Ana Marques Gastão [AMG] (n.1962) é poeta, ficcionista, crítica literária, ensaísta, e coordena, desde 2009, a revista Colóquio/Letras da F. C. Gulbenkian. Escreveu Tempo de Morrer, Tempo para Viver (1998); Terra sem Mãe (2000); Três Vezes Deus (2001), em coautoria com A. Rego Chaves e A. Silva Carvalho; Nocturnos (2002); Nós/Nudos – 25 poemas sobre obras de Paula Rego (2004, que ganhou o Prémio Pen Clube); Lápis Mínimo (2008); Adornos (2011); L de Lisboa (2015); O Olho e a Mão (2018), com S. Nazar David e Oníricas (2023).
É ainda autora da antologia A Definição da Noite (2003) e do livro de ensaios As Palavras Fracturadas (2013). Tem poemas traduzidos em várias línguas. Organizou o livro de entrevistas O Falar dos Poetas (2011) e editou o volume de ensaios de Ana Hatherly, Esperança e Desejo – Aspectos do Pensamento Utópico Barroco (2016), bem como Tisanas (edição e posfácio, 2024).
Advogada, foi jornalista cultural, durante mais de 20 anos, no Diário Popular e no Diário de Notícias. É investigadora do CLEPUL da Universidade de Lisboa e consultora da cátedra Ana Hatherly da Universidade da Califórnia, Berkeley.
A Mulher sem Pálpebras (ficção) foi publicado em 2021, e obteve o Prémio da Sociedade Portuguesa de Autores-Literatura para a Melhor Ficção Narrativa. Dominando uma profusão de géneros e tipos de texto, para AMG, nesta nova ficção, o ato de escrever é antecipação, projeção no futuro. A narrativa poética, de pendor alegórico pela realidade-outra (opus cit.: 16) a que alude, é, simultaneamente, uma novela-ensaio. Conduz o leitor através de tradições mitológicas, filosóficas, alquímicas, literárias, acompanhando o percurso espiritual da personagem – Libbie ou Libbie-Emília, de seu nome primeiro – a escrever o livro de existir (18), o livro por vir dos insatisfeitos com o mundo onde habitam os seres-máscara que somos, personagens de uma peça de teatro dividida em actos (89). Talvez seja esse o nosso drama…
Dividido não em partes ou capítulos, mas em X Actos, remete para uma ação dramática-trágica, que evoca as “estações” da Via-Sacra. Com toda a simbologia inerente ao número, os dez atos são também trajetos da viagem interior de Libbie. Com raízes no nosso imaginário literário e cultural, o V Acto de A Mulher sem Pálpebras traz à memória a decisão tomada pela personagem e inicia a viagem espiritual que intitula a ficção. Há um antes e um depois deste momento iniciático:
Largou as pálpebras dentro dos livros poisados na cadeira de baloiço e ficou a vê-las mover-se na mansidão da tarde. Tinha-as arrancado com o espírito da infância. Deixou-as lá em linha de fuga, mais fio que tubérculo, fendas angulosas, côncavas. Deste modo poderia sentir a realidade atirada ao rosto. Talvez assim tudo se eternizasse com o fim da alternância entre o abrir e o cerrar dos olhos […] Vejo infinito sem parar. (55 e 58)
Verbalizando o não-tempo e a eterna roda da vida, A Mulher sem Pálpebras vive na descontinuidade, desenha o percurso de dissolução de Libbie, alicerçando-se numa linhagem de autores, habitantes da memória em focos de luz intensa: Orpheu, nas pálpebras-Eurídice (80), Virginia Woolf em Mrs. Dalloway (38), Platão e Diotima (14), Nietzsche e Zaratustra (41), Jung, Wittgenstein (79-80), Safo (82), Clarice Lispector e A Paixão Segundo G.H. (34), Proust na pintura de Elstir, com intensa luz impressionista (69), Dante e os círculos infernais, mas também Schubert, as sete rosas de Celan, Hölderlin e Rilke com os seus Anjos e a impermanência de tudo (33).
É um texto difícil e duro, alegoria clara da tragédia de ver demais; daí que só a cegueira final e voluntária de Libbie, ao arrancar as meninas do olho, lhe traga a paz possível:
Em segredo, desliga-se o interruptor da treva. (114)