Frequentou a Escola de Belas Artes em Lisboa e está representado em colecções e museus em Portugal e no estrangeiro. José Aurélio tem uma produção de arte que atravessa mais de 60 anos, sobretudo relacionada com a escultura. Criou, também, medalhas, joias, moedas e peças de cerâmica. Distinguido pela Presidência da República e várias vezes premiado, fundou dois espaços de exposição e contacto com o público: a galeria Ogiva (em Óbidos) e o Armazém das Artes, em Alcobaça, concelho onde nasceu em 1938 e actualmente vive e continua a trabalhar.
É a primeira vez que é feita uma retrospectiva do seu trabalho de cerâmica [exposição no Armazém das Artes, em Alcobaça, até Março do próximo ano]. E chegou a pensar ser ceramista.
Não sei se foi uma decisão tão peremptória como isso. De qualquer maneira, entrei para a cerâmica cheio de boa vontade e trabalhei uns anos na cerâmica, ainda, o suficiente para perceber que aquilo não era, de facto, a minha forma de expressão, porque, para além do mais, a cerâmica é muito ciosa dos seus mistérios. E, normalmente, a gente só consegue chegar a metade daquilo que faz, a outra metade perde-se pelo caminho. Há uma data de razões que afectam o fim das peças de cerâmica.
É um material com muitos humores?
Exactamente. E tem uma coisa que faz parte integrante da sua forma de ser, que é ter contracção de oito por cento, que, parecendo que não, numa peça de 40 centímetros, são três centímetros e tal. Quer dizer, uma pessoa faz uma peça com uma determinada dimensão, e depois, quando vai olhar para ela, ela está mais pequena.
Sentia-se limitado?
Não era bem, até porque eu, de facto, conseguia ultrapassar os limites que a cerâmica impõe.
O que é que o levou a explorar outros materiais?
Achei que a minha forma de expressão não era aquela, porque tinha uma série de percalços pelo caminho que me desagradavam. E, portanto, optei. Como a maior parte das peças que eu fazia eram peças escultóricas, achei que a minha expressão mais certa era virar-me para a escultura. Foi o que fiz e não estou arrependido.
Depois desta conversa, vai orientar mais uma visita guiada. Tem feito várias, não só no Armazém das Artes, mas noutros locais, também. O contacto com o público ainda é o processo de criação a acontecer?
É lógico, no fundo, que eu explique aquilo que as pessoas não entendem nas minhas coisas, e, portanto, é isso que faço, embora essas explicações sejam extremamente reduzidas, porque também não quero que as pessoas julguem que penso que elas são estúpidas, não é? Deixo uma margem de manobra às pessoas para elas tentarem entender e perceber aquilo que quero.
O que lhe importa mais transmitir?
Aquilo que acho que pode ajudar a pessoa a perceber coisas que não percebe se eu não falar. É evidente que as coisas têm todas um caminho mais ou menos sinuoso. Há coisas que nem eu sei explicar.
Muitas vezes, os artistas até preferem não explicar. Preferem que as pessoas entendam à sua maneira.
Exactamente. Aliás, é muito frequente as pessoas terem interpretações que o artista não teve.
E são legítimas.
Claro que são, todas elas são legítimas. Podem enriquecer ou não, depende da qualidade delas. Há pessoas que fazem interpretações perfeitamente negativas e sem interesse nenhum.
E o gosto, discute-se?
O gosto não se discute, mas educa-se. Uma pessoa só pode ter a noção do que é belo se educar a sua sensibilidade para isso. Procurar, a partir de coisas que são belas, termos de comparação que a levem à conclusão de que uma peça também é bela. Mas isso depende da sensibilidade de cada um. O gosto tem de ser educado para a pessoa ficar mais próxima dos sentimentos que o artista quer transmitir.
Fazem sentido, polémicas como a que lhe aconteceu, com a moeda dos 500 anos de Camões?
A polémica que existiu só demonstra a ignorância das pessoas e isso, a mim, custa-me admitir. Eu preferia que as pessoas entendessem aquilo que eu queria dizer, que tem a ver com a história do próprio Camões, que foi um aventureiro, um homem com milhões de problemas na vida, e, depois, o Estado Novo inventou uma figura muito bonita, de um rapazinho todo airoso, que não é verdade. Da mesma maneira que inventei a minha figura, o Estado Novo inventou a figura do Camões épico. O que é facto é que ele sofreu as passas do Algarve e só por isso é que foi um poeta tão grande, porque sofreu na pele, e sentiu na pele, a poesia da vida.
A principal crítica tem a ver com se tratar de uma representação sem rosto. O que é que procurou transmitir, com esta escolha?
Quis representar uma incógnita em relação à figura dele, a figura humana, porque, em relação à obra dele, não tenho dúvidas nenhumas que é uma grande obra. Houve ali, apenas, um não acreditar na imagem que foi criada dele, e, portanto, sentir necessidade de criar uma imagem mais consentânea com a realidade que ele terá vivido. Aliás, a moeda sofre um pouco, porque tenho aquela peça já feita noutras circunstâncias. Tenho, inclusivamente, um Camões daqueles na Assembleia da República com três metros de altura. Já lá está há 10 ou 12 anos. É uma peça que está completamente aceite. A mim interessa-me mais o Camões que escreve “nenhum que use de seu poder bastante para servir o seu gesto feio”. Isto é de um homem com uma visão, até democrática, que as pessoas normalmente não vêem nele.
É aceitável que um artista produza uma obra e seja atacado de forma tão violenta?
Escreveram coisas perfeitamente ignóbeis, mas quanto mais ignóbeis, maior é a ignorância que demonstram. Já cá ando há 60 anos, tenho uma produção de moeda até bastante grande, com peças reconhecidas internacionalmente. Parece-me um bocado absurdo as pessoas criticarem sem perceberem aquilo que está em causa. E aquilo que está em causa é uma verdade histórica que muita gente não conhece. A vida de Camões.
Sentiu-se magoado?
Não. Aqui só me apetece dizer uma coisa, que é desagradável, mas que é o que me soa melhor: os cães ladram, mas a caravana passa. Ao longo da minha carreira, já tive muitas críticas desagradáveis e fui sempre vencendo essa situação, porque tenho consciência que aquilo que estou a fazer não merece essas críticas.
A predisposição para criar também se aprende?
Aí, é mais complexo. Não lhe sei responder com precisão, porque entram em jogo uma série de forças, que eu desconheço, inclusivamente, que as tenho mas que não sei o que são, não sei de onde vêm nem para onde vão. Temos de entrar num terreno movediço, porque há gente que não devia estar entre os artistas. São artistas que não são artistas. São artistas na promoção de si próprios. Conheço vários que, não interessa o que façam, têm de mostrar o que fazem e dizer que aquilo é bom, melhor do que os outros. Eu pertenço a outra classe. Passo a minha vida a tentar fazer coisas que me agradem a mim, principalmente. E, depois, que agradem às pessoas que as vêem.
E que forças são essas que estão em jogo no processo de criação?
São as forças criativas, que não sabemos de onde vêm nem para onde vão. São forças da natureza, são forças do cosmos, se quiser. Neste mundo, há artistas, há médicos, há engenheiros, há atletas, há, de facto, uma predominância de qualificações que a gente não sabe porquê.
Não podia deixar de ser artista?
Exactamente. E aconteceu-me que essa decisão que tomei quando tinha 20 anos foi tomada em grande dor e sofrimento, porque eu sabia que estava desajustado da minha realidade familiar. Eu tinha um irmão arquitecto e o meu pai queria que eu fosse engenheiro. Daí começou um confronto difiícil.
Precisou de deitar muitos muros abaixo para se afirmar como artista?
Sim, é verdade. Ninguém me convenceu, tornou-se perfeitamente necessário, direi mesmo vital. Não foi uma vontade consciente, foi uma vontade imposta a mim próprio, mas que não sei quem me a impôs. São as mesmas forças que fazem girar os planetas.
Quer dizer que os artistas têm uma função?
Eu não queria dizer que sim, mas penso que sim. A função é servir uma zona da Humanidade que é necessária para completar a nossa maneira de ser. Nós precisamos de coisas bonitas para nos sentirmos bem.
O belo pode ser tema para muita discussão.
Claro, o conceito de beleza é uma coisa indefinível. Para mim, o belo não é tanto aquilo que se faz, ou que se mostra, mas sim aquilo que se quer mostrar. Muitas vezes, aquilo que fazemos não atinge o belo, mas a nossa intenção era atingi-lo. Há centenas ou milhares de factores que contribuem para que uma coisa seja bela. E, numa primeira análise, não se vêem. É preciso haver uma experiência. Vivo neste mundo há 60 anos, já vi belo em todas as partes do mundo e sou capaz de ver as razões que levam uma coisa a ser bela, mas, para isso, tenho de ter a vivência anterior que me define o que é o belo. E o Homem tem conseguido ao longo da sua existência atingir o belo. O círculo é uma forma que eu trabalho e domino há muitos anos, por causa das medalhas, das moedas, e agora dos pratos. Esta coisa dos pratos chamou uma força em mim que eu não conhecia. Fiz 15 ou 16 pratos para a exposição [Pratos da Guerra, Pratos de Paz, também no Armazém das Artes] mas vou fazer mais, porque acho que devo fazer mais. Por várias razões. É uma forma de ser militante, como outra qualquer. Da mesma maneira que toda a minha vida fui militante político, agora posso ser militante anti-guerra. E isso agrada-me.
E o artista e a arte também podem ser militantes?
Podem e devem. A procura do belo já é uma forma de militância. Não é fácil uma pessoa aguentar-se anos e anos na crista da onda.
Atingir o belo é a sua principal motivação como criador?
Não, se calhar nem me preocupo em atingir o belo. A escultura da resistência que está em Peniche, não me preocupei se ela é bela ou não, para mim representa aquilo que eu acho que é o 25 de Abril.
O que é que o leva a criar?
A mim interessa-me a militância, sempre me interessou, sempre trabalhei para a militância e continuarei a trabalhar para a militância.
Trabalhou muitos anos durante a ditadura. Sentia-se condicionado?
Completamente. Eu até fazia parte de um grupo, que o ministro das Obras Públicas tinha, de artistas que não podiam ter trabalho do Estado. E a censura foi de tal maneira grande que antes do 25 de Abril não fiz nada público. Fiz medalhas e pouco mais. Eu vivia de fazer medalhas e mais tarde moedas. Só depois do 25 de Abril é que comecei a trabalhar na rua.
Que legado deixa?
Não sei nem me interessa. O legado que vou deixar é aquilo que as pessoas encontrarem. Não é aquilo que deixo, é aquilo que elas virem, que ficou. O que for, será.