Guardo, da infância, os gritos estridentes de dor dos porcos quando o punhal lhes era metido brutalmente no coração. Procurava afastar-me o mais possível para os não ouvir, mesmo sabendo o que estava a acontecer. Era assim. Não se poupavam os animais da morte violenta, apesar da vida pacata que levavam, alimentando-se devagarinho, com aquilo que a terra e os donos lhes davam.
A matança era uma celebração que reunia a família, trazendo fartura, com a arca e o fumeiro cheios para o ano todo. A criação tinha um propósito. Mal ou bem, era sustentável, mas a violência contra o animal não se descurava. E depois havia quem matasse ou agredisse os animais só porque sim ou porque não sei quê. A cobra atravessa-se na estrada – Zás! O sapo faz chichi pelos olhos e ainda nos vai envenenar – Zás! O cão mordeu? – Toma lá, a ver como elas mordem a sério. Queimar um gato vivo? – Sim, porque é tradição. Dar marretadas nas cabeças dos frangos? – Sim, porque ganha quem matar primeiro.
Os tempos são outros, a consciência é outra. Quer-se acreditar que estamos (muito discutivelmente) mais evoluídos no respeito aos animais e à convivência harmoniosa com eles. (Cães presos, pássaros em gaiolas, animais domésticos abandonados, caça desportiva, touradas … são discussões para outras núpcias).
Olga Tokarczuk, autora polaca, nobel da literatura em 2018, é uma defensora convicta dos direitos dos animais, sem papas na língua. Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos é um romance que desconserta profundamente no que a este tema diz respeito. Tokarczuk colocou no livro o seu sentido ativista e protetor dos animais e temperou-o com mordacidade, terror e vingança, mas também com doçura e poesia.
Entre as orientações dos astros e o aparecimento de vários caçadores mortos, cria-se uma investigação viciante. O romance reivindica justiça e põe-nos inevitavelmente ao lado de cativante Janina Duszejko, uma professora reformada solitária, na busca de respostas. Parece-nos que é personificação da própria Olga, amiga dos animais, e que os descreveu no seu discurso do Prémio Nobel como “criaturas misteriosas, sábias e autoconscientes, com as quais sempre estivemos ligados por um vínculo espiritual e por uma semelhança profundamente enraizada”.