passar mais lentamente e sem o mesmo gosto. Está a morar com a filha, que “é como um Deus do céu”, mas ainda assim esgueira-se volta e meia para casa do vizinho, para assistirem juntos aos filmes da televisão. “Estou à espera que me digam alguma coisa do Centro de Dia”, conta Manuel Brites, que se mostra muito preocupado. “Acho que se vai acabar tudo… vamos andar lá de máscara todo o dia?…vamos ver como vai ser…”
Também em casa de Jaime Neves e da esposa, Maria de Lurdes, os dias custam agora mais a passar, desde que o Centro de Dia da Assiste encerrou. O que está a fazer dona Lurdes? “Renda”. A senhora faz tanta renda. É para quem? “Isto é para a minha filha Isabel”, explica prontamente a octogenária, que vive há dez anos com a doença de Alzheimer. A renda, bem como as pequenas tarefas na cozinha, ajudam-na a preencher as horas, agora que não pode frequentar o Centro de Dia. A família pede-lhe apoio em quase todas as actividades, para se manter ocupada. Afinal, também ela sente a falta do tempo em que se juntava aos outros idosos nas actividades da Assiste.
O marido, Jaime, com quem celebrou 60 anos de casamento numa grande festa promovida pelos func ionários da associação (quando a Cov id-19 não era ainda tema de conversa), lamenta muitíssimo o encerramento do Centro de Dia. “Aqui tenho de ficar fechado e lá sinto-me à solta. Sou mais livre”, compara sem hesitação.
Aos 84 anos e com uma lucidez invejável, o idoso gostava não só de se ocupar com as actividades lúdicas partilhadas entre todos os utentes como de apoiar nos trabalhos administrativos da Assiste. Dedicou muitos anos da sua vida aos papéis e aos contactos de telefone, quando operava no ramo dos seguros. Portanto, ajudar com papelada na Assiste era um prazer e uma forma de se sentir útil. Até a pandemia lhe vir baralhar os planos, animado pelos funcionários desta associação, Jaime estava inclusive a tratar de tudo para recuperar a sua carta de condução.
Recentemente, já em casa, uma queda, seguida de internamento hospitalar, veio debilitar a sua condição de saúde. Por essa razão, há olhos mais atentos aos seus passos lá em casa, para que uma actividade mais energética e menos ponderada não agrave as suas complicações. Com movimentos mais condicionados, a literatura tem sido a sua grande aliada durante os últimos meses.
Jaime Neves devora livros, delicia-se com romances históricos. Faz sopa de letras e palavras cruzadas. E, porque as saudades são muitas, de vez em quando pega no telefone e liga àqueles amigos da Assiste, que sabe serem mais sozinhos, e que de certo precisam do seu afecto. Também as visitas das funcionárias da Assiste, “que são todas muito simpáticas” são sempre um dos momentos altos neste novo quotidiano do idoso.
Famílias sob situação de grande desgaste
Maria Trindade, filha de Jaime e de Maria de Lurdes, expõe a dureza da situação vivida pelas famílias, desde que os Centros de Dia encerraram. Quando há cerca de um ano surgiu a ideia de levar os pais a frequentar um Centro de Dia, sobretudo da parte do pai, havia alguma relutância.
No entanto, bastou uma primeira experiência e ambos adoraram, ao ponto de a Assiste se tornar “quase como uma segunda casa”, onde estes tinham o acompanhamento “espectacular” dos funcionários e a companhia de “cerca de 40” idosos, com quem passaram partilhar muitas actividades. “No dia em que recebemos a informação de que, por causa da pandemia, o Centro de Dia tinha de encerrar, gerou-se o caos na nossa família e na cabeça dos meus pais também”, salienta a filha.
“Somos cinco filhos e cada um faz o que pode. Mas todos trabalhamos. É terrível”, explica Maria Trindade. Duas irmãs revezam-se entre os dias e as noites e os restantes são um suporte muito importante nas consultas e nas muitas outras tarefas que é preciso assegurar quando se têm ao encargo dois idosos. Mas a situação é de “muito desgaste”, quando se trata de octogenários, um deles com Alzheimer, e outro que passou entretanto a ter de fazer deslocações frequentes para realizar diálise. O Centro de Dia garantia a ocupação do casal, o que dava mais margem aos filhos para se ocuparem dos seus empregos. Isso deixou de existir, frisa [LER_MAIS]Maria Trindade.
No Centro de Dia, o pai lia muito e fazia palavras cruzadas, como ainda faz, agora em casa. Mas também ajudava os colaboradores na secretaria e isso fazia-o sentir-se “mais útil”, reconhece a filha. Doente de Alzheimer, era a mãe quem mais os preocupava. “Procuramos manter rotinas, mantê-la ocupada, com renda, a pintar e a ajudar na vida doméstica, mesmo que já não possa fazer nada sozinha”, expõe Maria Trindade. A filha não poupa elogios à Assiste que, mesmo com maior distanciamento, nunca deixou de se preocupar com os seus idosos. “Vem muito cá a casa a Joana, educadora social, mas que desempenha o papel de animadora, saber como eles estão. É importante, para que não caiam em depressão e nem nós, que os acompanhamos”, salienta a filha.
Instituições preparam-se para reabrir
Joaquim João Pereira é provedor da Santa Casa da Misericórdia da Marinha Grande, da qual faz parte o Centro de Dia das Vergieiras, frequentado por um grupo de cerca de 30 idosos. Também o provedor revela que, ao longo dos últimos meses, tem sido confrontado com idosos que manifestam “muita tristeza” por não poderem voltar ainda à sua rotina no Centro de Dia. “Não nos aguentamos”, dizem-lhe alguns. “O que fazemos é telefonar, para que não desanimem e mantenham estabilidade”, nota o provedor.
“Deste grupo de 30, alguns já desistiram e outros prometeram regressar, mal reabra”, conta Joaquim João Pereira. “Estamos a preparar os espaços e os funcionários, a estudar a forma, para que os idosos de Centro de Dia não estejam em contacto com os restantes, e para que as funcionárias possam prestar serviços a cada utente, mantendo o devido distanciamento”, explica o provedor, que espera ter tudo preparado para reabrir o Centro de Dia no dia 1 de Setembro.
Anália Ruivo, directora de serviços da Associação de Solidariedade Social de Marrazes (Amitei), reconhece que a reabertura dos Centros de Dia é muito mais difícil de operacionalizar nos casos em que estes estão acoplados a uma Estrutura Residencial para Idosos, como sucede na Amitei. A associação está a estudar as regras instituídas no guião emitido pelo Ministério da Solidariedade, sendo que caberá depois a várias entidades, entre as quais a Segurança Social, verificar se a Amitei, bem como outras instituições do género, reúnem as condições necessárias para a reabertura dos Centros de Dia.
Embora todas as Santas Casas e associações desejem reabrir, Anália Ruivo admite desde já que “há pormenores que não são exequíveis” e que as autoridades terão de analisar cuidadosamente caso a caso. Dada a complexidade das regras impostas, vai tentar, sem certezas, reabrir o Centro de Dia da Amitei durante a primeira quinzena de Setembro. É exigido, por exemplo, que o refeitório dos utentes do Lar seja diferente do refeitório dos utentes do Centro de Dia. Anália Ruivo vai propor, por isso, a criação do refeitório na sala das actividades do Centro de Dia. “Mas será que vão aceitar?”, indaga a directora de serviços.
Também se impõe que os banhos sejam dados em locais diferentes para utentes de Lar e de Centro de Dia. “Mas os nossos banhos assistidos, a todos os utentes, eram realizados dentro da zona de lar”, aponta a responsável. Isso poderá implicar que os utentes do Centro de Dia passem a não poder usufruir desse serviço, nota Anália Ruivo. Além de se impor o desdobramento dos espaços, também se impõe a multiplicação dos recursos humanos, que só podem prestar serviços numa valência, de forma a que não haja cruzamento de pessoas entre Lar, Centro de Dia e Apoio Domiciliário.
Muito preocupada com a forma como tudo se pode operacionalizar, a responsável considera que o futuro deva passar cada vez mais pelo reforço do apoio domiciliário, aproveitando sinergias com outras entidades, ao nível do voluntariado, exemplifica. Mas reconhece a dificuldade acrescida para as famílias que tenham ficado em permanência com idosos com doenças do foro mental, onde já há agregados exaustos. Nalguns casos, expõe, as famílias estão a procurar outras soluções.
Autorizados a abrir de forma faseada
Os Centros de Dia estão desde o passado dia 15 de Agosto autorizados a abrir, com excepção da Área Metropolitana de Lisboa, onde a situação de contingência devido à pandemia o impede, e com autorização prévia da Segurança Social, se não forem estruturas autónomas. Os equipamentos vão reabrir de forma faseada, podendo abrir os que funcionam de forma independente de outras respostas sociais, como lares residenciais para idosos, por exemplo.
Os que partilham espaços com outras respostas sociais ficam condicionados a uma avaliação prévia da Segurança Social e entidade de saúde local para obterem autorização para reabrir. O Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS) elaborou um guião orientador para a reabertura, no âmbito da pandemia de Covid-19.
À Lusa, Lino Maia, presidente da Confederação Nacional de Instituições de Solidariedade, disse que no universo de instituições tuteladas pela organização, mas também pela União das Misericórdias Portuguesas, haverá mais de 1.500 centros de dia, dos quais mais de metade funcionam de forma independente de qualquer outra resposta social. Quanto ao referido guião, sublinha a importância dos Centros de Dia para a saúde dos idosos, considerando-a uma “resposta fundamental para proporcionar bem-estar social, físico-motor, psicológico, promovendo a auto- estima das pessoas idosas”.