Fernando Pessoa, entre as suas várias capacidades extraordinárias, estudava aprofundadamente medicina, astrologia e outras matérias para dar mais verosimilhança às personagens e aos heterónimos que criava.
Daniel Day-Lewis, actor, interpreta, ou melhor, encarna as suas personagens, depois de imergir profundamente nelas. Esteve nas minas de petróleo para dar vida ao magnata Edward Doheny, que protagonizou no filme Haverá Sangue (There Will Be Blood), de Paul Tomas Anderson.
Tanto Pessoa como Day-Lewis são seres excepcionais, que tiveram de mergulhar dentro de si mesmos. É uma obsessão que pode ser violenta, mas que depois se revela de uma grande generosidade, enchendo as almas de leitores e expectadores.
A Pediatra, livro de Andréia del Fuego, incorpora uma personagem que faz parte dessa generosidade. Para a construir, a autora leu artigos científicos de medicina e estudou as bulas dos medicamentos.
Assim nasceu Cecília, uma médica pediatra dedicada e pragmática. Até aqui, tudo normal naquilo que se espera da profissão. Mas o que põe as garras no leitor, sem o largar, é a sua personalidade fria e calculista. É que esta pediatra não gosta de crianças e, muito menos, dos pais delas. Abomina o trabalho de doulas, os partos naturais, e outras práticas alternativas, que começa a perseguir porque lhes roubam a clientela. Casada, sem instinto maternal, tem um amante, também ele casado. Quando é ela a fazer o parto do filho dele, tudo muda de rumo. A obsessão pela criança, transforma-a.
As convenções sociais, o papel da mulher, a maternidade, condimentados com mordacidade, cabem todos nesta obra escrita em 2021.
Andréia tem Fuego no nome (pseudónimo) e na velocidade e intensidade que confere à sua escrita. Nasceu em São Paulo, Brasil, em 1975. Em 2010, escreveu o fulminante Os Malaquias, livro que lhe daria o prémio José Saramago no ano seguinte.