Letra, mostra de poesia sonora e concreta. A primeira edição acontece no sábado em Leiria e é organizada pela Paper View, de Sal Nunkachov. No programa, com leituras, exposições e lançamentos, está o convite para descobrir obras seminais e outras mais contemporâneas, de artistas portugueses e estrangeiros, que vão ocupar temporariamente seis espaços no centro da cidade, sempre com entrada livre.
O canadiano Christian Bök traz ao antigo covil da Preguiça ressonâncias do “futurismo” do início do século XX e a edição inédita de Umlautmachine em disco; a sueca (radicada na Alemanha) Cia Rinne dá voz a “um trabalho minimal de erosão de texto”, que, segundo Sal Nunkachov, “brinca com a fonética das palavras”, em “várias línguas” e com “bastante humor”; Diogo Marques pesquisa “a materialidade da escrita” e Simão Collares explora “a orquestração de um coro”; já a performance de Nuno Moura, acompanhado por um baterista, soa como “uma coisa quase punk”, e a participação de Paula Cortes “é teatro, um monólogo”.
Destaque, ainda, para a presença de Fernando Aguiar, detentor do “maior acervo de poesia visual português” e “dos poucos” autores “que vem lá de trás” e “continua a produzir”.
Também Carolina Drave (do colectivo Lavra, mas, desta vez, a solo) contribui para o carácter heterogéneo do evento, em que se expressam “várias acepções da oralidade”, afirma Sal Nunkachov. “As propostas entregam, todas, uma abordagem diferente à leitura”.
Os materiais de divulgação da mostra anunciam “uma karawane por Leiria” – referência ao poema performance de Hugo Ball no Cabaret Voltaire em 1916 mais tarde impresso no Dada Almanach – e antecipam a intenção de reclamar “um novo território poético”.
Um absurdo de liberdade
Com raízes nas primeiras décadas do século XX, a poesia sonora e a poesia concreta aparecem no contexto de movimentos experimentais e de vanguarda. Nem sempre a poesia sonora faz uso da palavra, pelo contrário, pode ser o fonema a sobrepor-se aos valores semânticos e sintáticos, do mesmo modo que, na poesia concreta, é a letra (e não a palavra) o maior reduto da expressão escrita.
Ao JORNAL DE LEIRIA, Christian Bök adianta que vai apresentar em Leiria “poemas compostos pela sua “eufonia” e não pela sua mensagem ou significado”. E concretiza: “Tal poesia constitui um dos “casos limites” da literatura, e estou interessado em libertar a linguagem da necessidade de transmitir informações transparentes e descritivas na forma de “mensagens”, quando a linguagem pode servir a outros tipos de propósitos artísticos, tornando-se mais “tangível”, como algo feito de tinta rebocada ou pedra esculpida”.
Cia Rinne, por outro lado, leva a palco “textos minimalistas que brincam com forma, som e mudanças de significado entre idiomas ou na própria linguagem” e que “operam mais ou menos na fronteira da literatura, das artes e da música, ao mesmo tempo que brincam com a semântica”. Uma espécie de “arqueologia linguística, reduzida ao mínimo absoluto necessário”, diz a artista. “Um som pode ter significados diferentes dependendo do idioma, uma palavra ou idioma pode ter conotações diferentes dependendo do contexto e das circunstâncias históricas” e “se isoladas do uso comumente esperado, as palavras podem surpreender, tornar-se não confiáveis e, assim, questionar o seu próprio propósito”, ou seja, “a linguagem é uma ferramenta poderosa que molda o pensamento e o curso das coisas para melhor ou para pior, no entanto, apenas uma ligeira mudança pode mudar o seu significado e tornar toda a construção absurda”.
Interesse pós-pandemia
“Os anos 60 ou 70 foram os anos de glória deste tipo de propostas”, explica Sal Nunkachov, mas “a partir da pandemia [de Covid-19] houve um pico novamente”. São propostas que se caracterizam por uma atitude de “afronta” e “subversão que está aliada à ideia de às vezes até se usar a comunicação para não comunicar” – e o contrário: a não comunicação para comunicar. “Também há um espaço gigante de humor”e “artistas a satirizar a arte”, de acordo com algumas premissas principais do dadaísmo. “A maior parte” dos criadores segue um percurso “independente na verdadeira acepção do termo” porque “muitos têm as suas próprias editoras”.
Letra, a primeira mostra de que há memória em Leiria dedicada inteiramente a poesia concreta e sonora, começa às 16 horas do próximo sábado (30 de Novembro) e só termina depois das 23 horas. Inclui o lançamento (através da Hearsay, o departamento sonoro da Paper View) de três cassetes (Fernando Aguiar, Nuno Moura e Simão Collares), um CD (Diogo Marques) e um disco de vinil (Christian Bök). Festejam-se três anos de actividade da Paper View, que se dedica a publicações com recurso a técnicas e equipamentos obsoletos.
“É manifestamente uma ideia de a Paper View sair fora de portas”, comenta Sal Nunkachov. “Comunicar fora de casa”, o que permite “fazer uma espécie de itinerância” e “ir ao encontro do público”.
Galeria Quattro, Paper View, Museu de Leiria, Arquivo, o antigo covil da Preguiça e o Atlas são os parceiros que acolhem a primeira edição da Letra, com que a organização pretende “celebrar a oralidade”, “escutar o silêncio” e “a¤rmar a letra”.