De acordo com o Presidente da República, o principal problema com que se depara a imprensa é o económico-financeiro e dá como exemplo a imprensa local e regional que sofre “um crescente estrangulamento” e resiste com “extremas dificuldades”.
Marcelo Rebelo de Sousa insiste na urgência de medidas devido ao risco de que sobrevivam apenas aqueles “com financiadores mais fortes”, levando a fortes implicações na pluralidade e na qualidade da Democracia, diminuída no seu “quarto poder”.
Apesar dos alertas do Presidente e dos própria media, o secretário de Estado dos Media, Nuno Artur Silva, afirmou recentemente que, no Orçamento do Estado para 2020, não haverá medidas de apoio.
Na última edição do Festival Literário de Fátima, Tabula Rasa, também Paulo Agostinho, editor da Lusofonia e África da Agência Lusa afirmou que se “fosse autarca, investiria, desinteressadamente, o triplo nos jornais regionais, porque eles são fundamentais para a identidade regional. Se estes regionais acabam, acaba-se a identidade” e que na?o vale a pena pensar que os meios nacionais va?o pegar no trabalho dos regionais, caso estes desaparec?am. “O regional, aos ‘meios de comunicac?a?o nacional’, serve para fazer ‘planos de corte’ na televisa?o. Quando um poli?tico sai de Lisboa, as perguntas que lhe fazem na?o sa?o sobre o local onde esta?, sa?o sobre mate?rias nacionais.”
Esta semana a própria Lusa admitiu que, por dificuldades financeiras, poderá reduzir a sua cobertura regional.
Quando o quiosque era a agência de notícias
Em Leiria, a dois passos do Mercado de Sant’Ana, nos anos 70, 80 e 90, o “Augusto dos jornais” era uma espécie de agência noticiosa – bastante oficiosa – de Leiria. Não só sabia todas as novidades, como, todos os dias, tinha o quiosque cheio de gente a comprar os jornais do dia e os regionais, às quintas e sextas-feiras.
Na ausência de notícias que chegassem, via telemóvel e no conforto do lar, as pessoas eram obrigadas a sair de casa, quase em romaria, e procurar as novidades nas “gordas” e nas “miúdas” dos jornais e revistas. Era um ritual diário. Discutia-se a bola, aquela trica política, os crimes e até por que razão os buracos na avenida teimavam em reaparecer dias após serem reparados.
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O Augusto, pai de Celeste e de Paula Gaspar, que herdaram o quiosque, era uma espécie de mediador nas discussões mais acesas à volta dos artigos impressos nas páginas d’O Mensageiro, da Voz do Domingo, do Região de Leiria e do JORNAL DE LEIRIA. “Nos dias de mercado, as pessoas das aldeias juntavam-se aos habituais, todas à procura das notícias”, conta Celeste que também chegou a ter uma loja dedicada à imprensa na outra ponta da cidade, junto ao antigo Hotel D. João III.
“Ao sábado, toda a gente discutia as notícias.” No quiosque, conta, chegaram a vender mil exemplares do Correio da Manhã, ao domingo, e o Expresso só se conseguia por encomenda. A concorrência de outros espaços acabaria por obrigar Augusto e as filhas a mudar o negócio e a acabar com a venda de imprensa. Entre tirar um café e servir uma coxinha de galinha, Celeste diz ter a sensação de que, dantes, havia mais informação nos jornais regionais.
Segundo um estudo levado a cabo pelo Bareme Imprensa, realizado pela Marktest e promovido pela Meio Regional, divulgado em 2010, a maioria dos leitores de imprensa regional são, na maioria, homens, entre os 25 e os 44 anos, das classes média alta e baixa.
Residem no litoral norte, litoral centro e interior norte e são trabalhadores qualificados.
Castelo Branco (74,7%), Santarém (73,4%) e Leiria (70,1%) são os três distritos que registam os maiores índices de hábitos de leitura de publicações regionais, estando no quadrante oposto os distritos de Lisboa (35%), Bragança (37,6%) e Porto (38%).
Já na “Edite”, o consumo de imprensa escrita, que era o forte do negócio, foi soterrado pela febre do raspa-raspa. A proprietária explica que até teve de fazer obras e mudar o balcão para conseguir satisfazer a procura pelo dinheiro instantâneo. Acompanhada pela incessante banda sonora de bips saídos da máquina de registo do Euromilhões, Edite Neto diz que, hoje, vendem-se menos jornais devido à internet.
“Mas ainda há alguns clientes fiéis que vêm cá à procura dos jornais, muitos deles em busca de ofertas de emprego e de esta ou aquela revista, ou quando uma empresa ou pessoa são referidas numa notícia.”
Fogo-de-artifício
“Num mundo marcado pelas fake news, com campanhas de intoxicação que abrem a porta ao populismo, o papel da Imprensa é mais importante do que nunca”, diz o director do semanário Região de Leiria. Francisco Santos sublinha que, numa era onde a propaganda ameaça a informação, “o papel da imprensa é insubstituível”.
“O direito à informação é o garante do pluralismo, da liberdade de opinião, da democracia”. No entanto, o responsável afirma que o Estado foi “secando receitas da imprensa por via administrativa”, ao mesmo tempo que os grandes motores de busca se apoderaram dos conteúdos produzidos pela imprensa.
“E chegámos aqui. A um estádio muito frágil onde cada vez é mais difícil a imprensa cumprir o seu papel. O problema não é apenas uma questão das empresas jornalísticas e dos jornalistas, é sobretudo um problema da sociedade e do regime democrático.” Francisco Santos assegura que as ajudas reclamadas pelo sector não são subsídios atribuídos por avaliação política ou favores de circunstância, mas medidas sérias e estruturadas que promovam o papel e a responsabilidade da imprensa.
“A imprensa tem de estar nas salas de aula, mas também junto de grupos menos esclarecidos ou desfavorecidos. Além do Estado, também as autarquias devem apoiar a imprensa. Há muitos casos de autarquias que, mais rapidamente, gastam milhares de euros em fogo-de-artificio do que investem na imprensa da sua região. As empresas e a sociedade em geral têm de olhar para a imprensa como um garante da democracia e um factor de desenvolvimento das comunidades.”
Apoio através dos jogos da Santa Casa
“Há um elefante na sala sobre o qual ninguém quer falar que é a falta de dinheiro nos jornais regionais, motivada pela quebra das receitas publicitárias, da diminuição de leitores e assinantes”, diz Paulo Ribeiro.
O presidente da Associação da Imprensa Cristã (AIC), entidade que congrega 180 títulos, com mais de dois milhões de publicações mensais, explica que o cenário piorou uma situação já complexa espoletada, há alguns anos, pelo fim da publicidade institucional de actos públicos, como as hastas e as escrituras, aliado ao abaixamento abrupto do porte pago, de 90 para 40%.
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Num trabalho conjunto entre a AIC e a Associação Nacional de Imprensa (API), que representa, cerca de 95% da imprensa portuguesa, foram sugeridas dez propostas de apoio financeiro aos media regionais (ver caixa), com resultados imediatos, à Comissão Parlamentar de Cultura e Comunicação, da Assembleia da República, e ao secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media, Nuno Artur Silva.
“Propusemos que 25% da publicidade dos jogos de fortu- na e azar da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, seja alocada à comunicação social regional. Ou seja 1,5 milhões para os meios regionais anualmente”. A ERC está a analisar esta proposta que ganhou maior importância após Nuno Artur Silva ter dito que, no Orçamento do Estado deste ano, não haverá apoios aos meios regionais.
“Enviámos uma carta a explicar que deixar o assunto para 2022, é tarde e que envolver a Santa Casa seria uma medida rápida e sem pressão sobre o Orçamento de Estado.” Circulação dos regionais é maior do que a dos nacionais João Palmeiro, presidente API, refere que, enquanto os jornais nacionais perderam cerca de 42% dos assinantes, os regionais reduziu 9%.
O responsável refere ainda que, no investimento publicitário, a nível nacional, a perda foi de 60%, mas que, por extrapolação – uma vez que os dados constantes no último estudo do INE não especificam -, a imprensa regional tem valores mais positivos.
“Isso acontece devido à proximidade dos anunciantes, que conhecem as mais-valias do veículo regional. Porém essa proximidade também é uma ameaça. Os 9% perdidos poderão ter sido assinantes que faleceram e deixaram de renovar as assinaturas. O que significa que não há novas assinaturas a serem feitas.”
Palmeiro faz notar que, como os esforços dos Governos têm sido para tornar as PME mais activas no mundo digital, estas irão começar a solicitar uma oferta de espaços publicitários, que a maior parte dos regionais não têm para oferecer. “E se tiverem, não estará devidamente estruturada permitindo ao Google, Facebook ou Sapo ficar com esses anunciantes.”
O presidente da API diz que “desde o segundo Governo Sócrates, todos os Executivos nos têm mandado passear”, quando se fala de criar fundos de apoio à imprensa regional tradicional, enquanto promotora da identidade local e da salvaguarda dos interesses das populações.
“Isto corresponde à corrente europeia que empurra os Estados-Membros para o digital. Apostam na comunicação digital e entendem que o papel é um empecilho. Como o Governo prefere não investir directamente no apoio à imprensa local, descobrimos na Holanda um fundo criado com dinheiros públicos, gerido por universidades e instituições, que poderia ser o modelo adoptado em Portugal. Mas, no nosso País, não há uma cabeça política capaz de entender isto. Há o Presidente da República, mas ele está a gastar-se com este assunto.”
Entre as medidas de futuro, aponta a possibilidade de juntar a oferta publicitária da imprensa regional, cuja circulação combinada, “será maior do que a dos nacionais, tornando os regionais competitivos”.
Porém, para atingir esse objectivo, salienta que teria de acontecer uma flexibilização do “dia de saída dos jornais”, pois muitos deles só chegam às bancas uma vez por semana ou a cada 15 dias, tornando-os pouco apetecíveis para as, cada vez mais curtas, campanhas publicitárias.
A API, que controla cerca de 200 publicações, revela que, em 2018, destas foram expedidos pelos correios 15.236.206 Jornais e Publicações Periódicas (JPP). “Estes títulos são os de maior significado em número de assinantes, considerando nós que as restantes publicações possam expedir mais 20% de exemplares”, explica Vítor Brás, da API, que adianta que “como o total de JPP expedidas pelos Correios é de cerca de 30 milhões de exemplares, a imprensa regional representa cerca de 60% do tráfego para assinantes”.
1 – Cumprimento efectivo da Lei da Publicidade Institucional (Lei n.º95/2015, de 17 de Agosto) por parte do Estado e alteração da mesma com abaixamento dos 15 mil para cinco mil euros da obrigatoriedade de comunicação das campanhas publicitárias à ERC por parte das entidades públicas;
2 – Definição da obrigatoriedade de publicação, nos jornais regionais, da publicidade dos actos oficiais dos tribunais, conservatórias e do Portugal 2020;
3 – Combate à Iliteracia: o Estado, como garante da promoção cultural e educativa, deve subscrever assinaturas de jornais regionais para que sejam distribuídos a agrupamentos de escolas;
4 – Aumento da comparticipação do Porte Pago de 40% para 80%, com majoração de 10% para os territórios menos desenvolvidos e para 90% para a Diáspora;
5 – Dedução, no IRS, das assinaturas de jornais e revistas até 100 euros/ano para potenciar o aumento de leitores e a maturidade democrática;
6 – Despesas com publicidade na comunicação social regional e local, para efeitos de tributação em sede de IRC, no valor correspondente a 150%, para potenciar o aumento de clientes a anunciarem nos jornais;
7 – Inserção de Propaganda Eleitoral nos meios regionais;
8 – Intervenção do Estado para o reconhecimento do justo valor dos conteúdos produzidos pelos órgãos de comunicação e disseminados por agregadores de conteúdos;
9 – Criação de incentivo à substituição do invólucro em plástico; 10 – Combate às falsas notícias (fake news).
“O jornalismo depende da democracia”
Paulo Querido, antigo jornalista e docente universitário, acredita que, comparativamente à imprensa nacional, “a regional tem mais oportunidades de futuro devido à proximidade e relações de afectividade.
“Em regiões como Leiria, Algarve e Aveiro, com uma actividade económica mais pujante, a imprensa regional faz sentido e até pode ser robustecida. Na Aldeia Global onde vivemos, o público valoriza mais a informação regional com um mínimo de apresentação e de qualidade do que a internacional e nacional. É um ‘produto’ mais raro e tem um valor superior.”
Acredita que, mais tarde ou mais cedo, esse valor superior irá traduzir-se em receita. “Infelizmente, não tenho a resposta para o modelo de negócio necessário.” Em relação ao que o Presidente da República tem dito, entende que a democracia não depende do jornalismo.
“O jornalismo depende da democracia. Ela não está nas ruas da amargura devido ao mau jornalismo. A crise da democracia, supondo que ela existe, é anterior à do jornalismo e uma coisa nada tem que ver com a outra.” O docente diz que há uma corrente que pretende que seja o Estado a sustentar “o negócio”.
“Nem sequer seria sustentar o jornalismo ou para definir regras. O que se pede é que o Estado entre com apoios directos aos grandes grupos de media que dizem estar em crise, mas não estão. Têm dinheiro para contratar vedetas e fazer investimentos. É verdade que há alguns jornais com dificuldades, que há uma modificação no consumo da informação, mas há hoje mais canais de informação e até no papel, do que há 20 anos.”
“Vejo com maus olhos o Presidente da República andar a servir de caixeiro viajante dos interesses de dois grupos de media e a tentar que o Estado os proteja ainda mais.”
Autarcas, jornalistas e empresários respondem
Apoios públicos? Só se forem “pontuais, justos e estruturais”
A maior parte da imprensa aufere rendimento através da publicidade, um modelo que, no caso dos media de proximidade, está a ser posto em causa [LER_MAIS]pela aquisição do mercado de retalho e de outros sectores produtivos, por grandes empresas nacionais e fundos internacionais, sem rosto nem sede nas regiões, o que dificulta o contacto comercial e pelo aparecimento de novos meios digitais, entre outros factores.
Por que não então, no âmbito da Responsabilidade Social das Empresas e do reconhecimento dos media regionais, enquanto facilitadores e garantes da pluralidade e da identidade local, criar fundos para apoiar, desinteressadamente, a imprensa de proximidade?
O presidente da Nerlei – Associação Empresarial de Leiria reconhece a importância dos media locais, mas diz que não faz sentido, por uma questão de independência desses meios.
“A Nerlei está e estará ao lado dos meios de comunicação regional, canalizando para os mesmos a maior fatia da promoção dos seus projectos e apoiando-os institucionalmente nas suas iniciativas, mas considera que não se deve substituir aos próprios na definição do caminho a seguir sob pena de colocar em causa a independência, que deve ser sempre a principal característica destes projectos.”
António Poças diz que, na região de Leiria a imprensa regional é “forte, de qualidade e que se tem sabido reinventar de forma a manter-se competitiva” e garante que tem sido “devidamente reconhecida” pelas empresas, que investem “de forma regular em publicidade e outros produtos comerciais, que trazem valor acrescentado à região”.
Já Paulo Batista Santos, presidente da Câmara da Batalha, entende que deveria haver apoio público, mesmo que os críticos dos apoios financeiros aos media apontem “o perigo de uma instrumentalização do Estado num meio que tem como uma das suas principais funções o escrutínio do poder.”
“Numa breve reflexão e salvaguardadas as distâncias, o nosso País em democracia concordou que seria preferível financiar através do Orçamento do Estado, por exemplo, os partidos políticos e outras entidades independentes ou com fins políticos, pugnando assim pela transparência e independência da política face aos poderes económicos. Por maioria da razão, entendo que aqueles que têm como missão escrutinar os diversos poderes, tendo um grave problema de qualificação de recursos e de sustentabilidade financeira, deveriam ser beneficiários de apoios públicos, num modelo regulado, transparente e autónomo dos agentes do poder.”
Segundo Paulo Baptista Santos, em, pelo menos seis países de regime democrático – Finlândia, França, Ale- manha, Itália, Reino Unido e Estados Unidos – esses apoios existem. “Porque não também em Portugal?”
Para o presidente da Câmara de Leiria, o cenário é uma oportunidade de a imprensa “se reinventar”. Gonçalo Lopes ressalva, porém, que “a viabilização de um modelo de negócio através da atribuição de subsídios constitui uma solução artificial, mas admito que se possa equacionar um cenário desta natureza numa perspectiva transitória”, sublinhando que o modelo de negócio terá sempre de assentar na qualidade e independência, “o que pode ficar comprometido num contexto de subsidio-dependência”.
“Qualquer que seja a solução adoptada, apenas terá dimensão estrutural se a equação tiver como variáveis determinantes o aumento dos níveis de literacia e dos hábitos de leitura da população portuguesa.”
Até ao fim da rua
“Lembram-se do famoso slogan da TSF onde se diz que, por uma notícia os jornalistas da estação de rádio iriam “até ao fim do mundo, até ao fim da rua”? É uma das mais brilhantes defi- nições do que deve ser o jornalismo.”
Francisco Pedro, director da revista Fátima Missionária afirma que, da imprensa regional, não se espera que vá até “ao fim do mundo”, mas que “descubra, que questione, que divul- gue, que denuncie, que informe, que promova o debate sobre o que se pas- sa ‘no fim’ ou no caminho ‘até ao fim da rua’”.
Quanto à criação de um fundo para apoiar a imprensa regional, a ideia parece-lhe exequível, porém ressalva que a subsidiarização só faz sentido se for “pontual, justa e estrutural”.
Antes, o responsável afirma que é necessário valorizar o jornalismo regional, incentivar as empresas e organismos públicos, entre outros, a investirem em publicidade, “sem pressões ou exigência de contrapartidas”.
“Sem determinação, inovação, espírito de resiliência, publicidade e sem leitores, não há imprensa que resista, muito menos a regional.”