Numa instituição com mais de 40 anos, que batalhas antigas continuam por vencer?
As batalhas antigas têm a ver com o crescimento da Cercina. Quando foi constituída, a Cercina tinha uma visão muito familiar, muito restritiva, relativamente àquilo que seria o seu papel e a sua missão na comunidade. E evoluiu para aquilo que é hoje, uma organização de base comunitária, que responde àquilo que são necessidades de apoio que estão identificadas no território. E isso colocou desafios muito grandes à organização, no sentido do seu crescimento, de aumentar a sua capacidade de resposta em termos de serviço e de apoio. A grande complexidade [LER_MAIS]está em fazermos crescer uma organização, que identifica necessidades cada vez maiores na população que apoia. E, por outro lado, mobilizar recursos para responder a essas mesmas necessidades. É essa a complexidade do exercício que estamos a fazer.
Os empresários estão hoje mais abertos à integração de pessoas com deficiência?
A inclusão é sempre uma luta, sendo que os caminhos para a inclusão podem ser muitos. Alterámos aquilo que eram os olhares muito centrados na incapacidade das pessoas. Agora mudámos a página e estamos a trabalhar as questões das capacidades dessas pessoas para poderem exercer alguma actividade. Obviamente que algumas têm necessidades de apoio diferentes, mas é para isso que as organizações estão a trabalhar. Essa mudança de mentalidade está a reflectir-se não só nos empresários, mas fundamentalmente na comunidade. E nós hoje temos uma comunidade mais inclusiva, também por força do papel da Cercina. As comunidades inclusivas não acontecem no estalar dos dedos. Acontecem por força destes agentes que temos no terreno, os profissionais, a própria organização, a forma como ela comunica, tudo isso faz com que haja uma comunidade cada vez mais inclusiva. Tivemos o cuidado necessário dentro do nosso espaço de influência, na Nazaré, numa zona específica da comunidade. Depois, o que fazemos é ir crescendo e alargando essa capacitação da comunidade para a inclusão. Vamos trabalhando por anéis e por áreas temáticas. Temos uma articulação muito grande com os Bombeiros Voluntários da Nazaré, com os agentes das forças de segurança pública, com os agentes de saúde e outras entidades.
A Rádio em Movimento é uma outra forma de trabalhar a inclusão.
Tentamos chegar à comunidade do ponto de vista de proximidade física e por isso é que nós somos uma organização de base comunitária, de portas abertas, que envolve a comunidade de proximidade na nossa zona de influência. E também trabalhamos a comunidade no seu todo, a partir de algumas ferramentas que temos, como é o caso da rádio. A rádio permite-nos ter uma comunicação mais global, chegar a mais gente, passando a nossa mensagem, valorizando a pessoa, dando a conhecer as suas verdadeiras ambições, expectativas e capacidades.
E as cidades já são desenhadas para todos?
Não, as cidades não são desenhadas para todos. E em duas dimensões. Uma é a acessibilidade física, a arquitectura do espaço público e como o preparamos para ser adequado às reais necessidades das pessoas, em termos de mobilidade. Depois, existe a acessibilidade cognitiva. Não podemos esquecer que muitas das pessoas que apoiamos têm a sua capacidade cognitiva comprometida e não entendem, muitas das vezes, aquilo que é a comunicação dita normal. Então temos que adaptar a comunicação a uma linguagem fácil. Se juntarmos a acessibilidade física à de comunicação, isso permite que a pessoa consiga estar na comunidade, compreender e desconstruir o que lhe está a ser apresentado. Estamos muito longe daquilo que podiam ser as ferramentas da acessibilidade.
A Cercina candidatou projectos aos apoios do PRR. Em que fase se encontram?
Candidatámo-nos ao PRR para os veículos eléctricos, no âmbito do serviço de apoio domiciliário. Precisamos de dar um contributo para a diminuição da pegada carbónica e aproveitámos essa oportunidade. Candidatámo-nos à construção de um CACI (Centro de Actividades e Capacitação para a Inclusão) e estamos a fazer um investimento de cerca de 900 mil euros. Diferenciámo-nos de outras organizações, porque não quisemos fazer uma construção de raiz. Percebemos que havia um centro social no Rio Novo, que estava encerrado, e que para nós era um edifício preparado para transformar em CACI. Adquirirmos esse edifício, submetemos a candidatura ao PRR, temos projecto aprovado e agora vamos fazer o investimento necessário. Permite reduzir significativamente os impactos financeiros nesta casa, porque a construção, por força da guerra e da inflação está cara e lenta. E nós já ultrapassámos todas essas etapas. A única coisa que agora estamos a fazer é aprovar a adaptação do edifício a uma utilização específica, mas o edifício está montado. O que significa que, do ponto de vista financeiro, o impacto que este investimento vai trazer é positivo. Não vamos ter que mobilizar capitais próprios. E vimos aprovada também uma linha do PRR para dinamizar projectos locais, activar de forma alargada a rede de parcerias para ir mais longe na qualificação e reconhecimento das qualificações dos portugueses.
A actual crise política pode condicionar este tipo de projectos?
Eu represento a Cercina, a Fenacerci e a Confecoop. A Confecoop tem assento na Comissão Permanente do Sector Social e Solidário e toda a negociação dos acordos de cooperação passa pela Confecoop. Estive em reunião com a Comissão Permanente, para conseguirmos diminuir os impactos que decorrem não só da crise política, mas também de decisões que estão tomadas, por exemplo, o aumento do salário mínimo, que tem impacto na sustentabilidade das organizações. Há sempre uma certa expectativa relativamente a um novo ciclo político e aos eventuais impactos negativos que possa ter. O que nos é garantido, do ponto de vista político e administrativo, é que isso não vai acontecer. Porque o PRR tem uma estrutura própria de execução e porque os investimentos estão em curso, não há interrupção nesse modelo. O plano de avisos decorre das decisões que já foram tomadas, em termos de áreas estratégicas de investimento. Onde pode existir alguma dificuldade é nalgumas decisões que ainda não estavam firmes, assumidas, ou nalgumas diligências que era necessário fazer para resolver questões pendentes. A minha expectativa é que não tenha impacto negativo.
A economia social é suficientemente valorizada?
Quando falamos de economia social, por razão da semântica, ficamos muito circunscritos à ideia do social e solidário. Mas também é economia. E a economia social tem que ser olhada numa visão de banda larga, que passa pelas cooperativas, associações, misericórdias, mutualistas, etc. Algumas actuam no sector solidário e outras no sector mercantil. O desafio é mostrar à sociedade que a economia social está em vários campos, no nosso dia-a-dia, desde pesca, cultura, ensino, na comercialização de produtos farmacêuticos, etc. Como nós não vemos isto de forma banda larga, como economia que cria emprego, que contribui para a produção da riqueza nacional, ficamos muitas vezes agarrados à ideia do social, a uma visão mais de caridade, de assistencialismo, da solidariedade. O que a Cercina e outras organizações fazem é solidariedade qualificada. Aquilo que produzimos é um bem público, o bem da inclusão, ao mesmo tempo que produzimos riqueza, ao dar ferramentas para que as pessoas contribuam no mercado de trabalho, ao gerar emprego na própria organização, que tem 53 funcionários, ao comprar bens, serviços… Se contabilizarmos isso ao longo de décadas, nem conseguimos acreditar no valor que trouxemos a esta comunidade.
Foi um dos rostos do Instituto Português do Desporto e da Juventude na região. Que estratégia têm os jovens portugueses ao seu alcance, para singrar num contexto de falta de habitação e de frágeis condições laborais?
Os jovens têm de ter maior participação e a sociedade tem de perceber que é um momento de viragem e que tem de criar condições para a sua participação. Em 1974 tivemos uma revolução, onde grande parte dos jovens emergiu para construir uma sociedade mais ajustada à sua expectativa. E tiveram forma de participar nesse processo de transformação. Com 23 ou 24 anos, ocuparam lugares de reconhecido papel na sociedade portuguesa, o que lhes permitiu desenhar uma arquitectura legislativa e edificar a democracia. E durante os últimos 50 anos trabalharam para construir esse edifício democrático. Mas não estamos a permitir que as novas gerações possam participar de forma activa e empolgante na construção do edifício democrático que elas acham que terá de as acompanhar nos próximos 50 anos. Tenho sérias dúvidas. Porque as pessoas que aos 23 ou 24 anos estavam na Revolução de 25 de Abril, são aquelas que aos 73 ou 74 anos continuam nos lugares de decisão e de soberania. Não criámos condições para uma renovação geracional, para a participação política, económica e social das novas gerações. Ficámos agarrados a um edifício democrático, que já não cumpre as expectativas das novas gerações. Num mundo digital, onde deixa de haver a ideia de fronteiras físicas, procuram outro local. O IPDJ podia ter esse papel interventivo, de saber desconstruir estas coisas, ser provocador nestas mudanças.
A Nazaré tem vindo a mudar o seu perfil, com a chegada de muitos estrangeiros. Que tipo de respostas sociais seria pertinente reforçar?
Com gratuitidade de creches, é fundamental termos capacidade de resposta para acolher todas as crianças e, logo nas primeiras idades, construir para elas um espaço de inclusão, de acesso e de garantia. Depois, a questão do apoio ao emprego. Não podemos aceitar que venham pessoas de outros países e que nós tenhamos uma lógica de pagamento de salários baixos, contribuindo para mais vulnerabilidades. Mas também temos muitas pessoas que vêm para a região Oeste à procura de qualidade de vida, pessoas que chegam com rendimentos bastante elevados e que precisam de um conjunto de serviços ajustados às suas necessidades, que não passam pela visão mais miserabilista. Passam pela adaptação dos territórios a uma oferta de qualidade, ajustada a pessoas altamente qualificadas e com capacidade financeira. Capacidade que criou um efeito perverso, que foi alterar as regras do jogo ao inflacionar o preço da habitação. Como é que nós equilibramos estas realidades migratórias? Temos de ter políticas públicas para não criar desequilíbrios. No caso da habitação, há que actuar no lado da oferta. E também defendo que temos de aumentar a estrutura dos rendimentos das famílias em Portugal, eventualmente diminuindo o esforço fiscal que fazemos.
Dentro de dois anos termina este ciclo de governação, liderado por Walter Chicharro. Como o avalia?
Numa fase inicial achei que ele se precipitou em algumas decisões. Recordo-me que quando houve aquele despedimento de um conjunto de profissionais que trabalhavam na câmara, eu insurgi-me contra essa decisão. Já lho disse pessoalmente que não concordei. Com a experiência política que entretanto adquiriu, penso que teria feito de outra forma. Globalmente, acho que, independentemente de um ou outro erro que possa ter cometido na sua gestão, cumpriu o papel de um autarca. Tal como transmiti em assembleia-geral, quando Walter Chicharro entrou no primeiro mandato, defendi que não descuidássemos o reconhecimento, o agradecimento àquilo que foi o esforço de muitos autarcas no passado, independentemente dos erros que possam ter cometido. Tem que haver a capacidade humana de reconhecer o esforço dos outros. Sendo que, aquilo que está bem deve ser reconhecido e o que está menos bem dever ser sinalizado. Acho que, política à parte, a Nazaré deve ter essa capacidade também de reconhecer o papel e o contributo que Walter Chicharro deu à gestão do erário público e da nossa comunidade. Em termos de estratégia de afirmação da Nazaré, ele cumpriu aquilo que era preciso cumprir.
Regressar à vida política faz parte dos seus horizontes?
Não. Não posso ter um pensamento crítico relativamente aos outros e depois não o aplicar à minha pessoa. Eu disponibilizei-me em apresentar uma proposta para a Nazaré, apresentando um candidato, assumindo eu a candidatura à presidência da assembleia municipal. Fi-lo no pressuposto de que estava a apresentar o melhor projecto, as melhores ideias, a bem das pessoas desta comunidade. Não havendo o reconhecimento de que esse era um projecto, tenho de saber ter uma leitura democrática. Não consegui, tenho de dar o meu lugar. Estive 20 anos na distrital do PSD. Dei o meu contributo, não saí com mágoas, não deixei situações soltas ou por resolver. E a partir do momento que eu passo a ter uma responsabilidade ao nível da negociação do compromisso de cooperação e a representar a Confecoop, de acordo com o meu pensamento ético, tenho que me afastar.