O que se passa nas urgências em Leiria e em Caldas da Rainha? Falta de enfermeiros e de médicos?
A falta de enfermeiros não é de agora. Há mais de 10/15 anos que faltam enfermeiros neste serviço: enfermeiros e enfermeiros especialistas. Com a vinda da troika e a passagem das 35 para as 40 horas, não se notou tanto essa falta. Alguns dizem que a reversão para as 35 horas é que está a causar isto. Mas não, porque o encerramento das urgências de obstetrícia e de pediatria, e até mesmo o congestionamento das urgências gerais, deve-se à falta de médicos. E esses mantiveram sempre as 40 horas. Temos falta de enfermeiros, apesar de conseguirmos ter os rácios/ doente nos mínimos. E isso nota- -se nas greves, que antes ficavam seis enfermeiros no serviço X do hospital e agora são quatro. O número de enfermeiros foi reduzido, dada a não entrada de enfermeiros. O rácio enfermeiro/doente não está a ser cumprido durante o dia. Consideramos ideais os mínimos da noite, porque o exercício é o essencial. Toda a dinâmica do doente, do serviço, de terapêuticas, de exames é feita durante o dia, logo aí tem de haver maior número de enfermeiros. Por isso, os rácios nos turnos da manhã e da tarde não estão a ser cumpridos. Por vezes, têm o mesmo número de enfermeiros que existem no turno da noite.
Estamos a falar de quantos?
Muitas vezes 2/3 enfermeiros no internamento. Nas urgências é sempre mais complicado fazer estes cálculos, porque supostamente o doente devia estar no máximo 24 horas na urgência, o que não acontece por falta de camas. Ao longo de 20/30 anos, o número de camas de rectaguarda das urgências, nas medicinas e cirurgias, foram reduzindo. Curiosamente, essas camas foram aumentando no privado.
Os médicos têm 150 horas extraordinárias para fazer por ano. Os enfermeiros têm algum limite?
Não, mas fazemos muitas mais. O que é que são horas extras? É sair às 4, mas prosseguir o turno porque o colega que me vinha render teve um imprevisto. Outra coisa são os turnos extra programados, ou seja, já saem nos horários, porque há falta de enfermeiros. Por exemplo, se num serviço se fazem 300 horas extra num mês quer dizer que são 150 + 150, são quase 2 enfermeiros e meio que faltam. Os rácios, as horas extra, os feriados e as horas por pagar a tempo e horas e os contratos precários fazem um número de necessidades. Segundo os últimos números na ULS [Unidade Local de Saúde] de Leiria, em Março, havia 1.289 enfermeiros e sabemos que a administração justificou a necessidade junto da tutela de mais 10% desse número. O número de precários, são neste momento de 140/150, porque oscila. Significa que o número de autorizações não chega sequer a cobrir as necessidades dos contratos precários, quanto mais para suprir as horas extras e o rácio enfermeiro/doente.
O Serviço Nacional de Saúde (SNS) assenta nas horas extra dos enfermeiros?
Puro e duro. Em Março, o INE [Instituto Nacional de Estatística] indicava que faltam 13.700 enfermeiros no SNS. E há enfermeiros para contratar? Há. Estão a sair em full time das escolas. Mas, de há 5 anos para cá, temos vindo a notar que 40%, 50%, 60% vão directamente para o estrangeiro.
E há enfermeiros especialistas em número suficiente?
Não. O enfermeiro tira a especialidade, mas depois esse colega não recebe como especialista. Deveria haver mais concursos e não haver quotas, até porque contraria, por exemplo, os serviços de obstetrícia, pediatria ou as unidades de cuidados de saúde primários que deveriam só ter enfermeiros especialistas.
O serviço prestado tem menos qualidade?
A qualidade está lá, mas o conhecimento específico daquele procedimento fica, por vezes, aquém. Na ULS de Leiria faltam 500 enfermeiros, quer nos cuidados hospitalares quer nos cuidados de saúde primários. Houve um incremento de 24 USF [Unidades de Saúde Familiar] modelo B e os enfermeiros tiveram de vir de outras unidades, mas essas saídas não foram substituídas. Se faltavam enfermeiros, continuam a faltar e o trabalho não reduziu. Quer dizer que esses enfermeiros fazem horas extra atrás de horas extra. Isto é uma bola de neve que não tem fim.
Por que não há mais contratações?
A ULS tem autonomia gestionária própria para contratar enfermeiros, mas precisa de autorização dos ministérios da Saúde e das Finanças. Para isso precisa ter o plano de desenvolvimento e orçamento aprovado, que no passado não foi. Por isso, os enfermeiros que saíram não foram substituídos, ou, a serem, foram por contratos precários, que estão a fazer as funções de um enfermeiro efectivo. Então é porque fazem falta. Estão a recorrer a contratos de substituição de dois e três meses, de 4 em 4 meses, ano após ano. Ao fim de 4 anos, são obrigados a passar para o quadro, mas até lá ficam com as suas vidas suspensas. Temos colegas que trabalham três meses, vão para casa um mês e depois voltam a ser contratados. Quando a ULS de Leiria foi criada detectámos recibos verdes, denunciámos e a situação foi resolvida. Pelo contrário, na ULS do Oeste, onde não havia contratos a recibo verde e face à necessidade dizem que foram obrigados a fazê-lo porque a tutela não autorizava a contratação de enfermeiros.
Faz sentido manter uma urgência obstétrica aberta apenas com enfermeiros especialistas?
Os enfermeiros especialistas de obstetrícia têm capacidade para fazer partos, se a parturiente não tiver problemas detectados ao longo da gravidez. As consultas de saúde materna e obstétrica continuam no hospital. Qual é a prioridade que o conselho de administração tem? Quantos partos ditos normais são feitos em detrimento de cesarianas? Será que todas as cesarianas eram necessárias? Faz todo o sentido ter um enfermeiro, mas não é a servir de triador, porque se aparece uma gravidez com complicações, não tendo bloco obstétrico aberto, essa grávida tem de ser transferida e a enfermeira vai ter de acompanhá-la, deixando a rectaguarda descoberta. Se há consultas e enfermeiras, então por que é que não se abre o bloco? Há colegas que foram obrigados a tirar férias.
Mas não se poderia diminuir o número de médicos para compor a escala beneficiando do saber dos enfermeiros?
Absolutamente. Temos toda a capacidade. A grande maioria dos partos não tem complicações, pelo que o enfermeiro, pela sua especialidade, pelo seu conhecimento, está apto.
Como é que os enfermeiros vêem esta questão do encerramento das urgências?
O plano de saúde de emergência que está em vigor para o Verão deveria ter sido mais bem preparado e falado com os enfermeiros no terreno. Apenas nos foi comunicado que de x a x iria encerrar. Se isto se continuar a repetir e for em Dezembro? Já não há férias nem feriados ou folgas por gozar. O que se faz aos enfermeiros? Ficam sem trabalhar, porque o conselho de administração não os deixa? Os enfermeiros foram obrigados a tirar férias porque o serviço ia encerrar? Uns tiraram férias, outros feriados. Os enfermeiros sentem que foram colocados de lado para a solução e atraiçoados. Em 2020, 2021 e 2022, tantas palmas e agora organizam e decidem sem escutar os enfermeiros que estão no terreno, alguns há mais de 30 anos.
Qual a importância do enfermeiro de família?
O enfermeiro de família já existe há muitos anos, mas nunca foi valorizado. As listas continuam a ser médicas, as prescrições (nós podemos prescrever), a admissão dos doentes e os objectivos continuam a ser médicos… Os enfermeiros estão sub- -aproveitados, face ao conhecimento que têm para colmatar défices no SNS. O enfermeiro de família é muito importante, porque vai ao local, conhece a família e a comunidade onde o utente está inserido. Não é só para estar a preencher objectivos e estatística.
Um dos braços de ferro com a ULS de Leiria tem sido o tempo da passagem de turno. Porquê?
A passagem de turno é o relato falado dos acontecimentos dos doentes entre os colegas da equipa que sai à equipa que entra. A última legislação aponta para um período de 30 minutos no máximo. Houve instituições que cumpriram de imediato. A ULS de Leiria nunca obedeceu. Há serviços que têm passagem de turno outros não têm e o máximo são 15 minutos. Se os rácios enfermeiro/doente estão superlotados, significa que tenho mais doentes a meu cargo, logo tenho de fazer o relato de sete ou oito doentes em vez de dois ou três. Obviamente esses 15 minutos não chegam, nem, às vezes, a meia-hora legislada. E se esses dados são importantes para a continuidade dos cuidados, essa meia- -hora tem de ser paga. Este diálogo com a administração já se arrasta há 5 anos. O que temos reivindicado é que se aplique a meia-hora, mas o que dizem é que depois têm de pagar esse tempo e não querem. E também não têm enfermeiros para pagarem em tempo. Os enfermeiros têm disponibilizado o seu tempo para o doente, por puro altruísmo. Se calhar é “altruísmo a mais”.
Qual é que é a realidade pior: Caldas ou Leiria?
Leiria, embora haja duas realidades. Nos cuidados hospitalares, as administrações da ULS do Oeste sempre foram mais sensíveis às nossas reivindicações e valorizaram os enfermeiros e os profissionais. Em Leiria, nunca foram sensíveis e dá ideia mesmo que são anti-enfermeiros. Não valorizam, não respeitam e não procuram resolver os problemas dos enfermeiros.
Mas por poupança de dinheiro?
Pura e simplesmente, é para pouparem dinheiro com os enfermeiros. Há questões que estão por resolver há 20 anos. Outra coisa é a migração dos ACeS [Agrupamentos de Centros de Saúde] para as ULS. A ULS de Leiria tem um bocado da ARS [Administração Regional de Saúde] Centro e muitas questões de valorização, de retroactivos e dos pontos estão resolvidas. Depois a ULS do Oeste e a ULS de Leiria dividiram concelhos da ARS de Lisboa e Vale do Tejo, que não valorizou o tempo dos enfermeiros. Temos colegas com 20/25 anos de carreira dos ACeS de Lisboa e Vale do Tejo a receber como tivessem acabado o curso ontem. Por isso, temos enfermeiros com os mesmos anos de trabalho a receber salários diferentes.
Caldas tem-se oposto à construção do novo hospital no Bombarral. O que defendem os enfermeiros?
Isso já se arrasta há cerca de 30 anos. As 33 camas de medicina para 150 mil doentes de incidência, são hoje as mesmas para uma incidência de doentes de 250 mil. Por isso, construam, onde quer que seja. Mas fiquem com os hospitais das Caldas, de Torres Vedras e de Peniche de rectaguarda. Os médicos já compararam a urgência de Leiria a fazer medicina de guerra. É possível tratar bem os doentes em cenários destes? Faz-se o melhor. Muitas vezes, se calhar a fralda deveria ser trocada já, mas tenho mais 5 para trocar. A terapêutica é às 15 horas, mas tenho 30 para dar a terapêutica. Se calhar tenho de começar às 2 para acabar às 4. Se continuarmos com o número elevado de doentes dentro da urgência não vamos conseguir resolver estas situações. Tem de haver rectaguarda. Trabalhei 18 anos na urgência e há situações de puxar a bata: ajude-me. Há enfermeiros que têm vergonha de dizer que trabalham na urgência.
Porque sentem a dor dos utentes?
A dobrar. Não conseguem tirá-las e depois levam-nas para casa e por isso há os burnout e as depressões. Se não têm capacidade de rectaguarda, se a urgência tem capacidade, imaginemos, para 100, e estão 300. Isto é uma catástrofe.
Que denúncias e soluções já apresentaram os enfermeiros em Leiria?
Os doentes passam muito tempo internados na urgência. Muitas vezes estão mais do que 3 dias, até 10 dias. Muitos até cumprem todo o internamento na urgência e isto não pode acontecer.
Dificulta o cuidado dos enfermeiros?
Claro. Como aquilo está sempre superlotado, como é que podemos obedecer aos critérios da privacidade, à observação e vigilância dos doentes quando se deveria ter no máximo 4/5 doentes e tem-se 30? Quais as principais reivindicações que gostariam de ver já resolvidas? Valorizar os enfermeiros, corrigir as injustiças que têm acontecido ao longo dos anos em termos de reposicionamento e de actualizações. Cumpram a legislação que está em vigor, já, e contratem mais enfermeiros. Se o conselho de administração e o ministério querem investir no SNS têm de investir na entrada de mais profissionais, com mais concursos para especialistas e gestores.