Temos 40% da população portuguesa a residir nas cidades, mas é também nas cidades que ocorrem muitos fenómenos de alienação e exclusão social. São sintomas de que algo está a falhar?
Sim. As cidades não resolvem um dos principais problemas a nível nacional, que é a questão das desigualdades sociais. Nós somos um país muito desigual, dos mais desiguais da Europa. Até por efeitos da crise económica, os segmentos da população que recebem menos estão mais próximos, o segmento que recebe mais distanciou-se e há um pequeno segmento no meio que se manteve igual. O que quer dizer que há uma polarização social muito grande. Isso nota-se nas cidades, na geografia.
As populações urbanas não têm a rede de suporte que existe nas zonas rurais?
A nível de serviços públicos as cidades estão melhor dotadas. Há um pouco a noção, de senso comum, de que as solidariedades familiares em meio rural, a vizinhança, o parentesco, actuam como forma de substituir as falhas do Estado social ou a inexistência de serviços de proximidade. Não está totalmente provado que em Portugal as cidades não tenham também esse tipo de redes, até porque temos algumas cidades que são muito peculiares. Temos um fenómeno, embora mais marcado de Coimbra para Norte, de urbanização difusa, isto é, de cidades que cresceram nos insterstícios do campo e da agricultura.
Coesão social, acesso à cultura, ambiente – são estas as ambições que geram mais insatisfação nas cidades, actualmente?
Sim, mas convém dizer que em termos comparativos vive-se melhor nas grandes cidades do que fora delas. Os indicadores de escolaridade, emprego, saúde, todos os indicadores sociais são melhores nas grandes cidades.
Entretanto, somos cada vez mais um país do litoral e na faixa entre Lisboa e Porto. E a Fundação Gulbenkian propõe um novo mapa de Portugal que vinca a influência da área metropolitana de Lisboa até à zona de Leiria.
Temos um país a várias velocidades.Territórios que estão na média em termos de poder de compra, rendimentos, cobertura de serviços públicos, qualidade de vida, esses territórios estão à superfície. Então, uma boa parte do país, nesse caso, está submerso. Isto é, largas zonas do interior, mesmo uma parte do litoral alentejano estão submersos, estão abaixo da média. E esse país está a afastar-se e a divergir. Estamos a falar de poder de compra, emprego, equipamentos. Isso significa que boa parte do território está a desertificar-se, está a perder, como hoje se diz, competitividade e coesão.
Mas devemos abraçar em definitivo a vocação atlântica ou contrariar esta realidade?
A tendência tem sido essa vocação atlântica ser cada vez mais intensa. Parece-me que temos de ter uma outra noção, que é a noção das cidades intermédias, das médias cidades. Para além desse país que está submerso, e para além das duas grandes áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, temos que ter uma rede equilibrada de cidades médias, que não temos. Uma cidade média à nossa escala é Leiria, Aveiro, Coimbra, Braga, Setúbal, e precisamos de mais. Até porque essas cidades médias poderiam ser âncoras para que o interior não se desertificasse tanto, para que aí se concentrassem mais oportunidades, em particular para as novas gerações, e para que o território funcionasse como uma rede. Tenho dúvidas em relação a estes exercícios da Gulbenkian, porque projectam certas áreas urbanas em termos globais de competição, mas podem criar efeitos de maior exclusão dentro dessas áreas urbanas.
A cultura pode ser um mecanismo de integração social?
Cada vez mais. A cultura pode servir nas cidades de duas formas complementares: como economia, criação de emprego, pelos sectores agora ditos criativos ligados à concepção e aos conteúdos, mas serve também como coesão social, integração social, como forma de as pessoas se reverem naquilo que são as identidades comuns. Se nós queremos um território integrado, pelo qual as pessoas respondam, no qual se sintam cidadãos activos, a cultura passa muito por aí. Não basta termos uma imagem de cidade voltada para o turismo, voltada para os serviços culturais para turismo. Rapidamente uma cidade esgota a sua oferta para turistas, a não ser que tenha equipamentos culturais bem estruturados, com oferta cultural bem enraizada: auditórios com programação, companhias independentes, associações com vida própria, e isso é que pode permitir a ligação entre uma oferta cultural que se renova e que até contribui para o turismo e para os tais sectores criativos, e, simultaneamente, envolver a população, que se sente a participar.
Quando pensamos nos centros históricos das cidades e nas políticas de reabilitação, normalmente fala-se em obras e pouco em políticas de povoamento que passem pelas dinâmicas culturais?
Claro, além de que, existe o risco, muito grande, de essas obras de reabilitação levarem àquilo que desde os anos 60 se tem chamado gentrificação. No fundo, são zonas que começam a ser cada vez mais caras. Muito rapidamente muda-se o perfil social daquela zona, mas perde-se autenticidade. É preciso muito cuidado com a reabilitação para que ela não signifique expulsão da função residencial.
Os municípios deviam olhar mais para as políticas culturais como ferramentas para os centros históricos?
Claro que sim, porque isso cria um tecido muito mais resistente e com muito mais hipóteses de renovar a oferta cultural e oportunidades de interesse. Se pensarmos só no comércio de charme e nas actividades de cultura espectacular, isso esgota-se muito rapidamente.
Fala-se cada vez mais do contributo da cultura para a economia, mas a precariedade abunda entre os agentes culturais.
É inteiramente verdade. Nós temos a nível nacional muito pouco dinheiro, o Ministério da Cultura continua a ter um orçamento miserável. E, em contrapartida, muitas vezes as autarquias têm aquela ideia da política espectáculo e dos eventos chave na mão. Temos 100 mil euros para a cultura? Vamos gastá-los em cinco concertos que custam 20 mil euros cada um. Pão e circo. Têm grande visibilidade, trazem uma estrela qualquer, permitem cinco dias de festa, mas durante todo o ano desertificam a criação cultural. Portanto, apostar em estruturas, equipamentos, redes, apostar na criação cultural endógena e na formação de públicos, pode demorar mais tempo a ter resultados, pode não ter o mediatismo que muitas vezes os ritmos políticos exigem, mas é uma aposta com muito mais futuro.
Perfil
O sociólogo das artes e das cidades
Licenciado em Sociologia e doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação, João Teixeira Lopes tem acumulado investigação relacionada com a cultura e as cidades. Com 23 livros publicados, sozinho ou em co-autoria, também já escreveu sobre juventude e educação, museologia e território. Actualmente preside ao Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde é professor catedrático. Integrou a equipa coordenadora do Relatório das Políticas Culturais Nacionais apresentado em 1998 junto do Conselho da Europa, foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, mas a maioria do público conhece-o das lides políticas: representou o Bloco de Esquerda como deputado à Assembleia da República entre 2002 e 2006 e faz parte da mesa nacional do partido. Nasceu no Porto há 46 anos.
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