Quando deu as primeiras notícias sobre a Covid-19, no final de 2019, e tendo acesso a um maior espectro de fontes de notícias, apercebeu-se que chegaríamos a este ponto?
Estudei a “gripe espanhola”, a pandemia de 1918 de que falo no meu romance A Filha do Capitão, mas era um acontecimento com 100 anos, e não tenho um antecedente recente. A não ser que fosse epidemiologista, não poderia prever o que iria acontecer. Houve, nos últimos anos, vários alertas com outras epidemias, como a do ébola, o SARS ou a peste suína, que soou alarmes junto dos médicos. Para as restantes pessoas, a Covid-19 seria mais um caso que ficaria circunscrito a uma área geográfica específica. O problema deste vírus, ao que parece, é que tem certas características que são inesperadas, como a sua capacidade de contagiar o ser humano. Parece formatado especificamente para nos infectar. É mais contagioso do que o vírus normal da gripe, que convive connosco há milhares de anos.
Quase dá a impressão de que foi concebido especificamente para esta situação. Uma das questões sobre se este coronavírus tem origem laboratorial é, precisamente, a “afinação” que demonstra. Sabe-se que se consegue desenvolver vírus, através de técnicas laboratoriais, afinados para a transmissão em humanos. Isso é um dos factores que leva a que haja suspeitas… que não passam disso. São hipóteses.
Parece que vivemos num cenário de ficção científica. No seu livro, Imortal, toca algumas questões alicerçadas na ciência, como o impacto da Inteligência Artificial e aquilo que a Humanidade prepara para o futuro, sem se aperceber…
Os meus romances, em geral, são baseados na realidade. Ela é suficientemente interessante para não precisarmos de inventar coisas. Quando vimos os aviões a colidir contra as Torres Gémeas, no 11 de Setembro, se aquilo fosse um filme, diríamos que “só os americanos inventariam estas tretas”. E, no entanto, foi um acontecimento real. Com as pandemias acontece a mesma coisa. A literatura não precisa de inventar nada! Basta olhar em volta e a realidade é suficientemente estranha, mesmo que nos habituemos a ela.
Estes temas aparecem no decorrer da sua investigação preliminar para outros livros e servem como ignição para novas histórias?
[LER_MAIS]Trabalho, pesquiso e abordo os aspectos mais curiosos e inesperados, sobre determinada realidade. Tenho de sublinhar que muitas das coisas que trato nos meus romances são conhecidas dos especialistas da área. Não invento, eu divulgo. Por exemplo n’A Fórmula de Deus, explico o que a ciência descobriu, mas que os cientistas, por se focarem muito nos aspectos técnicos, não são capazes de explicar ao público de forma facilmente inteligível, clara e interessante. Pego em coisas que estão no conhecimento restrito e levo-as para o público em geral.
Durante os piores dias da pandemia, com o número de óbitos sempre a subir, quando fazia o relatório da situação aos portugueses, alguma vez se sentiu desmotivado?
O meu trabalho é dar notícias. Se chover em Leiria, a culpa não é do meteorologista. Ele apenas comunica que irá chover. Eu dou informações às pessoas sobre o que se passa e com essa informação, elas podem defender-se. Não me posso cansar de dar informação que é útil. Quando Portugal se tornou no pior País do mundo, em Fevereiro, havia quem estivesse melindrado, porque eu estava a noticiar esse facto…, mas era útil que o público soubesse isso! Porque foi assim que constataram que tinham de corrigir o rumo. E o próprio Governo também o percebeu! Recentemente, os britânicos colocaram-nos na lista vermelha devido à variante delta e veio logo o Governo dizer que “não se descortina o motivo”. Agora, já estamos a descortinar o motivo. Os britânicos basearam-se nos dados das autoridades de saúde portuguesa para tomar essa decisão e o nosso Governo não foi capaz de fazer essa leitura. Já no Verão do ano passado, quando nos tiraram da lista verde, protestámos muito e, afinal, tinham razão! Viam para onde íamos, a partir dos nossos dados! Quando a Alemanha e outros países nos metem na lista vermelha, em vez de estarmos com atitudes bacocas a dizer que eles são uns “malandros” e a incentivar ao ódio aos estrangeiros, temos de tentar perceber por que razões eles o fazem. Será que é só para nos chatear? Não! Há razões objectivas. Porém, quando gerimos a situação com incompetência, naturalmente, temos a tentação de tentar alijar as nossas responsabilidades e atirá-las para os outros.
Perfil
Roberto Bolaño, no livro 2666, fez o exercício de banalizar a violência e a morte, pela repetição mecânica dos números. A banalização pela repetição também acontece a muitos que dizem que a Covid-19 não existe ou é uma “inventada”?
A normalização das situações é um fenómeno normal da Humanidade e da vida. A evolução não é sustentada na lei do mais forte, mas na daquele que melhor se adapta. E quem é o que se adapta melhor? É quem melhor normaliza. Numa situação muito difícil é capaz de se adaptar e torná-la normal. Falei disso no meu romance O Mágico de Auschwitz, uma viagem ao campo de concentração em 1944, no meio do genocídio da Shoah, onde vemos os judeus a normalizarem a experiência. Um dos sobreviventes disse-me que a primeira vez que viu um morto num campo ficou em choque. Ao fim de algum tempo, palitava os dentes, enquanto via um enforcamento. Já nem ligava! “Olhava para os mortos, como quem olha para postes de iluminação”, disse-me. E depois acrescentou: “isto é uma coisa que nenhum de nós, os sobreviventes, explica porque os outros não compreendem”. A própria Shoah resulta de um processo de normalização sentido pelas vítimas, mas também pelos perpetradores. Os nazis antes da guerra diziam que era “impensável” matar os judeus. Há declarações de Himmler e Göring nesse sentido… depois, passo a passo, o que era impensável, tornou-se admissível e depois necessário. Foi um processo de normalização contínua. Não estou a branquear a actuação dos nazis. Isto é a natureza humana. Isto é uma parte do fenómeno. A outra é que “há pessoas que entendem que a Covid-19 é uma gripezinha”. Cada pessoa reage de maneira diferente, em função das suas características pessoais e culturais. Conheço quem esteja em pânico, quem tenha normalizado e quem diga que “isto não é nada”. Espinoza, filósofo judeu de origem portuguesa, dizia que “não devemos comentar e não devemos criticar, apenas compreender”. Eu aplico o princípio de que, quanto mais compreendemos, menos julgamos e quanto mais julgamos, menos compreendemos. Não critico quem reage de uma maneira ou de outra. Tenho é de compreender por que razão funcionam assim e perceber que a natureza humana é muito diversificada.
Falta tacto das autoridades de saúde e do Governo na comunicação de algumas situações relacionadas com a pandemia?
É subjectivo. Para alguns, será adequado para outros não. No Natal, não foi uma questão de comunicação. Foi uma decisão. A mensagem comunicada foi “vamos salvar o Natal”. Regulou-se até lá, mas quando se chegou a essa data, disse-se que se poderia circular à vontade. E deu no que deu! Não foi um problema de comunicação. Foi uma decisão intencional e errada.
Como se lida com a mentira?
Na minha profissão, sempre aprendi que a mentira se lava com a verdade. Haverá pessoas que não vão acreditar, mas sempre foi assim. Espinosa dizia que não vale a pena falar com a turba, porque ela segue as emoções e são manipuladas por quem o sabe fazer. É preciso explicar a verdade e esperar que, gradualmente, ela se espalhe. A história da Humanidade é de manipulações. Há ideias manipuladas que usam os nossos medos: “os estrangeiros vêm aí e vão dar cabo disto!” ou “vão acabar com o Estado Social!” São políticas do medo criadas para produzir efeitos. Todos os partidos as usam. Todos! E até fazem pior! Eles, que se queixam, em público, da internet e das mentiras, têm nas suas sedes ou noutros edifícios, unidades de miúdos que usam perfis falsos, nas redes sociais, para espalhar fake news. Depois, parecem uns santinhos a falar. Quando um jornalista dá uma notícia que não agrada, os partidos invadem as redes sociais. Aconteceu-me, no Telejornal, devido a um erro que não foi meu. Tive uma informação de que o deputado mais velho eleito para o Parlamento seria uma reformada de 69 anos. No ar, a ler, disse: “foi eleito, perdão, eleita”, porque seria uma senhora de 69 anos…. Afinal, era um deputado de 71 anos que é homossexual e criou-se uma polémica. Curiosamente, a polémica só começou às 10 horas do dia seguinte. Estava tudo calmo até que, a essa hora, as redes sociais se incendiaram. É estranho. O que foi que aconteceu? O que aconteceu é que entraram às 9 horas ao trabalho, tiveram uma reunião do partido, decidiram: “este é o assunto a atacar” e invadiram as redes. Isto é fake news e é fabricado pelos partidos que dizem que as querem combater! É uma hipocrisia. Defendi-me com a verdade! Mas isto é para dizer que aqueles que se dizem campeões da verdade são os primeiros a lutar pela falsidade. E este é apenas um exemplo insignificante de algo que se passa todos os dias. Escolhem-se temas, lançam-se campanhas de medo e ninguém os leva presos. Isto é feito pelo sistema, não é pelo anti-sistema. Na verdade, todos o fazem.