Não é surpresa a minha perseverança na leitura da poesia de Carlos Lopes Pires [CLP]: sobretudo porque cada novo livro me surpreende de uma forma diferente (o que não é tarefa fácil, se considerarmos a profícua e qualitativamente reconhecida dimensão da obra literária – 32 volumes antes deste – bem como a minha respiração/leitura de alguma da nova produção/criação…).
Não ouvi a análise de Graça Sampaio (nem a música que terá emprestado novas interpretações às palavras da poesia), durante a sessão de apresentação, mas fui bafejada com o esmero gráfico da edição da Hora de Ler, resultante da primorosa ilustração de Fulvio Capurso. Ora, se já desde 2014 Fulvio vinha acompanhando a poesia de CLP com o seu traço, neste novo livro a sua melancólica e minimalista figuração – esculturas; fotografias; aguarelas a sépia; cenários em processamento… – transforma-o no segundo autor do livro, pois é impossível ler os poemas e ficar indiferente à interpretação que as ilustrações induzem no leitor inocente. De algum modo, sinto que o dicionário mudou; e eu, que também respiro imagens, duvido que a minha linguagem pouco técnica consiga falar delas, além de breves referências emocionais e nada objetiváveis. Porém, julgo conhecer o perfeccionismo de CLP com a sua obra, e creio que terá sido um dos efeitos pretendidos (as ilustrações ocupam a página nobre da direita; os poemas a da esquerda): libertar a respiração de cada leitor.
Liberta, atrevo-me a dizer que mesmo a voz que ouvimos/lemos/respiramos é outra que não a do ‘sujeito poético’. Justifico-me: o poema escolhido para figurar na contracapa é o último do volume, e o único a apresentar um título – ‘aquele que vive pendurado na parede do meu quarto’ (p.73) – e talvez deva ser lido como uma das chaves simbólicas. Jesus, o ícone, diz ao poeta (‘diz-me’) para se vir ‘pregar’ com ele, sem preocupações: ‘o mundo é a fingir // e quando se morre / é que se nasce’. Assim se compreenderia o título da obra – a crucificação segundo jesus – e que a voz do poeta seja a de um singular apóstolo, a quem calhou em sorte ouvir as palavras de jesus (crucificado como ele) e usar a primeira pessoal do singular para o reproduzir. Daí que a epígrafe inicial explique (nas palavras de quem? do poeta?) a síntese dos 30 poemas:
“jesus não veio salvar ninguém, e ainda menos a nós. o que jesus fez foi uma escolha ética: o caminho do bem. tudo o resto, verdadeiro ou ficcionado, decorreu da integridade da escolha que fez na sua vida // não salvou ninguém, mas pode ter salvado Deus” (p.9)
A epígrafe contém e determina a autoridade interpretativa da nossa respiração e aceita usar a maiúscula na palavra deus, facto inusitado na obra de CLP, com poucas capitulares nos nomes próprios.
Parco em ornatos ou vocabulário desnecessário, reencontramos as ilhas poéticas duma estesia muito particular e simbólica: cruz; pobre; manso; nu; rosa; flor; sombra; milagre; mentira; abraço; beijo; desenho; mão; cegueira; ressuscitar; lendas; pregos; sangue; ruínas; lázaro; pilatos; caifás; madalena; pecado; solidão; carrascos; multidões; ausência; silêncio; viagem; princípio do bem. Alguns poemas dirigem-se a quem o traiu, a quem o abandonou, à pecadora que amou, à sua mãe e ao(s) seu(s) pai(s) (o terreno, José, e Deus). Para mim, é este o poema – dirigido a Deus – que faz o encadeamento com a epígrafe:
“esperei ouvir-te cantar / mas não cantaste // no derradeiro instante / esperei que viesses e te mostrasses // que evitasses mergulhar o mundo / em mais uma mentira // agora sei / que tu e eu / só podemos ser um / porque nada se acrescenta na ausência // morro não para salvar / os homens // mas para salvar a ti” (p.66)
Provavelmente, o mais enigmático é o poema final – ‘aquele que é / nobre no coração’ (p.68) – e mantém em aberto o mistério do saber, da viagem da vida, do ‘princípio do bem’.