Acaba de publicar A vida na selva, o seu quinto livro de ficção. Já se sente um escritor?
Quando lancei o primeiro romance, em 2014, disse que queria ser escritor, porque era um desafio, que assumia com a responsabilidade de o tentar fazer com alguma qualidade. Passados estes anos, tenho publicados quatro romances e este, que é, no fundo, um livro de crónicas. Nessa medida, posso dizer que sou escritor, sem com isso fazer qualquer qualificação da minha competência de escrita.
Escolheu para título do último livro o mesmo que deu a uma redacção que fez na escola. O que é que abordava nesse texto?
Foi escrito no primeiro ano do liceu, em Alcobaça, na disciplina de Português. Punha os animais a terem conflitos e relações de proximidade entre si e acabava com a chegada do rei, o leão, que punha ordem na casa. No dia seguinte, ao lê-la na aula, apercebi-me que os colegas estavam muito calados e atentos a ouvir a história. Quando terminei, a professora disse que não tinha sido eu a escrevê-la. Fiquei furioso. Os outros colegas riram-se. Fiquei sempre com esse sentimento de injustiça. Ao escrever agora um livro de crónicas, que tem muito a ver com o nosso tempo, achei que não havia melhor título do que a A Vida na Selva. É realmente aquilo que estamos a atravessar pelo mundo fora. O título serve para recordar essa situação e, ao mesmo tempo, para a projectar para os dias de hoje.
O livro é apresentado como uma viagem às memórias e histórias do autor. Quando recua à infância, vivida na Nazaré, a que mundo é transportado?
Não se trata necessariamente de um livro de memórias, embora seja um livro com muita memória. Desse tempo, marcou-me sempre muito a distinção que existia entre os ‘pés descalços’, onde se incluiam os filhos de pescadores, e os ‘pés calçados’, que pertenciam às famílias mais abonadas. Muito antes de eu ter capacidade crítica para compreender o que isso significava, fui lançado nessa vivência, que me impressionava muito. Eu vinha de uma família da classe média, mas pertencia aos ‘pés calçados’. A maior parte dos meus amigos foi para a escola dos ‘pés calçados’, que era no Sítio, e eu fiquei cá em baixo, na escola dos ‘pés descalços’. Vivi muito essa relação de uma Nazaré marcada por uma pobreza enorme e, como vila piscatória, sempre carregada de dramas e de receios. Havia um contraste muito grande. Por um lado, o peso das muitas dificuldades de vida e, ao mesmo tempo, uma alegria imensa sempre que havia circunstâncias em que isso podia acontecer, como era o caso do Carnaval.
Na apresentação do livro é também referido que os professores não lhe reconheciam um grande talento para a escola. Era mesmo assim?
Houve um professor que no segundo ano terá dito ao meu pai que era melhor tirar-me do estudo, porque eu não dava grande coisa para aquilo. O que ele não sabia é que eu era um cábula enorme e dedicava-me a muitas outras coisas. Zanguei-me com a professora de Português e nunca mais estudei Português por causa da história da composição. Mais tarde, voltei a encontrá-la, já nas Caldas da Rainha, onde eu fiz os últimos anos do Liceu, como professora de Latim. Aí, ela já achava que era eu que fazia as coisas.
Foi na Nazaré que se iniciou no teatro. Alguma vez encarou o teatro como opção de carreira?
Quando acabei o Liceu, cheguei a dizer que queria ir para o teatro. A família ficou muito assustada. E eu também percebi que, naquela altura, optar pelo teatro era demasiado arriscado. Acabei na Justiça.
Foi cursar Direito em Coimbra.
Interessava-me muito o aspecto exterior da Justiça, a cena judiciária, o funcionamento do Tribunal, a ideia que sempre me intrigou de haver um conjunto de pessoas que julgam e definem o destino das outras. Mais uma vez, o percurso que eu fiz na Nazaré teve importância nisso, porque havia uma ideia de injustiça e de justiça que fui criando fora do Direito. Sempre senti necessidade de poder intervir nesse domínio. Eu queria saber como é que é esta coisa de poder fazer Justiça, de administrar Justiça, de poder pegar em histórias de vida e saber como é que elas se regulam através do Direito. Sempre gostei muito do Direito. Ainda hoje continuo a entender que nenhum bom juiz o será se não for um bom jurista. Mas, se for apenas um bom jurista, será sempre um péssimo juiz. Quer no Ministério Público, quer como juiz, fui encontrando expressão para aquilo que eram as minhas interrogações e as minhas inquietações como pessoa.
O poder de definir a vida das pessoas pode ser assustador?
Assustador é, mas é bom que seja. Temos de ter sempre a consciência de que há uma imensa responsabilidade sobre nós. A experiência dá-nos calo, nomeadamente para perceber que ela não é suficiente para resolver todos os casos. Como juiz, somos confrontados com a ligação entre a vida que nos chega e a técnica que temos. Ora, a técnica não é suficiente. Temos que ter uma cultura da vida, uma compreensão da vida, o conhecimento de muitas coisas que não passam sequer pela nossa própria existência, para, no momento em que ditamos uma sentença, termos a consciência de que fizemos tudo para criar uma ligação tão perfeita quanto possível entre o Direito, a Lei e aquela vida concreta que tivemos de julgar.
Isso é de uma enorme exigência.
Sem dúvida. No momento em que o juiz fica sozinho, para a decisão final, o mundo cai em cima dele, porque ele não tem outra coisa, senão a sua consciência e a sua qualidade técnica e humana para decidir. E isso é pesado, arriscado e, muitas vezes, assustador. Agora, não pode ser assustador por forma a criar inibição. Tem de ser assustador por forma a criar, cada vez mais, maior responsabilidade.
Dos anos de magistrado recorda algum caso que o tenha marcado especialmente?
Houve vários que me marcaram, alguns até muito insignificantes e outros mais pesados e mais complicados. Tinha um princípio, com o qual me dei sempre bem. Não deixava um réu sair de um julgamento sem eu ter encontrado nele alguma coisa boa. Na maior parte deles havia muita coisa positiva a apontar. Mas, havia situações em que a gravidade do crime praticado, da conduta e do comportamento eram tais que dificilmente encontraríamos algo de positivo naquela pessoa. Mas nunca deixei de fazer esse exercício e encontrei sempre. Recordo-me de julgar uma velhota por furto de um rádio e de um relógio. Fui conversando com ela e concluí que tinha furtado porque andava toda a gente a ouvir na rádio o “Simplesmente Maria” e ela também queria ouvir, mas não tinha rádio nem relógio para saber as horas a que dava. Teve de ser condenada a uma pequena pena suspensa e acabei o julgamento a contar-lhe a história da Gata Borralheira, que ela achou mais bonita do que o “Simplesmente Maria”.
Por que fazia o exercício de procurar sempre algo de bom na pessoa que julgava?
Não há pessoas inteiramente boas, nem pessoas inteiramente más. Sempre me habituei a distinguir a pessoa do acto que ela praticou. Muitas vezes dizia à pessoa condenada que o seu acto foi mau, mas ela não o era. Era a minha forma de a libertar como pessoa do acto que praticou. Mas, claro, não o dizia sem ter uma base para o afirmar. Usava a alocação final que o juiz faz ao réu, e que muitas vezes ainda carrega mais a pena, para dar algum ânimo ao réu.
Acha que isso teve algum efeito?
Tenho esperança que em algumas situações tenha tido. Na maior parte dos casos provavelmente não teve ou foi muito reduzido. A mim cabia-me fazer isso. Sentia-me tranquilo, porque entendia que isso representava tudo aquilo que se deve exigir a um juiz numa Justiça que, curiosamente, não era democrática na altura, porque isso aconteceu antes do 25 de Abril. Não havia democracia. Portanto, não se podia falar da dimensão democrática do que se fazia, mas ela estava em mim, estava no exercício da minha função e na independência que, mesmo nesse tempo, tive sempre. Mesmo nos poucos casos em que não senti que ela me fosse garantida, não deixei de fazer o que entendia que devia fazer.
Há alguma decisão que lhe pese?
Não tenho nenhum problema de consciência, o que não quer dizer que tenha a certeza de que estive sempre certo. Fiz sempre tudo por estar. Há apenas um caso em que não tenho a certeza total, mas que não me perturba especialmente. Era uma coisa relativamente leve, referente a uma multa, mas foi o único caso em que me meteram a uma cunha. Ainda hoje não tenho a certeza se a condenação foi por causa da cunha ou da prova. Acho que a prova era suficiente para condenar, mas havia uma ponta que talvez pudesse suscitar alguma dúvida. Provavelmente, acabei por resolver a dúvida também por causa da cunha, mas não tenho a certeza.
Voltando ao livro A vida na Selva. Dedica o prefácio à importância da palavra. É também uma analogia aos dias de hoje em que, muitas vezes, as tecnologias tomam o lugar da palavra?
No fundo, o livro é um convite ao humano para não deixar de ser humano e para valorizar, cada vez mais, as coisas fantásticas que o humano pode proporcionar, criar e viver. E o grande instrumento para isso é a palavra, a maneira como nós a usamos e conhecemos, a maneira como ouvimos a palavra do outro, como dialogamos, como estamos uns com os outros. O posfácio vem de um outro que fiz, relacionado com o teatro.
Pede ao leitor que saia do livro como se saísse de um espectáculo.
Exacto. A ideia de que temos de nos encontrar, a falar das coisas que vimos, que assistimos e que lemos e de também, a partir daí, criar comunidade com vida, que se entusiasme com as grandes vantagens das tecnologias, mas sem esquecer que as tecnologias são sempre uma coisa menor quando comparadas com esta invenção extraordinária que é a pessoa humana.
Se transformamos a pessoa humana em robô é terrível, porque não somos capazes de ser tão bons como o robô e perdemos o que nos torna melhor do que eles, o sermos pessoas
Hoje as tecnologias têm uma presença avassaladora na vida das pessoas.
Se transformamos a pessoa humana em robô é terrível, porque não somos capazes de ser tão bons como o robô e perdemos aquilo que nos torna melhor do que eles, que é sermos pessoas. Talvez valha a pena, enquanto temos tempo, ponderar isto, sem estar a pôr travões. Não temos de travar o progresso, mas temos de ter poder sobre ele e não sermos dominados por ele, porque, quando assim é, há sempre alguém que o domina e que depois nos domina a nós.
É preciso regulamentar a inteligência artificial?
A questão fundamental não é a de diabolizar a tecnologia nem a inteligência artificial. Pelo contrário, porque vamos encontrar aí claramente caminho de progresso. O problema está em saber quem é que tem o poder sobre isso. Cada vez mais, vemos um grupo cada vez menor e mais poderoso a dominar e uma massa imensa, constituída por todos nós, a ser dominada. Tecnologias de informação e biotecnologias têm de ser controladas por um poder democrático, que consideramos estar nas nossas mãos. Não podemos permitir que a própria democracia seja tomada de assalto por pequenos grupos que acabam por tomar o poder absoluto, impondo-o ao conjunto das pessoas. É uma questão entre tecnologia e poder.
Como vê o estado da Justiça em Portugal?
Numa fase em que há uma grande turbulência e um grande ruído à volta das questões da Justiça e do seu funcionamento, é necessário, a certa altura, um abrandamento na proliferação de discursos. Há hoje uma grande incompreensão do modo como funciona a Justiça, nalguns casos com razão, noutros, porventura, sem razão. Este é, talvez, o momento menos indicado para analisar o assunto, porque estamos em período eleitoral e com várias intervenções da Justiça a ocorrerem ao mesmo tempo. Mas essa análise é urgente, sendo que precisamos de perceber que não podemos discutir a Justiça sem aceitar discutir o Estado, o poder e a democracia.
O que pode surgir dessa discussão?
Se o fizermos, facilmente encontramos o lugar da Justiça e respostas para o que deva ser a Justiça e o seu modo de funcionamento. Se isolarmos a Justiça e a discutirmos autonomamente, não levamos a essa discussão muitas das consequências virtuosas que podemos extrair do debate sobre o Estado, sobre a democracia e sobre o poder. Falamos sistematicamente da separação de poderes, que é essencial, mas não podemos esquecer também que a teoria da divisão de poderes surgiu e desenvolveu-se num tempo em que o Estado tinha um monopólio de poder.
E hoje há mais poderes.
O poder hoje está completamente polarizado: o poder financeiro, o poder económico, o poder da comunicação social, etc. E são poderes que têm força de intervenção social. Portanto, precisamos de saber qual é a localização primeira do Estado relativamente a isso e depois da Justiça relativamente a este conjunto de poderes e como trabalhamos os conceitos de separação e de articulação de poderes, fazendo funcionar a independência dos tribunais em simultâneo com a interdependência de poderes, prevista na Constituição. Isto obriga-nos a dar um passo atrás, subir ao nível do Estado e discutir verdadeiramente o Estado democrático.
Fala-se hoje da judicialização da política…
E da politização da Justiça. Há uma frase muito repetida: “À Justiça o que é da Justiça e à política o que é da política”. Esta é uma frase perigosa, que hoje faz pouco sentido. Sabemos perfeitamente que há uma intersecção muito grande entre Justiça e política e vice-versa, uma intercessão que é virtuosa. O que não se pode pôr em causa, porque é essencial, é a independência dos tribunais e a separação de poderes. Agora vamos ver como é que isso se articula com uma imagem global do Estado, que tem a absoluta obrigação de tutelar a democracia – estamos numa fase muito inquietante – e de restabelecer uma dimensão democrática do poder. Isto tem que necessariamente levar também a um estudo sério sobre a desvinculação dos poderes do Estado. Acho bem que se polarizem, porque a pluralidade de poderes não é, em si, preocupante. Preocupante será dispensá-los de uma necessária cooperação em defesa e garantia dos objectivos últimos do Estado. Há uma outra questão: nunca foram adoptadas tantas medidas para resolver os problemas da justiça, como nos últimos 30 ou 40 anos.
Então por que não se resolvem?
Porque não se discute política, mas apenas medidas. Os políticos têm medidas, mas não nos dizem como pensam politicamente a Justiça. Temos de regressar ao tempo em que se discute politicamente, se define uma estratégia. As medidas são a execução da estratégia. Na Justiça não temos estratégia, temos medidas. Entulhamos o sistema de medidas que, cada vez mais, atrapalham o próprio sistema. Precisamos de restaurar a política, dando à política a dimensão nobre que ela deve ter, fixando a ideia de que o pensamento é essencial e levando as gerações mais novas a interessarem-se pela política e a entrarem no debate democrático. Estas gerações vão-nos escapando um pouco, inclusive até mesmo quando se fala da democracia, do seu envolvimento na luta pela democracia e pela sua consolidação.
Essa deriva dos jovens está também a acontecer para caminhos mais sombrios. Um estudo recente revelou que muitos dos que tencionam votar na direita radical ou extrema direita são jovens.
Não podemos, a partir dessa deriva, fixar a crítica apenas neles, mas também em nós e na responsabilidade que temos no que está a acontecer. Hoje somos confrontados pela Europa fora, e não só aí, com o chamado populismo. No populismo o perigo está no ‘ismo’, que é a ideologia que aproveita uma reivindicação normalmente justa. Muitas vezes, esta deriva é uma deriva do ‘populus’ e, portanto, do povo considerado em termos mais globais, que, não encontrando resposta naquilo que a democracia lhe pode dar, aceita que sobre essa reivindicação justa se instale uma ideologia que não tem nada a ver com a reivindicação, apenas a aproveitando para se instalar como forma de poder. O populismo é grave pela ideologia que se instala sobre razões que, muitas vezes, são aceitáveis.
Como se combate?
Temos de reabilitar o pensamento e, para isso, reabilitar o político, a importância do político e voltar ao político, ao poder que, apesar de tudo, é exercido, bem ou mal, em nome de uma maioria, que livremente e com pensamento crítico e conhecimento, é capaz de fazer as suas escolhas, em vez de nos transformarmos numa massa de indiferentes e de irrelevantes. Precisamos de parar para pensar.
Estamos a fazer pouco isso.
Hoje é tudo instantâneo. E a instantaneidade nega qualquer ideia de valores, qualquer ideia de combate, de luta, de procura, de afirmação. Isto é, de reflexão e de pensamento crítico. Alguém quer que isso seja assim porque, se nos tornarmos cada vez mais indiferentes e irrelevantes, esse alguém fica livre de agir como entender, porque não há quem se oponha. Não podemos perder o poder de nos opormos.
Perfil Magistrado com paixão pelo teatro
Ainda pensou seguir teatro, paixão para a qual despertou ainda na Nazaré, onde nasceu, mas acabou por seguir Direito, ingressando depois na magistratura. Álvaro Laborinho Lúcio, 81 anos, foi também ministro da Justiça, deputado à Assembleia da República e ministro da República para a Região Autónoma dos Açores. Estreou-se na escrita de ficção em 2014, com o livro O Chamador, contando actualmente com quatro romances publicados. Acaba de lançar A vida na Selva, um livro de crónicas, que, não sendo uma autobiografia, recorda a infância e a adolescência vividas na Nazaré, a crise académica de 1962, que viveu como estudante de Direito em Coimbra, a ligação ao teatro e a carreira como magistrado. Actualmente, divide o tempo entre a escrita e actividade cívica.