As infecções pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH), que provoca a sida, têm vindo a diminuir na região de Leiria, mas os especialistas alertam para a necessidade de se insistir no rastreio precoce, para que o tratamento possa ser iniciado rapidamente, até porque a evolução da doença é lenta e assintomática.
Rui Passadouro, delegado de saúde coordenador da Unidade de Saúde Pública de Leiria, afirma que um tratamento precoce com retrovirais e cumprido à risca torna o vírus indetectável, perdendo a sua transmissibilidade. “As falhas estão identificadas e têm a ver com falta de adesão terapêutica. Se a pessoa cumprir com rigor a medicação, a taxa de sucesso é de 100%”, adianta.
Odete Mendes, antiga coordenadora do Programa VIH-Sida na região, acrescenta que a Organização Mundial da Saúde acredita que em 2030 será possível erradicar a doença. “Existe um objectivo dos países se comprometerem em erradicar a epidemia até 2030. É uma boa notícia. Olhando para trás, pensamos que isto é surreal, mas também se dizia o mesmo da tuberculose e conseguiu-se”, sublinha.
Para que tal seja possível, os especialistas insistem na responsabilidade da população e dos profissionais de saúde na realização e prescrição de rastreios.
“O método é sempre o mesmo: rastreio precoce e a disponibilidade dos materiais para o fazer de forma massiva”, constata Rui Passadouro, que defende o acesso facilitado a todos. Mesmo os testes rápidos e auto-testes são fiáveis.
“São testes muito sensíveis, que não deixam passar nada. Pode haver falsos positivos, pelo que se deve procurar os serviços de saúde” para confirmar o diagnóstico, aconselha o delegado de saúde, alertando que quanto mais rápido tiver resposta, maior garantia terá de sucesso.
Dulce Fonseca, enfermeira que integra o programa do VIH em Leiria, aconselha ainda os jovens a procurarem o seu médico de família sempre que necessitarem de apoio ou esclarecimento sem qualquer receio de que a família ficará a saber. “O médico tem o dever da confidencialidade e nada será transmitido”, tranquiliza.
O Hospital de Leiria deixou de ter um serviço de Infecciologia, onde são tratados os seropositivos, pelo que os diagnósticos realizados na região são enviados para Coimbra, que dá uma resposta atempada, às vezes de um dia para o outro. “Temos uma área de abrangência de 400 mil pessoas, portanto devíamos ter também aqui uma resposta”, lamenta Rui Passadouro.
Odete Mendes critica ainda o encerramento do Centro de Atendimento a Jovens, em Fevereiro, por decisão do conselho de administração da Unidade Local de Saúde da Região de Leiria.
“Era o espaço onde se faziam testes rápidos, independentemente da área geográfica. Fechou-se aqui a porta de um serviço acessível, sem custos, que respondia a uma população universitária e a outra que não pertencia a lado nenhum. Esperemos que a curto prazo se encontrem outras respostas”, até porque continua a haver uma percentagem elevada de diagnósticos tardios (58%).
Há quatro décadas o mundo acordou para uma nova pandemia, que durante alguns anos causou o terror, não só entre os homossexuais (doença associada a este grupo) como também na população em geral. Ninguém imaginava que a infecção se poderia tornar numa doença crónica, como sucede actualmente.
Odete Mendes pede, no entanto, para não se desvalorizar nem baixar a guarda face às boas respostas terapêuticas que existem, mas admite que a detecção precoce permite viver vários anos com qualidade de vida e até não transmitir a doença. “Uma pessoa com diagnóstico de infecção, que não teve mais comportamentos de risco, faz uma alimentação adequada e não interrompe o tratamento, tem qualidade de vida”, assegura a antiga coordenadora e médica de saúde pública.
Boas notícias
Para o sucesso do combate e erradicação da sida é preciso manter o trabalho contínuo, reforçando a formação dos profissionais de saúde e informando os mais jovens.
“Valeu a pena e continua a valer o investimento em todos os programas”, avisa Odete Mendes. Os passos gigantes que se deram na investigação do vírus levaram a que seja agora possível utilizar medicação pré e pós exposição, “com taxas de sucesso muito elevadas, admitindo-se que o objectivo da erradicação possa mesmo acontecer”, diz Rui Passadouro.
Quando alguém sabe que se vai expor a uma situação de risco evidente é possível realizar injectáveis como profilaxia. O mesmo acontece quando alguém receia ter sido infectado – incluem-se os habitantes.
“A região de Leiria, em termos de número de novos casos, está de parabéns”, constata aquela médica. A nível nacional, os únicos dados existentes, a principal transmissão é através da via sexual, referida em 96,1% dos casos. A taxa dos utilizadores de drogas injectáveis com diagnóstico em 2023 é de 2,6%. O programa de troca de seringas nas farmácias foi um sucesso para a prevenção, aponta Odete Mendes.
Predomina a transmissão heterossexual, imediatamente seguida das relações homossexuais. Migrantes aumentam casos Nos 863 novos casos em Portugal para os quais está disponível informação relativa ao país de nascimento, verificou-se que 46,9% são de pessoas naturais de Portugal e que 53,1% (458/863) nasceram noutros países, constituindo estes últimos a maioria dos diagnósticos ocorridos em 2023.
Dos 458 casos que referiam ter nascido noutro país, 49,8% são oriundos de países da América Latina e 42,4% de países situados na África Subsariana, refere o relatório.
O problema é transversal aos países europeus. Até 2020 verifica-se uma descida da incidência que se inverteu, a partir de 2021. Porquê? “Porque se realizaram mais testes a nível mundial e porque aumentou o diagnóstico entre os migrantes de países de elevada prevalência. Portugal, como outros países da Europa, aumentou o diagnóstico fundamentalmente à conta de outros países. Estamos a falar não só da guerra da Ucrânia, mas da mobilização de outros países. Pensa-se que a África é um problema, mas os números diminuíram 39%”, explica Odete Mendes.
Esta médica adianta que aumentaram os casos oriundos do Médio Oriente, Norte de África, Europa Oriental, Ásia Central e América Latina.
Entre 2014 e 2023 nasceram em Portugal 2.205 crianças filhas de mães que vivem com VIH, tendo sido apenas transmitido a 19. A transmissão vertical (mãe/filho) acontece em gravidezes não vigiadas ou mal vigiadas, em que o diagnóstico na mãe ocorreu no segundo ou no terceiro trimestre.
“Quando é conhecido, existe tratamento para tornar a carga viral indetectável”, impedindo assim a transmissão.
Desde 2017 que a maioria das mães que transmitiram o virus ao filho são estrangeiras, de países africanos. Das crianças nascidas em 2023, apenas 33% eram filhas de mães seropositivas nascidas em Portugal. “Há mais diagnósticos em estrangeiros, porque são culturas diferentes: o número de parceiros sexuais, a mulher não ter qualquer valor, países onde a violação ocorre com frequência e uma resistência ao uso do preservativo”, justifica Odete Mendes.
Estigma esbateu-se
Portugal registou o primeiro caso de infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH), que provoca a sida, em 1983. Quarenta e um anos depois, o estigma não desapareceu totalmente, mas já serão raros os casos em que alguém recusa dar um aperto de mão ou um beijo a uma pessoa com VIH.
“Ninguém queria cozinheiros infectados. Lembro-me de situações em cozinhas em que tivemos de intervir e explicar que não existia qualquer risco. Ninguém queria trabalhadores com esta doença”, recorda Rui Passadouro.
Esconder da família era o mais comum e quando os medicamentos necessitavam de frio, “havia quem pedisse aos amigos para os guardar no seu frigorífico”, conta Odete Mendes. O medo do abandono levava também alguns seropositivos a recusar revelar a infecção aos parceiros, “com todo o risco que isso implicava”.
Hoje, há quem faça questão de pedir à família para os acompanhar quando recebem um diagnóstico positivo, de modo a que possam ouvir os riscos inexistentes e as formas de transmissão. Mas houve momentos em que nem se partilhavam os utensílios de cozinha. “Lembro-me de uma situação em que fomos a uma casa por existir problemas com um infectado. Mas ninguém estava preocupado com uma tuberculose multirresistente, da qual veio morrer, e isso sim era motivo de preocupação”, afirma aquela médica.
Os números
7
100
Estima-se que a utilização do preservativo terá evitado mais de 100 milhões de novas infecções a nível mundial desde 1990