O Politécnico de Leiria já pode outorgar o grau de doutor. O que trará de benéfico?
Não basta sermos um politécnico com doutoramentos. Queremos ser universidade, o que implica como requisito legal ter um doutoramento. O que nos traz em termos práticos? Acima de tudo, investigação aplicada. Vamos poder ter doutoramentos nas empresas, trazer-lhes mais conhecimento, modernizá-las e torná-las mais competitivas. Vamos poder também ter uma formação que estava completamente vedada na nossa região. É um grande passo para o ensino em Leiria. Também nos traz algumas exigências, pois precisamos de ter os nossos centros de investigação com o reconhecimento de muito bom ou excelente e ter um corpo docente devidamente qualificado, o que se vai traduzir em melhores aulas.
Carlos Rabadão substituiu recentemente Rui Pedrosa na presidência. Que avaliação faz do anterior e o que espera do actual presidente?
O presidente Rui Pedrosa não teve um mandato fácil por causa da pandemia e que certamente há-de ter defraudado algumas expectativas ou o seu plano de execução. Tinha um ênfase muito grande no investimento daquilo que era a marca e a investigação do Politécnico. Esqueceu-se um bocadinho daquilo que eram a necessidade pedagógica das escolas e as suas necessidades nas infra-estruturas. Temos os edifícios a necessitarem de grandes intervenções. E ficou a faltar toda a actualização dos planos de estudos, já que são praticamentes semelhantes a 2007/2008. O professor (prof.) Carlos Rabadão disse que o ia fazer. Temos também de repensar a forma como avaliamos e inovar pedagogicamente. Para nós, enquanto estudantes, que procuramos ter formações cada vez melhores e que vão ao encontro das expectativas do mercado de trabalho, tem um impacto completamente diferente do que olharmos só para a investigação técnica. Já vivíamos com um grande problema de falta de financiamento no ensino superior, atravessamos agora uma dificuldade ainda maior, porque o Orçamento do Estado não compensou os aumentos com o impacto da inflação e com os custos da energia, o que faz mais pressão nas receitas próprias. Como o presidente cessante investiu muito na investigação, foi adiantando dinheiro da tesouraria para executar os projectos de investigação, agora não sabemos se conseguimos ir buscar todo o dinheiro que investimos, o que nos está a causar grandes constrangimentos a nível de tesouraria e pode pôr em causa os investimentos nos nossos laboratórios e nas infra-estruturas das escolas. Prevejo que seja um mandato muito complicado para o prof. Carlos Rabadão.
Há dinheiro para ajudar os alunos mais carenciados?
Quando o prof. Nuno Mangas foi presidente, o Politécnico criou o FASE (Fundo de Apoio Social ao Estudante), que permitia que uma parte das verbas arrecadadas pelas propinas fosse para esse programa, para ajudar estudantes a troco de algumas horas de trabalho nos nossos serviços. O FASE ainda existe e tem alguns estudantes, mas não tantos como na última grande crise. Neste momento, também existe mais apoio social ao nível das bolsas de estudo pelo Estado. Precisamos de ter uma intervenção, essencialmente, sobre os estudantes internacionais. Mas nenhum estudante está a ficar para trás por causa da questão económica. Há outros problemas que os estudantes enfrentam, nomeadamente a questão da saúde mental, da adaptação ao curso, ao ensino superior e à cidade. A questão da saúde mental pode levar mais ao abandono do que propriamente a questão económica. Notou-se no pós-Covid e é uma problemática com tendência a crescer.
Qual a resposta dos serviços de psicologia da instituição?
O Politécnico de Leiria tem três psicólogos que servem a comunidade académica. É claramente insuficiente. A Associação de Estudantes (AE) já teve várias intervenções junto da presidência para a contratação de mais profissionais. Esta semana, a AE participou no programa Manifestamente, que é dinamizador de práticas de saúde mental no ensino superior. Fizemos a formação e agora vamos fazer um conjunto de actividades para promover boas práticas para a saúde mental, porque isso realmente é um problema. A Assembleia da República recomenda um psicólogo para 750 estudantes. No Politécnico de Leiria temos um para cerca de 4.000 estudantes. Sabemos que há alunos que têm necessidade de ter acompanhamento da psiquiatria e está-se a procurar estabelecer protocolos com o hospital de Leiria para se criar uma espécie de via verde para estes estudantes, incluindo os internacionais. Também tivemos conhecimento de uma tentativa de suicídio este ano lectivo e de um estudante que teve necessidade de ser internado.
O que tem feito a AE?
Estamos constantemente a reivindicar junto da tutela e da presidência porque ainda não vimos a solução. A formação é uma forma de tentarmos assumir uma solução da nossa parte. Sabemos que há vários factores que estão a desestabilizar a saúde mental dos estudantes e também estamos a procurar soluções noutras áreas para prevenir estes problemas, como repensar toda a forma como fazemos a integração. A integração no ensino superior e, particularmente, em Leiria, está muito assente nas actividades de praxe aos novos caloiros. Estamos a tentar massificar a actividade desportiva e a dinamizar algumas boas práticas para uma boa saúde mental. Mas não vamos deixar de reivindicar psicólogos, porque precisamos deles.
A situação tem-se vindo a agravar?
Ou está a agravar-se ou os estudantes têm menos preconceito. Os jovens hoje são um bocadinho mais fechados. O contexto social que conhecem bem são as redes sociais e o telemóvel, e têm mais dificuldade numa interacção pessoal. Isso também leva a maiores níveis de ansiedade. Sinto que hoje podemos estar um bocadinho pior. Há anos que reivindicamos espaços físicos nas escolas para actividades extra-curriculares, criando um conjunto de hobbies para que os estudantes pudessem participar com outros colegas, sem saírem do espaço escolar. Podemos ter um clube de leitura ou um clube de jogos de tabuleiros e ter espaços mais condignos para as nossas tunas. O que temos nas escolas são só salas de aulas e laboratórios, porque estamos com excesso de estudantes e todos os espaços foram convertidos para isso.
O número de estudantes internacionais tem aumentado. Essa multiculturalidade é positiva?
Não só é desafiante para o nosso corpo docente, que tem de se adaptar aos novos estudantes, o que pode fazer com que as nossas formações não sejam todas em português, e também é um desafio para nós, porque é muito bom podermos conviver com colegas de contextos completamente diferentes. Estes estudantes são um desafio diferente. Não vão a casa ao fim-de-semana e a cidade de Leiria há muito tempo que deixou de ter uma dinâmica que possa atrair os estudantes. Os estudantes internacionais são provavelmente aqueles que mais sentem solidão. Enquanto AE consideramos que o Politécnico não está a fazer o suficiente para a recepção destes alunos.
O assédio tem estado na ordem do dia. Os canais de denúncia funcionam?
Da parte da AE, vamos sempre promover a denúncia destes casos e estaremos sempre ao lado dos estudantes que tomam a iniciativa de denunciar. Felizmente, desde que estou cá, não tivemos conhecimento de muitas queixas. Houve recentemente umas sobre um docente – já havia comentários há uns anos – e o processo foi arquivado. Não nos satisfaz. Mais do que existir um canal de denúncia, que existe, são as escolas que iniciam o processo de averiguação e o conduzem. Quem avalia e quem toma uma decisão é um par da pessoa que denunciamos. Se o resultado não for aquele que é esperado existe sempre um sentimento de injustiça ou que a questão pode não ter sido analisada com seriedade. Estamos a acompanhar alguns movimentos estudantis nacionais no sentido de pressionar o Governo para repensar a forma como são feitas e tratadas estas denúncias. Sabemos que estamos longe do que se passou no Porto ou em Coimbra. Mas se acontecer em Leiria, queremos estar preparados.
Como têm sido acompanhadas pela AE as questões de identidade de género e orientação sexual?
Na questão da sexualidade, estávamos completamente no armário e temos procurado acabar com o armário. Por isso, quando nos foi lançado o desafio de integrarmos a organização da Marcha de Leiria [LGBTI+] dissemos logo que sim e isso também fez com que sentíssemos que dentro da nossa academia é ok ter uma orientação sexual ou o género com o qual nos identificamos. Ainda há muito trabalho a fazer. Esta semana lançámos o desafio à ESTG de celebrar connosco o Dia Internacional Contra a Homobofia, Transfobia e Bifobia. Vamos erguer a bandeira do arco- -íris no dia 17 de Maio. Na próxima reunião com a presidência serão também pedidas casas-de-banho sem género. São pequenos gestos, mas que podem fazer alguma diferença. Também identificámos como uma das prioridades a possibilidade dos estudantes se poderem identificar no sistema interno de comunicação da escola com o género com o qual se identificam. O ensino superior tem de ser um espaço seguro para os jovens questionarem quem são, independentemente da sua orientação sexual, da sua identidade de género, do seu credo religioso ou das suas orientações políticas. Queremos que as pessoas se construam de maneira a serem felizes. Um dos passos mais simples que fizemos foi autorizar o uso do traje do género com o qual o estudante se identifica.
O preço do alojamento disparou. Há risco de se perderem estudantes?
O Politécnico já perdeu estudantes por causa do alojamento. Este ano houve estudantes que não se matricularam porque não conseguiram encontrar alojamento em Leiria. A solução não pode partir só do Politécnico. Tem de haver várias forças a trabalhar na resolução do problema. Tem havido fixação de pessoas que se formaram no Politécnico de Leiria e optaram por ficar na cidade, porque têm oferta de trabalho, além de bem remunerado, e o custo e a qualidade de vida de Leiria são bastante interessantes para iniciarem as suas vidas. Temos de juntar forças para conseguir criar mais habitação e voltada para os estudantes. O Programa de Recuperação e Resiliência tem financiamento previsto para residências de estudantes. A AE vai reunir com a presidência para saber o ponto de situação. O Município de Leiria também tem de ser estratégico. Se quisermos continuar na tendência crescente de número de estudantes na cidade e no Politécnico de Leiria tem de haver alguma intervenção do município nesta questão do alojamento. Sei que já cedeu um terreno para a construção de uma residência. Provavelmente não chega.
O valor das propinas é o adequado?
Estivemos a discutir as propinas das licenciaturas e dos TeSP (cursos Técnicos Superiores Profissionais) do próximo ano lectivo e esperamos que se mantenham. O nosso trabalho junto dos partidos políticos será manter os 697 euros anuais. É um valor confortável, responsabiliza os estudantes e, ao mesmo tempo, também não é um investimento muito grande para o agregado familiar. No mestrado já não existe tanta legislação. Quando o mestrado é necessário para o acesso à profissão, como acontece em algumas engenharias ou na educação básica, o valor a cobrar tem de ser o mesmo da licenciatura. Nos restantes casos tem de ser superior ao valor máximo da propina das licenciaturas. A grande maioria dos mestrados do Politécnico custam 1.140 euros, à excepção dos mestrados da área da saúde, em particular os de enfermagem, que são 2.000 euros. Ninguém consegue explicar porque custam 2.000 euros, excepto pelo facto de ter muitos candidatos. Os enfermeiros precisam de tirar este mestrado para poderem concorrer como especialistas para a progressão da sua carreira. Votámos contra a proposta e voltaremos a votar contra no Conselho Geral.
A convivência entre estudantes e residentes nem sempre é a melhor, sobretudo, à noite. Mas, a cidade também precisa dos jovens. Como garantir uma boa relação entre as partes?
Essa era a resposta que nos queríamos ter. Estes anos recentes não têm sido tão difíceis como foram 2011, 2012, 2013 e, curiosamente, temos muito mais estudantes agora. Tem a ver com a lei do ruído que a Câmara Municipal adoptou, mas também com os hábitos dos estudantes, que actualmente saem menos à noite. Neste momento, temos mais de 10.000 estudantes do ensino superior em Leiria. Temos uma instituição de ensino superior de excelência, uma das melhores do país, que nos tem de encher de orgulho e que nos cria imensas oportunidades, não só nas áreas da cultura, mas essencialmente no tecido empresarial. Portanto, a cidade tem de ser um bocadinho mais tolerante e têm de existir mais políticas para os estudantes do ensino superior. Além do apoio em espécie, a Câmara de Leiria paga apenas 50% do policiamento da Semana Académica e da recepção ao caloiro. Estamos a falar de um apoio de cerca de 3.000 euros à AE por ano. Se formos ver outras actividades que a Câmara tem na cidade, como por exemplo a Final Four, tem um investimento muito maior. A Câmara Municipal de Leiria fala do retorno que tem. Quanto é que tem de retorno investir para ter 10.000 estudantes na cidade? São mais de 100 milhões de euros na economia local. Por exemplo, em Santarém, o município apoia a AE com 20.000 euros para a realização da Semana Académica; em Barcelos com 30.000 euros; na Covilhã, com 60.000 euros. Em Leiria, existe um desinvestimento muito grande, não só da parte do Politécnico de Leiria, porque aquilo que recebemos de apoio financeiro é uma miragem, comparado com outras associações com menos estudantes do que nós. Para as associações todas de Leiria recebemos é entre 35 e 45 mil euros anuais. No Politécnico de Coimbra anda na casa dos 200.000 euros.
Integra a comissão para avaliar o Regime Jurídico das Institutições de Ensino Superior (RJIES). O que é que tem de ser alterado?
Neste momento a comissão serve como avaliação daquilo que é o RJIES. Estamos a auscultar algumas entidades que têm grande conhecimento e intervenção no meio académico. Há grandes desafios no ensino superior e há grandes perigos com esta abordagem. Primeiro porque temos um sistema binário em Portugal. É preciso perceber se continua a fazer sentido ou não da maneira como está definido. Por outro lado, o Governo, na iniciativa legislativa dos cidadãos, quando aprova o decreto-lei e define algo como universidades politécnicas e diz que o RJIES terá que definir o que são estas universidades politécnicas. Portanto, poderemos vir a ter um terceiro tipo de instituição e é preciso perceber o que é que isso significa. Depois sabemos que existe uma redução grande da demografia. Prevê-se que, por exemplo, em Leiria, em 2035, haja menos 14 ou 15% de estudantes em idade de terminar o 12.º ano. Tirando Lisboa e o Algarve, todo o resto do País tem um decréscimo daquilo que podem vir a ser os estudantes que concorrem ao ensino superior devido a este problema da natalidade. Também é preciso compreender que o ensino superior em Portugal não conseguiu cumprir um desígnio daquilo que estava previsto com o processo de Bolonha, que é estar presente na formação contínua dos profissionais na sua vida adulta. Ou seja, era esperado que um estudante, depois de terminar a sua formação, fosse para o mercado de trabalho, passado uns anos regressasse e tirasse o mestrado e, passado mais uns anos regressasse e tirasse uma pós-graduação e fosse tirando cursos de curta duração ou outros mestrados. Deveria estar sempre a reciclar conhecimentos e a tornar-se competitivo. Isso não acontece. Se calhar o RJIES vai permitir também toda uma visão nova daquilo que é o ensino superior e deixar cair este conceito do ensino superior é só para jovens de 18 anos.
Por que razão temos poucos adultos a regressar ao ensino superior? Há falta de cultura? As entidades empregadoras não facilitam?
Há vários níveis que estão a conduzir a isto. Primeiro, há um certo desinvestimento do Estado nestas formações. A lei do financiamento não é actualizada há muitos anos. As dotações do Orçamento do Estado para as instituições são com base naquilo que é um histórico e nunca previram um apoio financeiro para as formações, como as pós-graduações ou os mestrados. Só licenciaturas. Este é o problema. Tem de haver uma política do Governo em permitir às instituições ter estas ofertas formativas sem elas terem de cobrar muito dinheiro aos estudantes. E, acima de tudo, se a formação tiver um número reduzido de estudantes que ela se possa manter a procura. Por outro lado, é uma questão mais cultural, o tecido empresarial não está a conseguir olhar para estas formações como uma mais-valia e isso não se está a traduzir na remuneração dos estudantes. O que se espera é que ao adquirir mais competências académicas e ao aplicá-las na prática nas empresas, as pessoas se tornem mais competitivas e isso devia ter um reflexo daquilo que era a sua remuneração. Portanto, esse trabalho também tem que ser feito. As instituições de ensino superior também têm de procurar ter estas formações de forma cativante. Não podemos ter um mestrado a funcionar durante semana e de dia. Se quisermos procurar um público alvo que já esteja no mercado de trabalho a formação tem de acontecer de outra forma. Desafiámos a escola a procurar criar salas inteligentes, com captação de imagem e som, com quadros interactivos para os estudantes poderem estar em casa e estar nas formações online com o professor na sala. Poderíamos ter alguns alunos na sala e outros em casa. Isto era muito interessante para as pós-graduações. Isso faria com que houvesse mais pessoas a procurar estas formações. Nós temos esta visão. A escola e o Politécnico não tiveram a mesma.
Dos mais antigos estudantes