No final de Setembro, Layla Martínez esteve em Portugal, a convite da editora Antígona, para apresentar em Lisboa, Paradela do Rio, Mértola e Leiria (na livraria Arquivo) o romance de estreia, Caruncho. Um artigo de Março no diário Público chama-lhe “fenómeno literário em Espanha”. Em Abril, no Expresso, o crítico José Mário Silva atribuiu-lhe quatro estrelas. Entretanto, a obra foi incluída na lista de pré-candidaturas aos National Book Awards, um dos prémios mais importantes atribuídos nos Estados Unidos.
Opressão, patriarcado, a invisibilidade das mulheres, pobreza, desigualdade social, os crimes do franquismo e a guerra civil espanhola são temas que atravessam o primeiro livro de ficção de Layla Martínez, que nasceu em Madrid, Espanha, em 1987. É, por outro lado, um texto que se inspira em crenças populares e na história da família materna, oriunda da região de Cuenca. Layla Martínez estudou Ciência Política e co-dirige a editora espanhola Levanta Fuego.
Caruncho tem vários temas nas entrelinhas. Qual é, para si, o mais importante?
Uma mistura, creio, entre a violência de classe e a violência de género. As duas coisas que afectaram as mulheres da minha família, que era o que eu queria contar. Elas, foi o que viveram. Queria escrever sobre a minha avó e a minha bisavó, e, também, a história da casa, que é outra personagem.
São temas do passado, mas, também, de hoje, muito actuais?
Eu queria que a personagem da neta contasse um pouco isso: que não acabou, que não era algo que se passasse só na geração da minha avó ou da minha bisavó, continuou acontecendo. Esta ideia de que tudo se repete, de que trabalhas para o mesmo para que trabalhou o teu pai, o teu avô, porque as coisas não mudaram tanto. E, também, esta ideia da ferida que permanece aberta, que não se fechou, que não se curou. Os traumas. Nós, que viemos de famílias da classe trabalhadora, de famílias pobres, só herdamos traumas, não herdamos terras ou casas. Só feridas que se repetem e traumas que se repetem, até que se solucionem colectivamente, porque isso não tem uma solução individual. As duas personagens estão muito sozinhas, não estão na política. Então, a solução delas é a que aparece no final do romance. É a vingança. Como não tiveram justiça, só lhes resta vingarem-se. É a única forma que encontram de fechar essa ferida para sempre. Não têm como unir-se com mais gente, na aldeia.
Vivemos dias em que as pessoas estão mais isoladas e menos agindo colectivamente?
Na geração dos meus pais, existia mais a ideia de militar num partido político e creio que o capitalismo, agora, nos separa muito.
Há menos militância?
Em Espanha, o feminismo, por exemplo, tem tido muita importância nos últimos anos. Talvez tenham menos importância os sindicatos, os partidos, mas há movimentos sociais, que não são o mesmo, não são tão massivos, mas estão a desempenhar agora esse papel. Com a violência de género, o feminismo fez muito.
As mulheres estão hoje, ainda, entrincheiradas pela invisibilidade?
Creio que, isso sim, mudou. No romance, a casa é como uma armadilha, porque, para as mulheres, foi isso durante muito tempo. Não só pela violência de género. As mulheres da minha família, que trabalharam muito como criadas, iam trabalhar para outras casas, como internas. A casa não significava descanso, não significava um sítio seguro, pelo contrário, era um sítio de trabalho e de violência, de perigo. A casa como um sítio onde te proteges depende da tua situação, depende da tua classe social, depende do teu género.
Mas hoje é mais fácil para as mulheres se afirmarem.
Sim, avançou-se muito. Ocupam mais o espaço público. O que se passa é que as criadas internas, agora, em Espanha quase todas são imigrantes e além do mais não têm papéis. Ou seja, se antes era a violência de classe e de género, agora são pessoas racializadas. E estão a sofrer a violência que sofreu a minha avó, a mesma, nas casas em que trabalham.
As suas personagens estão condenadas? Ou têm esperança?
Bom, creio que não há muita esperança no livro. Escrevi-o com muita raiva, muito zangada, acho que se nota. As personagens estão muito zangadas, também. Insultam-se, mentem. Penso que tem a ver com como eu estava quando o escrevi.
Com a sua experiência pessoal?
De quando descobri a história de como foi construída a casa da minha família, que é a que aparece no livro. O meu bisavô tinha mulheres, que prostituía, e, além do mais, maltratava a minha bisavó. Então, quando lhe construiu a casa, como uma prenda de casamento, claro, estava a construir-lhe uma armadilha. Primeiro, porque a construiu com o dinheiro da exploração de mulheres e também porque é uma armadilha para a mulher com quem se casou.
Que significou para si essa descoberta?
É um tabu. O meu bisavô, não se fala dele, porque, além disso, mataram-no na guerra civil [de Espanha] e durante muito tempo não se sabia onde estava, esteve desaparecido. Só há uma foto dele e está num sítio da casa muito curioso, porque está na parede, mas quase no tecto. Normalmente, não a vês, tens de levantar o olhar. Está como que vigiando tudo, desde cima. E, claro, a minha avó nunca quis falar do seu pai e do que fazia. E a minha bisavó também não falava muito. Ficou viúva com 32 anos e levou o luto até que morreu, com setenta e muitos. Fazia-o porque não queria voltar a casar-se, não queria mais nenhum homem na sua vida. Mas era só o que dizia. Toda essa história familiar, que eu descobri pouco antes de começar a escrever Caruncho, foi como um soco. Uma prima da minha avó levou-me à casa onde o meu bisavô mantinha as mulheres.
E agora que escreveu?
A minha avó zangou-se. “Estás a contar a roupa suja da família”. Não pus o nome da aldeia, um pouco, para a proteger, apesar de que eu desconhecia que ia ter tanta repercussão. Era o meu primeiro romance. Todas as traduções que teve… chegou à Coreia, por exemplo, e de repente agora na Coreia sabem a história da minha família. Nunca pensei que fosse chegar tão longe.
Outro tema do livro é o sobrenatural. Ficou no passado ou está presente em alguns lugares e comunidades de Espanha?
Incluí essa parte porque a minha avó dizia que tinha visto a sua mãe na casa, na escadaria. Então, sempre que passamos pela escadaria… dá medo a todo o mundo. Ninguém quer ficar a dormir sozinho nessa casa, nem, sequer, o meu avô. Tem a ver com a cultura da morte nessa região. Os aparecidos, como lhes chamam ali, são familiares que te aparecem para entregar uma mensagem, que pode ser algo que esteja pendente, mas às vezes apenas para dizer “estou bem, não se preocupem” ou para pedir que rezem por eles. É bastante comum, como toda a parte da magia, dos feitiços, que está muito misturada com o catolicismo. Pedir a um santo para te curar de uma doença ou pedir [para ser resolvido] um mau olhado, não há diferença. Perdeu-se muito, é mais a geração da minha avó. Inclusive, há coisas que estão no livro que ela se recorda de, em pequena, ver a mãe dela fazer, mas que ela já não fez. Estarem no livro é uma forma de as conservar.
A situação das mulheres no livro é uma condição de desigualdade, logo que nascem?
Essa região foi especialmente castigada na guerra civil, porque foi contra [as forças da] ditadura até ao final. Caiu nas mãos [do exército] de Franco mais tarde do que Barcelona e do que Madrid. Então, quando a ditadura triunfou, chegou ao poder, a repressão foi especialmente dura ali. Tiraram-lhes as terras (isso aconteceu em mais sítios) e a desigualdade tornou-se mais forte, porque tinha também motivos políticos. Mandaram-nos para a prisão, executaram-nos, tiraram-lhes o pouco que tinham. As classes sociais separaram-se mais, os ricos dos pobres. Os que eram ricos antes, ficaram mais ricos. Os ricos eram próximos da ditadura e os pobres… pois, claro, cadeia. Uma das coisas que eu queria no livro era que a família que aparece, os ricos, queria que estivesse [no romance] o apelido deles. Esse, sim, é um apelido real. O próprio livro converteu-se, também, numa vingança, porque eles, o pai, foi ministro da Justiça de Franco, era gente muito importante. Não tiveram de pagar pelo que fizeram, não houve nenhuma reparação, quando chegou a democracia. A lei da amnistia, que em teoria era para libertar os presos políticos da ditadura, também a aproveitaram para que não se pudesse julgar nenhum dos responsáveis. Todos os montes ao redor da minha aldeia estão cheias de gente que foi executada ali, guerrilheiros, sem julgamento, sem nada, então, já eram fantasmas, porque não tiveram, sequer, um reconhecimento simbólico. Escolher o género terror para contar a história também teve a ver com isto.
Mudou alguma coisa?
Não mudou muita coisa. Além disso, os Jarabos [a família rica em Caruncho] continuam a ser os donos das terras. Já não vivem ali, mas continuam a ser os donos. Houve um estudo na cidade de Florença sobre as famílias ricas e eram as mesmas do Renascimento, ou seja, 500 anos sendo os mesmos, não houve mudança social.
E porque é assim?
Pelo capitalismo, que mantém esta divisão de classes.
Pode fazer-se algo?
Penso que sim, mas tem de ser algo colectivo, uma mudança social, uma revolução. Não sei se a palavra revolução soa demasiado forte ou muito romântica, mas, sim, necessitamos de uma mudança.
O que é mais necessário mudar?
Em Barcelona, onde vivo, participo num colectivo de luta contra as alterações climáticas, contra a crise climática. Também aí é evidente que o capitalismo fracassou. Julgo que a mudança política será diferente. Agora não é tanto tomar um estado, provavelmente tem de fazer-se de outra maneira e creio que se fará. Não sei se nós o veremos, mas chegará.
Escrever é um acto político?
Sim, creio que sim. Mas, também é verdade que não acredito que a literatura mude tanto as coisas. Pode ajudar, sobretudo, a criar um clima favorável, uma opinião colectiva favorável, mas, no final, o que muda as coisas são os actos políticos. Escrever ajuda, mas não sei se é demasiado dizer que é um acto político em si mesmo.