Defende escolas sem turmas, sem testes e sem um ensino planeado. É possível estender esse tipo de ensino a todo o País?
Quando alguém vai à Escola da Ponte, que foi a primeira no mundo a conseguir passar do centro do professor para o centro do aluno, costuma dizer: não tem prova, não tem director, não tem turma. Todas as escolas têm bons professores, mas raras são aquelas que conseguem garantir o direito à educação a todos. A Ponte tem a garantia do direito à educação a todos. Se é com ou sem turma, isso não interessa. Os professores devem tomar uma decisão ética, ou seja, se do modo como trabalham não conseguem ensinar todos, só têm dois caminhos: ou aprendem a ensinar todos, que é o que está na Constituição e na Lei de Bases, ou saiam da profissão. Quanto a ser extensível, é muito difícil, porque há muitos obstáculos à mudança. O primeiro é a cultura profissional. Os professores são instruídos para estar sozinhos numa sala, dando aula, e fazem-no muito bem. Se a competência dos professores é dar aula então tenho de valorizar essas competências, dar segurança à pessoa, cuidar dela, acreditar nela e elas depois tomam a decisão ética de mudar. Talvez, então, seja possível, dentro de 20 anos, o panorama educacional estar bem diferente. Cada vez que venho a Portugal vejo mais centros de explicações, mais doenças nos professores, mais abandono e suicídio juvenil. Isto não pode continuar. Este modelo é contraditório com a muito boa qualidade dos professores.
Mas os professores têm de cumprir um currículo extenso.
Não têm um currículo para dar. O currículo não é consumido, é produzido. Quando o professor tenta cumprir aquilo que a burocracia impõe, perde tempo, porque numa sala de aula, por melhor que seja o professor – e sei que são muito bons – não se consegue. Se perguntar a um adulto coisas do 4.º, 5.º, 8.º ano já se esqueceu. O professor é bom a dar aula, mas não consegue transmitir o conhecimento. O professor não ensina o que diz, transmite aquilo que é. Dar aula é uma coisa de século XVIII, século XIX.
É debitar matéria?
Exactamente. E não funciona. Basta ver os resultados. E não falo das provas de aferição, que é algo que não consigo entender como se mantêm. Por isso é que saí do meu País um pouco zangado. A Escola da Ponte tem 47 anos e continua sozinha. Hoje temos um ministro e um secretário de Estado que sabem o que querem. Deve haver um pacto entre o ministro e as instituições, que directa ou indirectamente, dependem da escola, para evitar que a burocracia do ministério se instale. É preciso que o dever de educar seja da família, da sociedade e do Estado, através da escola. Tem-se falado muito dos professores que levam a casa às costas e se eu disser que no artigo 48.º da Lei de Bases do Sistema Educativo está escrito que o professor deve residir no lugar onde trabalha? No segundo parágrafo desse mesmo artigo diz que as escolas se devem reger por princípios democráticos e não é isso que acontece. O ministro manda uma ordem e o director tem de cumprir, mesmo que não concorde. Isso é prova de que não há autonomia e há uma falta de respeito pelos professores que não pode continuar. O mesmo artigo diz que as decisões de política nacional devem basear-se em critérios de natureza científica e não administrativa. Então pergunto: por que é que há sala de aula? Por que é que há turma, por que é que as aulas têm 50 minutos, todos entram e fazem xixi à mesma hora? Qual é o fundamento científico? Onde está escrito que deve ser assim? Em nenhum lugar. É um absurdo continuar com este tipo de modelo.
Com muitos alunos para gerir, não é mais fácil esta organização?
As escolas não têm muitos alunos. Estive num município do interior de Portugal a trabalhar com crianças ucranianas, onde há dois alunos por cada professor. Se há dois alunos por professor, por que é que há turmas de 25 ou 30? O problema é outro. Se deixar de haver turmas deixa de haver turmas grandes. Se dividirmos o número de alunos pelo de professores nunca vai além de um para dez. Poderei enviar relatórios de avaliação externa da Escola da Ponte que provam que os seus alunos eram os melhores quando iam para a EB 2, 3. Portugal deveria orgulhar-se de ter a escola mais conhecida do Mundo.
Há mais instrução do que aprendizagem?
Estamos ainda no paradigma da instrução. Alunos século XXI, professores século XX a trabalhar com um modelo de instrução do século XIX. O resultado está aí. Já passámos pelo 2.0, 3.0, estamos no 4.0 e continua a insistir-se nesse modelo obsoleto que não ensina. Até quando é que vamos continuar com esta situação, se temos aí tudo o que é preciso? Tenho estado no Brasil, onde tenho a Escola Aberta de São Paulo e já fui apresentá-la em vários lugares do Mundo, como Índia ou Singapura, ao lado da Finlândia. Foi considerado o melhor de todos os projectos. Por que é que vamos importar modelos pedagógicas anglo-saxónicos ou vamos à Finlândia? Temos muito melhor em Portugal e no Brasil.
Defende um ensino construído com o aluno. O modelo actual está longe disso?
Tenho medo de ser injusto para com os bons professores, mas eles estão a trabalhar de modo errado. Eles não têm de preparar projectos para os alunos. Têm de construir projectos com os alunos; não têm de fazer a planificação de uma aula; têm de ajudar o outro a planificar a sua vida, a refazer o seu projecto de vida, que o realize socialmente. Não têm de dar aula; têm de promover a pesquisa e construir roteiros de estudo. Não têm de aplicar testes, que não avaliam absolutamente nada. Em vez disso, façam o que está na lei: avaliação formativa, contínua, sistemática, com evidências de aprendizagem em portfólio digital.
Há escolas a querer replicar o modelo da Ponte, como em Leiria. Fica feliz com isso?
É isso que me traz aqui. Não gosto de falar disto porque me emociono muito. São três ou quatro regiões que apostam numa diferença para melhor: Leiria, Batalha e Marinha Grande, que têm directores de agrupamento extraordinários. Encontrei aqui algo que já não imaginava. Quando vou a algum lugar só ouço queixas, aqui ouço pedidos de ajuda. Noutros lugares vejo o ‘rame rame’ do velho modelo, aqui vejo as crianças a visitar uma carpintaria e as pessoas a aplicar roteiros de estudo, vejo os professores a perguntar como podem melhorar. Isso para um ancião é a melhor recompensa de meio século de trabalho. Leiria vai ser um grande palco de mudança e inovação, garanto.
Que papel deve ter a família no modelo que defende?
O que precisamos hoje é de juntar a família, a sociedade e o Estado nas responsabilidades para criar uma nova construção social, que substitua essa velha que há muito tempo que não serve.
A tecnologia tem invadido as escolas. Concorda?
A Escola da Ponte foi a primeira a autorizar os computadores e a utilizar a internet na aprendizagem, na proximidade e à distância, porque a inteligência artificial tem de servir a escola e humanizar o acto de aprender. Daqui por dez anos, 80% das profissões de hoje não existirão. Se não se reciclarem, os professores vão desaparecer. Não se pode utilizar a internet da forma como se tem utilizado. Uma aula à distância é tão inútil como uma aula presencial. Aula vai haver sempre, porque quando o discípulo está pronto, o mestre surge, mas é preciso aproveitar através da internet, e fisicamente, aquilo que não existe na instrução. É muito importante o papel da memória, não se pode jogar fora o menino com a água do banho. Não sou radical. Há coisas na instrução, que é preciso conservar. Temos de criar condições para que os professores que estão habituados à sala de aula se libertem desse gueto, se abram à comunidade, que se sintam numa rede chamada comunidade de aprendizagem.
Fala-se da importância das emoções e da saúde mental. As escolas trabalham as emoções?
Isso é um domínio bem sensível. Se considerarmos que a educação é apenas do domínio cognitivo estamos profundamente errados. Eles abandonam vão embora ou criam problemas, a chamada indisciplina, mas se percebermos que a educação é também afecto, emoção, ética, estética e espiritualidade, teremos de considerar o ser humano como um sujeito multidimencional e juntar a aprendizagem do domínio cognitivo com tudo o resto. Falando de inclusão social, um terço dos alunos tem falta de afecto na infância: se uma criança com fome não aprende, uma criança com fome de amor também não aprende.
De que forma podem trabalhar o aspecto emocional?
Têm de criar relação. Antigamente pensava-se que o centro era o professor, depois a Escola da Ponte mostrou que o centro era o aluno. Nem uma coisa nem outra. O centro é a relação, é o vínculo que se estabelece entre seres humanos. Se tiveste um professor de quem não gostaste, não tiveste vínculo, não aprendeste nada. É preciso estar numa comunidade, aprendendo os saberes dessa comunidade, as suas tecnologias sociais e as tradições. Tudo isso não pode ser um gueto dentro da comunidade. Se isso acontecer, Portugal vai ser pioneiro na nova educação, que é uma nova construção social, porque escolas não são prédios. As escolas são pessoas. E pessoas são os valores da sua visão de mundo. Hoje temos muitas pessoas que já pensam diferente e querem o melhor para os seus filhos. Já não se contentam com o que existe. Vamos criar condições e encontrei aqui a disponibilidade, capacidade de se rever e de se autocriticar. É suficiente para voltar no próximo ano e vos ajudar em Leiria, nesta região, para que finalmente aconteça aquilo que há tanto tempo Agostinho da Silva previa que acontecesse: Portugal desembarcou em África, na Ásia e na América. Só falta Portugal desembarcar em Portugal, através da nova educação que está a nascer no sul da América.