“Só quero ser finisher. Só quero acabar a prova. Ao pé das melhores sou um grão de areia.” É com esta humildade que Jocelina Ferreira, de Leiria, projecta os seus objectivos para o Campeonato do Mundo de Skyrunning, que se realiza em Andorra, entre 9 e 11 de Julho. A atleta do Montanha Clube Trail Running – EFAPEL, uma das escolhidas pela selecção nacional, vai participar na prova de skyrunning ultra, que tem uma extensão de 68 quilómetros e mais de dez mil metros de desnível acumulado, que os participantes devem completar em menos de 17 horas.
Será a sua segunda representação com a camisola das quinas. Antes, participou nos europeus de skyrunning, em Itália. Em 2019 sagrou-se campeã nacional.
A pandemia parou as provas oficiais de 2020 e este ano, após a prova que realizou no Caramulo soube que estava convocada para ir aos Mundiais. “É um orgulho representar Portugal”, confessa.
Esta prova exige material obrigatório e a fiscalização é rigorosa. Na mochila, além da água, isotónicos e de barritas, é obrigatório ter, entre outros materiais, um telemóvel carregado, uma manta térmica, lanterna frontal, gorro ou uma camisola térmica.
A exigência da prova contempla um percurso circular pela área periférica do Parque Nacional, em trilhos, num terreno, por vezes, sinuoso, em locais onde a terra quase se confunde com o céu. Quando está no alto das montanhas “passa tanta coisa pela cabeça”.
“A certa altura já nem as pernas doem. Não se sente nada. É a cabeça que comanda. Mas é uma sensação de que gosto: andar muitas horas na serra e desligar do Mundo. É como flutuar, até porque estou quase nas nuvens. É uma sensação de paz de espírito tão boa. Só mesmo quem faz”, destaca Jocelina Ferreira.
[LER_MAIS]Apesar das dificuldades físicas, a força mental ajuda a superar o sofrimento. “Chega a determinado momento que as pernas seguem sozinhas o seu percurso. Quando acaba a prova já nem nos lembramos do que passámos. A sensação final é tão boa e encontramos paisagens tão deslumbrantes…”, acrescenta.
“O trail de montanha é muito técnico. Não é só a altimetria, mesmo a própria prova é muito exigente, com trilhos e as pedras. É preciso saber gerir o esforço e a cabeça. Numa prova dessas ‘morro’ a meio caminho, mas recupero sempre”, salienta a atleta, ao afirmar que desde cedo se habituou a ouvir o seu corpo e quando ele dá sinal, abranda.
“Não quero ganhar uma prova. Quero correr sempre. Já sou um clássico e não há peças para mim”, brinca. Reconhece a exigência da competição e, por isso, garante que o seu principal objectivo é “acabar a prova”. Medo? Não. “Receio”, assume Jocelina. O desconhecimento do percurso e a incógnita de não saber o que vai enfrentar põe-na em alerta, mas não a bloqueia. “Há que enfrentar. As pernas podem tremer, mas digo sempre a mim própria: tens de avançar. Há que reagir rapidamente a qualquer adversidade.” É esta postura de luta e de ultrapassar os problemas, que tem feito brilhar Jocelina Ferreira, que insiste em não assumir os seus feitos.
Jocelina corre por prazer. “A competição veio por acréscimo.” Talvez por isso nem se recorda do lugar que obteve no Campeonato da Europa em que participou. “Não ligo muito a isso. Claro que gosto quando ganho e quando entro em qualquer prova é para dar o meu melhor”, admite.
Jocelina Ferreira, de 48 anos, vai lançar-se em mais um desafio e as “borboletas” na barriga já lhe fazem cócegas. Começou tarde nesta ‘coisa’ das corridas, mas o bichinho nunca mais a largou. Depois de se ter sagrado campeã nacional, vai participar no seu primeiro Campeonato do Mundo.
Treina quase todos os dias e a preparação é, muitas vezes, feita na Nossa Senhora do Monte e na Maunça, onde tem altimetria. A última prova em que participou foi nos Trilhos Loucos da Reixida, já a pensar na prova mundial. “Gosto muito de fazer esta corrida, porque é como estar em família. Foi uma oportunidade para abrir o pulmão. Foi um bom treininho.”
Apesar da solidão deste desporto que obriga os atletas a passarem horas sozinhos a subir e a descer montanhas, Jocelina destaca a solidariedade entre todos. “Se alguém passa por um atleta em dificuldades pára sempre para perguntar se precisa de ajuda. Existe competição, mas saudável.”
A história desta mãe de dois filhos, agora com 25 e 22 anos, sai fora da norma. Nunca tinha feito desporto até aos 39 anos, quando começou a fazer caminhadas e a correr para ajudar a descontrair, sobretudo, a parte mental. Acabou por ser desafiada por amigos a participar nas corridas organizadas pelas Brisas do Lis Night Run.
O bichinho apanhou-a e nunca mais parou. Fez o primeiro trail aos 40 anos. Começou nos dez quilómetros e aos poucos foi aumentando a distância. Conquistou a primeira vitória logo nas primeiras participações. Num mini-trail na Benfeita, em Arganil, num percurso com 15 quilómetros.
Assistente operacional no Orfeão de Leiria, Jocelina Ferreira ainda apoia a empresa familiar. Conciliar trabalho, família e desporto não é fácil, mas tem conseguido. “Ando sempre a mil. Vou para a serra à noite ou faço corrida logo de manhã. Correr faz parte da minha rotina diária. O resto foi surgindo.”
Jocelina Ferreira começou por representar a Juventude Vidigalense, clube que ficou no seu coração. “Tenho orgulho neles e foram dois anos de que gostei muito. Quando os vejo brilhar fico muito feliz com o sucesso deles”, revela ao JORNAL DE LEIRIA.