Há uma linha que não se pode pisar. Pais que agridem árbitros, pais que agridem outros pais, pais que pressionam treinadores, pais que pressionam os filhos, treinadores que não metem os miúdos a jogar, miúdos que abandonam precocemente a prática desportiva.
As últimas temporadas têm sido ricas em comportamentos inadmissíveis em jogos dos escalões mais novos, onde o mais importante deveria ser o divertimento e não tanto a competição.
Os problemas estão de tal forma disseminados que é difícil apontar clubes mais problemáticos do que outros. São dificuldades, umas mais recorrentes do que outras, que preocupam – e muito – toda a pirâmide do futebol português.
A situação parece estar a ganhar dimensão e Carlos Martins, vice-presidente da Associação de Futebol de Leiria, achou que tinha de ser feita alguma coisa em defesa do jovem praticante.
E foi assim que, em 2015/16, começaram a ser dados os primeiros passos do Saber estar no futebol, um programa “absolutamente inédito” no País e que recentemente recebeu o Prémio de Ética Desportiva do Plano Nacional de Ética no Desporto (PNED).
“Estavam a aumentar os comportamentos inadequados, de quase todos os agentes, mas mais do público. Por isso, a Associação de Futebol de Leiria decidiu lançar este projecto. Um dos objectivos é apoiar o atleta jovem e tentar que não abandone precocemente, qualquer que seja a razão. Os miúdos chegam a um ponto em que já têm a pressão na escola, de serem aceites socialmente, das redes sociais e se no desporto que eles mais gostam também sentem pressão, então tudo se torna mais complicado”, explica o mentor do projecto.
“Sou professor e costumo dizer que, nestas idades, os miúdos são uma esponja. Interagem com a família, colegas, adversários, treinadores, árbitros e directores, e se estão a aprender com maus exemplos, não estamos a formar bons desportistas”, adianta Carlos Martins.
“No futebol podem aprender a respeitar o outro e as normas da sociedade, podem aprender a ganhar, mas também a perder.” E meteram mãos à obra, à procura de pistas que indicassem o melhor caminho a seguir.
Realizaram sessões com treinadores e dirigentes de 36% dos clubes e distribuíram 7.500 livros produzidos pela Associação relativos ao código de ética e ao cartão branco, que premeia atitudes de fair play. Foi feito um inquérito anónimo a treinadores e dirigentes e, a partir das sugestões, “começou a tornar-se evidente de onde vinham os problemas”.
“Uma das causas que está bem retratada é a chamada campeonite. São os próprios pais, de miúdos de 7, 8 e 9 anos, idades em que não existem classificações, que fazem essas tabelas, situação que também acontece em alguns sites e jornais”, explica o responsável.
De norte a sul
A época 2016/17 começou com a apresentação do projecto à Federação Portuguesa de Futebol, que logo demonstrou vontade em apoiar. Acompanhado pelo psicólogo, pai e antigo treinador Fernando Ferreira, Carlos Martins realizou mais de duas dezenas de sessões de apresentação do projecto em clubes de norte a sul do distrito. No total, 521 encarregados de educação estiveram presentes nessas sessões.
“Agora é importante estabelecer pontos de diálogo e reflectir em conjunto. Fala-se de comportamentos, mas ninguém faz o que quer que seja. Estamos a tentar estabelecer pontes e moer preconceitos. Todos temos a aprender uns com uns outros. Ouço os árbitros e entendo o que eles querem dizer, os treinadores também e os pais também. Sabemos que o conflito é latente, mas não o eliminamos porque não nos sentamos para conversar”, diz Fernando Ferreira.
“Não estamos ali para dar lições de moral, mas para alertar”, sublinha Carlos Martins, que sabe que os encarregados de educação que estiveram presentes nas sessões não são, na sua esmagadora maioria, os mais problemáticos dos 24 clubes por onde passou. “Vão os mais interessados, mas temos a perfeita noção de que não vai mudar comportamentos de um dia para o outro. É apenas uma semente que esperamos que germine.”
[LER_MAIS] “A maioria dos pais queria saber o que podiam fazer para que os filhos se sentirem bem no desporto, mas houve momentos muito curiosos, como o pai que queria que o filho fosse guarda-redes, como ele tinha sido, ou a dificuldade que alguns têm em perceber que os resultados, nestas idades, não são o mais importante”, diz o dirigente.
“É importante não esquecer que os miúdos aprendem por modelação e os primeiros modelos são os pais. Se os comportamentos não são bons, como gerimos a situação?”, questiona o psicólogo.
“É engraçado que para os miúdos, nos escalões mais baixos, o mais importante é estar com os amigos, joguem ou não. Para os pais, é uma doença, têm de jogar. Não encontrei pais que me dissessem que estavam tranquilos relativamente a isso”, salienta Fernando Ferreira. “Quando se fala de futebol de formação é importante saber do que estamos a falar: se o resultado, naquele clube, vale muito ou pouco, e isso é importante para os pais perceberem onde estão a colocar o filho.”
Prémio de excelência
Na temporada que se iniciou, o programa arranca de forma definitiva. Carlos Martins e Fernando Ferreira já falaram com os árbitros e irão continuar a fazer sessões pelos clubes do distrito.
Mas a grande novidade é o prémio Clube de Excelência do Saber estar no futebol, ao qual concorrem os 24 emblemas, 14 de futebol e dez de futsal, que acolheram as sessões. Num universo de 130 clubes inscritos na Associação de Futebol de Leiria, “ainda há muito caminho a percorrer”, mas já é uma “amostra significativa”.
E o que conta para esta classificação? A própria disciplina da equipa dentro de campo, a criação de um código de conduta pelos clubes e a promoção de acções próprias relativas a esta temática. É, no fundo, “uma tentativa de mudar mentalidades”. Agora, “se vai dar resultado ou não, é outra conversa”, como admite Carlos Martins.
A Federação Portuguesa de Futebol, pelo menos, está a gostar das iniciativas implementadas pela Associação de Futebol de Leiria. Em 2017/18 já irá aplicar nas suas provas o cartão branco e instituir uma tabela de fair play para os clubes.
“No final da temporada iremos avaliar se o caminho é o mais correcto e se deu alguns frutos. Como? Se, nestes clubes cobaia, o comportamento de treinadores, jogadores e familiares não melhorar, então este não será o caminho certo. Não sou utópico a ponto de pensar que vai mudar tudo de um dia para o outro, mas acredito que, pouco a pouco, tudo pode mudar.”
Clube, escola e família
Integrado no programa Saber estar no futebol vai arrancar, já esta temporada, a criação do Gabinete de Apoio Psicopedagógico, que tem como principal objectivo promover o bem-estar psicológico a nível desportivo e apoiar o atleta a nível pedagógico. Para Fernando Ferreira, este é um ponto fulcral de todo o projecto.
“A gestão do calendário escolar é fundamental no futebol de formação. Devemos procurar o desenvolvimento integrado e não resolver apenas as questões dos comportamentos e a gestão de expectativas. Fala-se muito no abandono, mas a verdade é que a criança, a determinada altura, tem de conciliar escola, desporto, família, treinadores, amigos, colegas, treinos, competição e testes. Começámos a pensar numa tríade: escola, família e clube. E será que o clube fala com a escola? E será que os treinadores conhecem os directores de turma?”
A Associação de Futebol de Leiria lembrou-se então de criar o tal gabinete “Damos formação e apoio aos clubes para criar um técnico mediador de forma a fazer uma ponte entre o clube, a escola e a família. Se os miúdos têm dificuldade na gestão do tempo, por que não haverão os clubes de ter espaços para os miúdos trabalharem, estudarem e fazer os trabalhos de casa? Saem da escola, vão para os clubes e os pais ficam descansados. Temos de motivá-los para estudar, porque muito poucos poderão fazer vida do futebol. Infelizmente, vive-se com expectativas demasiado altas.”