São jovens iguais a tantos outros. Alguns são bons alunos, outros nem tanto. Namoram, têm amigos, saem à noite, têm comportamentos desafiadores ou rebeldes, típicos da adolescência, mas a maioria reconhece o trabalho que é desenvolvido nas instituições de acolhimento e as oportunidades que lhes proporcionam.
Rejeitam o rótulo de ‘coitadinhos’ e muitos, anos depois de entrarem nos lares residenciais, não têm problema em assumir que serem institucionalizados foi o melhor que lhes podia ter acontecido.
“Foi bom ter sido institucionalizado, apesar de tudo. Agora que olho para trás vejo que tive oportunidades que muita gente não tem ou eu nunca teria tido se estivesse em casa. Só o facto de estar na universidade, nunca teria lá chegado”, assume Sérgio Freire, 20 anos, que entrou para o Colégio D. Dinis – Internato Masculino de Leiria, por volta dos 12 anos.
O mesmo sentimento tem Carolina Pinheiro, 26 anos, que há dois anos deixou o Lar de Santa Isabel. Entrou com 14 anos na instituição e hoje mora sozinha num T1. Está a terminar a licenciatura em Engenharia da Energia e do Ambiente na Escola Superior de Tecnologia e Gestão (ESTG) do Politécnico de Leiria, que concilia com o trabalho.
“Salvação talvez seja uma palavra muito forte para definir o percurso que tive, mas estar institucionalizada foi uma oportunidade para ser outra pessoa. Aprendi muito e fui moldada aqui. Foi como se o futuro tivesse algo de melhor para mim”, reconhece.
Sérgio Freire está a terminar o curso Técnico Superior Profissional (TeSP) em Ambiente, Património e Turismo Sustentável na ESTG e tem consciência que manter-se no internato após os 18 anos foi a melhor solução.
“Não ia estragar a minha escolaridade e o meu progresso de saída. Sabia que ia ter um melhor futuro continuando na casa e depois sair com carta de condução e com o curso”, constata.
Leiria não foi a primeira instituição onde esteve, mas não foi algo que o tenha deixado revoltado. Manteve sempre a relação com a mãe, embora admita que voltar para o seio familiar está fora de questão. Quando se autonomizar será para ter o seu espaço. Com um curso profissional na área da restauração, é neste sectorque Sérgio se vê a trabalhar e considera o TeSP uma mais-valia.
“Dou sempre este exemplo: um turista vai ao restaurante e pergunta ao empregado o que há para visitar na zona. Fica bem saber o que aconselhar.” Nunca sentiu directamente o estigma de viver numa instituição de acolhimento, mas lamenta que as pessoas “falem do que não conhecem”. “Os jovens que vêm para cá têm passados diferentes, histórias complicadas e as pessoas julgam-nos, mas até são bons rapazes”, reforça.
Por isso, o mau comportamento que alguns elementos possam ter na escola são criticados pelos companheiros de residência, que tudo fazem para afastar o rótulo de que o ‘menino ou menina do lar’ são os piores. Quando é um outro jovem a imagem é individual, mas “aqui fica um rótulo colectivo”.
“Basta um aluno fazer uma asneira uma vez e todo o trabalho de bom comportamento de todos é perdido”, refere Luís Franco, 22 anos, que também se mantém no Colégio D. Dinis a terminar o mesmo curso de Sérgio.
Conceição Lopes, directora do Lar de Santa Isabel há mais de 20 anos, concorda que as jovens não alinham em maus comportamentos de colegas. “Preferem nem estar perto delas, porque não querem ser rotuladas com essas atitudes”, adianta, ao revelar que até há várias que estão no quadro de mérito.
Estas duas instituições de acolhimento residencial são a prova de que a institucionalização pode ter um final feliz. Cada jovem vai construindo o seu projecto de vida, acompanhado por uma equipa multidisciplinar das instituições. Têm todas as oportunidades para terem um futuro risonho e muitos agarram-nas com toda a força.
Situado nos Marrazes, o edifício do internato masculino, que alberga actualmente 25 rapazes, é pertença da Fundação Vítor Reis Morais. É uma casa igual a tantas outras, mas muito maior e com mais quartos.
No hall da entrada do edifício, o mural dos desejos anuncia as metas alcançadas e as que ainda faltam concretizar. “O objectivo é que eles estabeleçam objectivos e consigam projectá- los no futuro”, afirma Rita Cabral, directora do internato.
Alguns vistos provam as conquistas alcançadas, “o que é um motivo de orgulho para eles”. Os outros têm de continuar a trabalhar para chegar onde desejam. “Ajuda a terem respeito pelos outros, a percepcionar as dificuldades das pessoas e os seus diferentes desejos e motivações. É benéfico para a identidade grupal”, explica a responsável.
O acolhimento nesta estrutura é a partir dos 12 anos. As crianças chegam “habitualmente nervosas, tristes ou revoltadas”. Há situações mais dramáticas, como jovens que se auto-agridem, mas também há casos em que o “alívio” evidenciado pela criança é evidente.
O choque pode ser grande. É deixar um contexto familiar, mesmo que negligente, mas que é o seu, para uma casa cheia de pessoas que não se conhece, onde há regras e respeito pelos outros.
Apesar dos 10 anos e de ter pouca memória do momento da institucionalização, Luís Franco admite que “ser retirado à família não é fácil para nenhuma criança” e “deixa marcas”, mas “muitos acabam por perceber que a solução foi a melhor para o seu futuro”.
Doze anos depois reconhece que ainda não está preparado para sair. “Têm sido anos benéficos. Não me arrependo de continuar aqui. Aprendi tudo o que sei. Sinto que se não tivesse vindo para cá não era a pessoa que sou, nem tinha conquistado o que já conquistei. A instituição é a minha casa e fiz amigos para a vida. Alguns são como irmãos”, afirma Luís Franco, que já tirou a carta e obteve autorização para conduzir o carro que pertencia a um familiar.
Não esconde de ninguém o seu percurso de institucionalização e sabe que teve mais oportunidades do que se tivesse estado na família, mas confessa que o processo Casa Pia fez os jovens acolhidos serem olhados como “coitadinhos”. “Não somos coitadinhos. Não somos mais nem menos do que os outros.”
E Luís é um dos exemplos: namora, sai com os amigos, foi jogador de futsal, estuda, faz uns “trabalhitos”, joga à bola e passeia. Nada diferente de qualquer jovem de 22 anos. Apaixonado por eventos é nesta área que se vê a trabalhar no futuro e não esconde que sempre que pode até faz voluntariado neste sector.
Ao longo do seu crescimento foi reguila q.b, mas percebeu que tinha de mudar. O trabalho que foi feito deu frutos e chegou a receber um prémio de mérito.
“Acho que sou um exemplo. Chumbei dois anos, mas estou no ensino superior. Tirei a carta, fui o primeiro a ter autorização para ter carro e o primeiro a entrar na universidade.”
Sérgio Freire também é um exemplo para os mais novos, a quem dá conselhos e os encaminha para que o ambiente na casa seja o melhor. “É a minha casa. A pior parte é afastarem- nos da família, mas ao longo do tempo vamos percebendo que é o melhor para nós e para ela”, reconhece.
“Estamos em meio urbano, sem vedações. Há crianças para quem a nossa casa não tem o perfil indicado para lhes poder prestar um serviço condigno e adequado”, afirma Rita Cabral, ao explicar que, por isso, analisa profundamente cada processo de pedido de vaga para garantir que a integração é a melhor para o jovem.
Numa casa com 25 moradores a logística não é fácil. Há horários para as refeições, para o estudo e para usar o telemóvel. Os mais novos entregam o aparelho antes de dormir. As roupas são assinaladas e o quarto tem de estar minimamente arrumado. Todos recebem semanada, de acordo com a idade, mas podem ser penalizados ou recompensados mediante o comportamento.
As aulas e as actividades extra-curriculares ocupam praticamente o dia dos jovens, que ainda têm salas de estudo na instituição. Durante a semana não há computador nem playstation, passatempos disponíveis ao fim- -de-semana, quando também são realizadas saídas em grupo para “aproveitar as ofertas culturais que a cidade disponibiliza”. “Mas deixamos sempre um espaço de verdadeiro tempo livre, para cada um fazer aquilo que quiser”, diz Rita Cabral.
O trabalho desenvolvido pela instituição é individual e dirigido especialmente a cada jovem. “Temos muitos casos de sucesso. Tentamos educar estas crianças conforme a evolução dos tempos e temos cada vez mais miúdos que escolhem ficar connosco após os 18 anos, o que permite um trabalho de continuidade e aproveitar mais as oportunidades que têm em contexto institucional. Quando optam pela saída já o fazem de forma organizada”, assume a directora.
No entanto, a “institucionalização nem sempre tem os mesmos resultados”, admite Rita Cabral, até porque as pessoas são diferentes e estão em fases distintas da vida. “Temos situações em que os jovens assim que fazem os 18 anos abandonam a casa e saem completamente desorganizados. Isto é altamente frustrante. Vemo-los crescer. Passo mais tempo com eles do que com a minha filha. Os sucessos deles são os meus e os meus são os dele. Partilhamos tristezas e alegrias”, assume. E salienta que sente “muito orgulho em fazer parte do crescimento destes jovens” e “poder fazer a diferença na sua vida, nem que seja de uma parte pequenina”.
Acolhimento tardio impede sucesso
A adopção não é o objectivo do acolhimento residencial mas sim o retorno à família, o que raramente sucede, prolongando-se a vida dos jovens na instituição, que lhes proporciona as melhores oportunidades e uma vida normal tanto quanto possível. O tribunal decreta a institucionalização quando tudo antes falhou.
Conceição Lopes, directora do Lar de Santa Isabel, lamenta que, muitos casos, cheguem tão tarde à institucionalização, o que impede um trabalho de sucesso. “Há 20 anos, tínhamos 50% das crianças no 1.º ciclo. Agora, quase não aparece ninguém nessa faixa etária, o que significa que o acolhimento está a ser feito muito mais tarde e o sucesso do trabalho desenvolvido junto destas jovens não é nem de longe nem de perto o mesmo do que quando o percurso é feito desde mais pequenas”, critica.
Admitindo que a sua posição nem sempre é bem aceite, é a experiência de mais de 20 anos no acolhimento de crianças e jovens que explica a opinião da directora: “Atrevo-me a dizer que uma jovem que chega com 17 anos só vem para aqui para cumprir calendário e contar os dias que faltam para fazer 18 anos e ir embora. Dá-se demasiado tempo ao adulto em detrimento do tempo da criança. A chegada mais cedo permite que se possa delinear um projecto de vida que vão conseguir concretizar. As jovens que temos a terminar uma licenciatura não chegaram com 16 ou 17 anos”, sublinha.
A directora discorda ainda quando ouve a ‘satisfação’ com que se anuncia o número de jovens que foram desinstitucionalizados. “Não me preocupo nada com esse número. Preocupa-me em saber o que é feito dessas crianças. O que importa se saíram 40 ou 50 e estão sem eira nem beira? O importante não é o número que sai, mas como saem, o sucesso da saída. Tem de se mostrar que valeu a pena e que conseguiram quebrar o ciclo.”
Trinta cinco meninas – de uma lotação de 40 – vivem no edifício do Lar de Santa Isabel quase no centro da cidade de Leiria. Com quatro andares, três dos quais destinados a quartos, a lotação está quase sempre esgotada, o que dificulta um trabalho mais personalizado.
O objectivo desde o primeiro dia é dotar as jovens de “competências para serem autónomas”, o que nem sempre é fácil numa estrutura tão grande. Mas nem por isso muito trabalho deixa de ser feito e é reconhecido mais tarde por quem passa por esta casa. Carolina Pinheiro olha para trás e afirma: “o tempo passou a voar”.
Chegou à instituição com 14 anos e a integração não foi fácil. A rebeldia marcou a sua adolescência. “Cheguei a fugir, mas passava-me rapidamente. Era parvoíce da idade e voltava sempre. Esta era a minha casa. Tive nove negativas, recados na caderneta… Sentia muita revolta, mas à medida que fui crescendo ganhei maturidade e percebi as oportunidades que tinha”, reconhece.
Compreendendo o trabalho difícil das técnicas, Carolina afirma que a institucionalização é difícil para os dois lados. “Não somos ensinados a lidar com as emoções e o cordão umbilical é forte. Por muito má que seja a nossa família, é a nossa. Não é fácil chegar a uma casa com pessoas que não se conhece e ter de cumprir regras”, confessa.
No entanto, agradece a quem nunca desistiu de si. “Sei que a Dra Conceição queria dizer que sim, mas tinha que dizer não e hoje é bom ver que quando me estava a afundar puxavam- me para cima e explicavam que aquele não era o caminho.”
Afirma que está bem resolvida com a sua situação e que nunca escondeu que era uma ‘menina do lar’. “As pessoas são histórias e eu tenho a minha. Por que razão hei-de ter vergonha da minha história?”
Talvez por tudo isso, Carolina soube esperar pelo momento certo para se autonomizar. “Quando tomei a decisão, há dois anos, estava consciente de que era o momento certo. Já trabalhava e estudava, mas claro que há sempre um choque e o friozinho na barriga, por saber que quando saísse não podia voltar”, diz.
Os primeiros tempos em que viveu sozinha – chegou a partilhar casa com colegas da universidade – era o entusiasmo de poder cozinhar o que lhe apetecia e às horas que queria, mas depressa surgiram as preocupações, sobretudo, com as contas para pagar e garantir que o dinheiro não falte.
Sem contacto com os pais, a jovem tem como família os padrinhos, um casal que a acompanha há vários anos. “Estou muito orgulhosa do meu percurso. Tive muita força, pois ninguém passa de ter nove negativas para entrar em Engenharia na universidade, mas também estou muito grata às pessoas da casa.”
Juliana Santos, 22 anos, está no 3.º ano da licenciatura de Marketing, na ESTG. O Lar de Santa Isabel é a única casa que recorda. Entrou com um ano e meio, pelo que é a “única realidade que conheço”. A sua vida foi construída numa casa com 40 pessoas. “Sempre me senti uma rapariga normal, sem qualquer estigma. Tive oportunidades que nunca teria tido lá fora. Ninguém tem uma vida ou história igual e só temos de relativizar as coisas”, afirma.
Juliana vê vantagens em ter crescido num lar, nomeadamente, a possibilidade de ter apoio escolar ou psicológico quase sempre disponível. Ao longo da vida foi construindo o seu pé de meia, que procura agora engrossar com o dinheiro que ganha no seu part-time. O objectivo é estar preparada para o momento de saída, que ainda não sabe quando será. “Sinto-me bem aqui. Vai ser natural”, confia.
A faixa etária de acolhimento no Lar de Santa Isabel é entre os 6 e os18 anos, extensível até aos 25 anos se estiverem a estudar. O dia-a-dia numa casa, que por dentro é muito maior do que aparenta por fora, é preenchido com todas as actividades de crianças e jovens da mesma idade. Escola, estudo, andebol, basquetebol, atletismo, escuteiros, tarefas domésticas e outro tipo de apoio, se for necessário, fazem parte da rotina.
Além de tudo isto, há ainda um trabalho junto das jovens para que sejam desenvolvidas competências que ainda estão em falta, que podem ser cumprimento de regras ou relacionamento interpessoal, por exemplo. “Nem sempre conseguimos trabalhar estas questões de uma forma muito individualizada, porque há pouco tempo para isso, mas vamos tentando que a equipa multidisciplinar actue”, afirma Patrícia Pinhal, assistente social.
Conceição Lopes confessa que é “gratificante perceber que as jovens saem” com sucesso. Mas, também é “muito desgastante” quando a saída é precipitada, por vezes por capricho. “Tira-nos noites de sono.”
As saídas com sucesso “enchem o coração” e há jovens que estão a entrar na sala de partos e ao telefone com Conceição Lopes.
Patrícia Pinhal acrescenta que as jovens têm, por vezes, uma ideia “irrealista” da liberdade e esquecem-se da responsabilidade que também terão sobre si. “Digo-lhes muitas vezes: quando fores à discoteca, pagas como o quê?”. Com a saída a mesada desaparece, assim como todo o apoio da casa. Ficam mesmo por sua conta, sem poder regressar se algo correr menos bem.
Assumindo-se como uma instituição aberta, Conceição Lopes garante que as jovens têm liberdade – sempre mediante autorização – de almoçar fora, trazer colegas para estudar ou realizar trabalhos de grupo, sair à noite (dependendo da idade) e até participar na semana académica (estudantes universitárias).
“Tentamos que sejam iguais às outras, com liberdade contida”, conclui Patrícia Pinhal.
Incompatibilidades
Sistema empurra problemas mentais para lares residenciais
Muitas crianças que chegam ao acolhimento residencial sofrem de problemas do foro mental. Os lares não são o lugar indicado para estes jovens, que obrigam as instituições a darem a melhor resposta possível, sobretudo, nas idas a consultas de pedopsiquiatria. “Temos situações de comportamentos mentais, auto-lesivos, que são difíceis de lidar. Por vezes nem sabemos bem como agir. Não somos o sítio certo”, assume Conceição Lopes, directora do Lar de Santa Isabel.
Patrícia Pinhal, assistente social naquela instituição, acrescenta que, apesar do acompanhamento psicológico existente e a ida a consultas de pedopsiquiatria, o espaço para estes jovens “devia ser mais contentor, mais pequeno e mais terapêutico, onde pudessem usufruir de outros acompanhamentos” que não existem no lar.
Segundo Conceição Lopes, esta é uma situação que se passa a nível nacional, com “situações muito complicadas”. “Faltam estruturas especializadas para esta questão da saúde mental e os lares não são de todo o local adequado. Tinha de ser um espaço com equipas maiores e um número de jovens mais reduzido e não é isso que acontece”, reforça.
Rita Cabral, directora do internato masculino, também reconhece que têm chegado muitos jovens à instituição com inquéritos tutelares educativos, já com “comportamentos pré e deliquentes”, “com consumos” e outros com “necessidades educativas especiais”.
Estes casos complicam o trabalho desenvolvido pelos técnicos da instituição, que procuram encontrar “outra forma de os motivar”. E estes contextos levantam outra questão, adianta Rita Cabral, que lamenta que “não se pense fora da caixa”.
“Muitas vezes, estes miúdos querem trabalhar e o nosso sistema não está preparado para lhes prestar resposta. O sistema educativo mastiga estes miúdos e quando os deita fora eles têm 18 anos e não têm hábitos nenhuns de concentração, de horários nem de respeito por regras. É necessário repensarmos como ajudar miúdos com 16 ou 17 anos, que têm historial de reprovações.”