Com que sentimento deixa o SNS e o hospital de Leiria?
É um misto de emoções. Saio com o sentimento de dever cumprido. Sou um homem do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Faço clínica privada, mas nasci no SNS, que ajudei a construir. Quando cheguei a Leiria, o Serviço de Cardiologia era residual. Tinha apenas um médico, que se aposentou pouco depois de eu entrar. Ficámos dois, eu e um colega que veio comigo. Hoje, deixo um serviço com 15 médicos e seis internos de especialidade e que faz mais de 95% do que é necessário em cardiologia. Há coisas que não se fazem, nem nunca se farão, como a cirurgia cardíaca, que apenas existe em Lisboa, Porto e Coimbra. Também ainda não se fazem alguns tratamentos mais diferenciados nas áreas da doença valvular e das arritmias. Talvez possa vir a acontecer dentro de dois ou três anos.
Preparou a aposentação?
Não. Sabia que ela tinha de acontecer quando atingisse os 70 anos. Encaro a saída com total naturalidade. Tenho muita coisa para fazer. O tédio não me preocupa. Nos últimos 30 anos, dividi a minha vida entre a actividade assistencial e não assistencial, esta última, nas áreas da gestão e da investigação. Ocupei vários cargos nacionais e internacionais, sempre com grandes desafios científicos. Escrevi e publiquei muita coisa, coordenei grupos, participei em ensaios clínicos e criei um centro de investigação no hospital. Tenciono aumentar esta competente da minha vida e manterei a actividade no privado.
Concorda com o limite dos 70 anos para trabalhar na função pública?
Completamente. Do ponto de vista de direcção, é inaceitável que as pessoas se arrastem nos cargos, independentemente de estarmos bem, física e psicologicamente, até porque as gerações mais novas têm que ter a sua oportunidade. Mesmo na área assistencial e, embora o desafio técnico seja diferente de especialidade para especialidade, também concordo que se páre aos 70 anos. Se é alguém que tem uma técnica muito diferenciada, o hospital pode contratar para continuar a executá-la e ajudar a formar outras pessoas.
Chegou a Leiria em 2001, depois de 19 anos ligado aos hospitais da Universidade de Coimbra. O que é que o fez trocar uma unidade referência por um hospital que, segundo as suas palavras, tinha um serviço de cardiologia residual?
Foi um misto de várias coisas. Tinha 47 anos e a noção de que, trabalhando num grande hospital, dominado pela academia e não sendo eu académico na altura, em termos de progressão na carreira tinha chegado onde podia chegar. Quando me convidaram para Leiria, achei que era o momento certo. Era um enorme desafio. Em Coimbra, liderava uma unidade de cuidados intensivos de topo, onde tinha tudo, e vim para aqui ‘apanhar feijões’. Mas, mesmo assim, a mudança parecia-me interessante. Para mim, já era muito claro que não fazia sentido que entre Lisboa e Coimbra não houvesse um centro de referência na área da cardiologia.
Em algum momento se arrependeu da decisão?
Arrepender ao ponto de ponderar ir embora, não, mas tive momentos muito difíceis. Pensava que ia chegar mais rapidamente onde queria. O processo foi muito lento, por circunstâncias múltiplas. Por exemplo, apanhei os terríveis numerus clausus e não foi fácil cativar médicos. Também demorei a perceber que tínhamos de evoluir do ponto de vista tecnológico para atrair profissionais. Tive a felicidade – é a minha coroa de glória – de contar com um Conselho de Administração (CA) corajoso e ambicioso, que alinhou comigo em desenvolver um mega-projecto, e de haver dinheiro. O hospital teve seis milhões de euros, de capital próprio, para investir numa unidade de hemodinâmica. Hoje, era impensável. A partir do momento em que conseguimos ganhar notoriedade e ter tecnologia, tornou-se mais fácil, mas foi um desafio muito grande. Nós arrancamos para a construção de uma sala de cateterismos sem termos ninguém no serviço que os soubesse fazer.
Como convenceu a administração?
A administração percebeu que este hospital tinha que ter serviços-âncora. O Dr. Helder Roque achou que valia a pena apostar na cardiologia, mesmo sendo um serviço minúsculo na altura, porque tinha um imenso potencial de crescimento. Era impossível correr mal. Mas tivemos problemas para pôr a unidade a funcionar. Foi uma violência, porque Coimbra sentiu- -se muito ofendida. O CA teve, de facto, muita coragem. Hoje, seria muito difícil.
A criação da unidade hemodinâmica esteve envolta em controvérsia. A batalha valeu a pena?
Sem dúvida, sobretudo, para os doentes. Perdemos amigos, ganhamos alguns inimigos, praticamente todos em Coimbra, devido a um triste e lamentável bairrismo. Diziam que o projecto era economicamente deplorável e que o hospital ia entrar em falência com a unidade de hemodinâmica. Mas eram argumentos sem fundamento, como ficou demonstrado. Conseguimos ir buscar um grupo de pessoas de topo, os melhores do País, para montar o projecto. Tínhamos de estar muito bem resguardados e, para isso, precisávamos dos melhores. Tivemos a trabalhar connosco directores de unidades de hemodinâmica de grandes hospitais.
Foi fácil trazê-los para o projecto?
Acabou por ser, porque eles acharam o desafio muito interessante. Claro que havia compensações económicas, não sejamos ingénuos. Mas, mesmo havendo dinheiro, alguém que vive em Lisboa e que às quatro da manhã é chamado a Leiria para tratar um doente, também o faz pelo desafio. Durante muito tempo, trabalhámos com equipas que vinham completas – médico, técnico e enfermeiro -, mas fomos formando pessoas e, ao fim de algum tempo, só precisávamos do médico.
Quais as conquistas do Serviço de Cardiologia e do CHL que mais o orgulham?
A unidade de hemodinâmica é um marco, porque funcionou como âncora e mudou completamente o perfil do serviço. Mas, hoje, o serviço é muito mais do que a unidade. Destaco o crescimento que tivemos nas áreas da ecocardiografia e dos pacemakers. No ano passado, fomos o quarto centro em Portugal com mais pacemakeres implementados. Ontem [dia 26] iniciámos uma técnica que era a única que faltava na área dos pacemakers. Realço ainda a reabilitação cardíaca, que não é muito visível, mas tem uma grande utilidade. Para muitos doentes, a reabilitação vale mais do que todas as pastilhas [medicação] que tomam.
Em relação ao hospital, que marcos destaca?
Este hospital não tem nada a ver com o hospital que eu conheci. Tem hoje serviços de excelência e de referência, como a cirurgia, a urologia, a pneumologia e a gastroenterologia, mas está a sofrer dores de crescimento. Cresce a uma velocidade acima do alimento que lhe dão. E a tutela nunca conseguiu perceber isso. Tem 600 camas. Tirando os hospitais centrais, é o maior do País. O hospital de Leiria foi sempre subestimado pela tutela e pela Administração Regional de Saúde [do Centro]. Atingimos um patamar em que éramos os melhores do País no que respeita ao desempenho individual, o que é que cada um produz. Mesmo sem autorização para contratar os recursos de que precisávamos, continuámos a crescer. Há agora o desafio da ULS [Unidade Local de Saúde], que abarca cerca de 3.300 funcionários e 300 milhões de euros de orçamento.
O que pensa do modelo das ULS?
Conceptualmente, concordo. Faz sentido juntar debaixo da mesma capa toda a estrutura de saúde de determinada zona. Tenho dúvidas que os grandes hospitais, como o CHUC, o Santa Maria ou São João, devam integrar estas estruturas. Discordo que se tenha feito ao mesmo tempo em todo lado e da mesma maneira. O processo não está a correr bem, porque foi feito muito à pressa. A rapidez como que se fez a passagem para as ULS tramou o processo.
O que é que lhe ficou ainda por fazer no hospital?
Saio com a pena de não ter conseguido ampliar a unidade de hemodinâmica. Nenhum hospital com a nossa dimensão trabalha apenas com uma sala. Temos de ter pelo menos duas. O projecto que deixo é para três, a fazer de forma faseada. É crucial para o hospital conseguir crescer. Isto é como no futebol: quando jogamos para empatar, o risco de perder é enorme. Temos de jogar para ganhar. Sem ambição, instala-se o marasmo. O hospital está num colete de forças, que é físico e económico. Devemos trabalhar a pensar a 10 ou15 anos, mas depois esbarra-se sempre no problema da falta de dinheiro, de técnicos e de autonomia.
Era suposto a questão de autonomia ser minimizada com as ULS.
Isso não passa de uma promessa. Neste momento os constrangimentos das administrações continuam a ser os mesmos. Só têm autorização para contratar profissionais para substituições em caso de gravidez ou de doença. Médicos ainda vão deixando contratar, técnicos não.
Qual é o grande desafio do hospital?
O problema do hospital é o mesmo do SNS, a sua sustentabilidade e os recursos humanos. O hospital não pode continuar a viver com o pavor que é a urgência. A urgência está a matar o hospital. Os seus problemas minam a instituição. Até ao início deste ano fiz parte da direcção clínica. Passámos horas a discutir a situação da urgência para não chegar lado nenhum. Se não se resolver o problema das urgências, que tem que ver com a forma como as pessoas entram no SNS, a sangria de profissionais continuará. É difícil captar jovens para as especialidades que estão envolvidas com a urgência. Abriram sete vagas para Leiria em medicina interna, por exemplo, mas só uma ou duas ficaram preenchidas.
A situação da urgência dificulta a captação de especialistas?
É evidente que sim. Os médicos sabem que vindo, arriscam-se a fazer oito ou nove urgências por mês de 24 horas e a passar cá três fins-de-semana. A minha geração fazia 72 horas seguidas se fosse preciso. Agora não e ainda bem que não. O grande cancro do SNS tem a ver com a forma como as pessoas entram no sistema. A ministra está muito contente porque conseguiu aumentar as cirurgias. Fantástico. Mas baixou-se brutalmente as consultas. Se os médicos estão a operar, não consultam. Não há milagres. O hospital chegou a pagar rios de dinheiro por hora para a urgência e, mesmo assim, não tem médicos. Hospitais que eram considerados modelo, como Beatriz Ângelo, em Loures, estão a colapsar.
Como se chegou a esta situação?
Nos últimos sete anos abriram cerca de 40 hospitais. E os médicos são basicamente os mesmos. Se as novas unidades pagam mais e têm melhores condições de trabalho, não é difícil de perceber. Há também um problema de organização no SNS. As pessoas estão muito cansadas de trabalhar num sistema desorganizado. Por exemplo, no SNS os médicos gastam horas com coisas que podiam ser feitas por outros profissionais. Temos um sistema arcaico. Funcionou há 40 anos, mas agora não.