O belíssimo volume, de fins de dezembro 2023, que é a 1.ª edição fac-similada da rara e esgotadíssima edição de 1947 do In Memoriam de Afonso Lopes Vieira (1878-1946), resulta de um protocolo entre a Fundação Caixa Agrícola de Leiria e a Direção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), neste caso específico o ADLeiria, como clara e metodicamente explica a Dr.ª Joana Matias na Introdução: “…reedição de obras inéditas e de pertinência literária e patrimonial.” Num texto escorreito e muito claro, a doutora Paula Cândido explana as razões institucionais da ‘Devida Homenagem a Afonso Lopes Vieira’ – “…editar publicações inéditas ou reeditar publicações há muito esgotadas ou já muito raras, de autores de prestígio, consideradas de relevância patrimonial para a construção da identidade cultural da região e, assim, assegurando a transmissão de uma herança, cuja continuidade e enriquecimento unirá gerações.”
Neste complicado e inconstante século XXI, ainda há instituições que fazem sua a missão de preservar as memórias do passado e restaurá-las, para servirem de alicerces sustentáveis do património cultural, uma ‘calda de humanidade’ que faz parte da nossa Tradição e Identidade, e que desejamos que assim continue pelos tempos fora.
Foi-me concedido o privilégio de redigir o breve Prefácio, que está – a partir de agora – à disposição de todos (a Fundação Caixa Agrícola de Leiria se encarregará de fazer chegar exemplares às escolas) para uma leitura curiosa. O conteúdo do In Memoriam fica devolvido aos investigadores, com dificuldades em o encontrar. No prefácio, inverti a linha cronológica e comecei por questionar as razões que permitem que um autor do fim do século XIX e 1.ª metade do XX, como ALV, possa (ou não…) ser atualmente um valor no ‘mercado literário de inconstantes reputações poéticas’, como já em 1944 suspeitava T. S. Eliot, num ensaio dedicado ao tema da Poesia e dos Poetas. Em Italo Calvino, com Porquê ler os clássicos? (1991), percebemos que o querer continuar a ler a obra de ALV – continua a dizer-nos coisas novas – assim como o prova esta reedição do In Memoriam, são razões incontestáveis para o colocarmos nesta ‘bolsa de valores’ como um valor persistente e valioso, ético e moral, esteticamente único.
Enumerei, de seguida, alguns dos colaboradores no volume, sobretudo para salientar a sua diversidade, tanto ideológica, como a pertença a diferentes núcleos artísticos. Desde os conservadores Integralistas Lusitanos até os arrojados revolucionários e opositores do regime como, por exemplo, Aquilino Ribeiro, com todos ALV desenvolveu uma relação de amizade e apreço duradoura e de gratidão. O mesmo se pode afirmar do mundo académico.
Quanto à imponente parte plástica do volume – de que fazem parte alguns dos retratos em vida do escritor, ou das suas casas, por pintores seus amigos (Columbano Bordalo Pinheiro, Roque Gameiro, Raul Lino, Eduardo Malta, António Carneiro, Adriano Sousa Lopes, Alice Rey Colaço, João Carlos), bem como a reprodução de fotografias, arte na qual Lopes Vieira foi um pioneiro – permite ao leitor fazer a imersão num tempo-outro e avaliar criticamente das alterações dos hábitos e tradições e da permanência paisagística e arquitetónica a proteger como património da cultura.
Sobre a ‘bolsa de valores da reputação poética’ de ALV no século XXI, bastante haverá ainda por escrever… Limitei-me a enumerar, em linha cronológica, alguns dos acontecimentos que se seguiram à morte do escritor/poeta, para dar ao leitor um contexto alargado das circunstâncias em que a homenagem a ALV, com mais ou menos interregnos, nunca deixou de se fazer no âmbito da cultura portuguesa. Porém, talvez seja útil referir uma série eclética de ações que fazem do poeta, acompanhando as palavras críticas de Vitorino Nemésio, mais um homem de ação cívica – cidadão do mundo ou o português de Portugal, como o apelidei… – do que um ‘portento’ pela sua obra.
Deixo apenas uma síntese das ações cívicas de ALV que merecem destaque cívico, cultural, humano, ético, identitário, e estão plenamente atuais:
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A defesa da importância vital para a cultura portuguesa e divulgação pelo grande público de escritores essenciais como Camões ou Garrett;
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A intervenção na ‘coisa pública’ através da escrita na imprensa da época;
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O incentivo aos mais jovens escritores e artistas;
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A inauguração dos Serões artísticos em Alcobaça e ensaios sobre os túmulos de Alcobaça e a visão de Lourenço Chaves de Almeida (1944);
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A (re)descoberta da obra de Gil Vicente (Campanha Vicentina, 1914), sua divulgação em várias conferências e a sua adaptação/atualização quer ao ensino quer ao teatro;
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Estudos sobre os Painéis de S. Vicente (1914);
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A capacidade de estudioso meticuloso e rigoroso, com uma edição em 1928 de Os Lusíadas e em 1932 da Lírica camoniana;
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As restituições de obras por todos consideradas perdidas para a cultura portuguesa: em 1922 O Romance de Amadis, em 1924 A Diana de Jorge de Montemor, em 1929 O Romance do Cid;
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Éclogas de Agora, em edição de autor, folheto clandestino de 1935;
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As novas edições de Francisco Rodrigues Lobo: em 1940 Poesias e em 1945 Corte na Aldeia;
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Colaboração em várias homenagens a homens ilustres do seu tempo: Antero de Quental (1896), Guerra Junqueiro (1896), António Rodrigues Sampaio (1906), Latino Coelho (1916), Fialho de Almeida (1917), Eça de Queiroz (1922), Luiz Fernandes (1923), Conde de Sabugosa (1924), Camilo Castelo Branco (1925), Luís Derouet (1928), João Rocha (1929), Teófilo Braga (1929), Gomes da Costa (1930), José de Figueiredo (1932), Delfim Guimarães (1934), Tomás de Mello Breyner, conde de Mafra (1934), Viana da Mota (1938), António Nobre (1940), Francisco Elias (1943), Campos Monteiro (1943), António Sardinha (1944), Paiva Couceiro (1947), Eugénio de Castro (1947), Bernardo Moreira de Sá (1947), Soares dos Reis (1947).
Em último – mas primeiríssimo lugar de destaque – o belo objeto livro que em boa hora podemos voltar a folhear e se deve à Hora de Ler, com o empenho de ‘guardião da memória’ que há muito vem desempenhando o eng. Carlos Fernandes. Atrevo-me a afirmar, assertivamente, que estamos perante um objeto graficamente mais belo – limpo e puro, como ALV gostaria que fosse – do que o original. É nisso que o futuro nos permite investir: usar as modernas técnicas para ‘retirar as manchas’ do tempo… Isto é sobremaneira válido para as imagens que – vejo e creio… – estão nesta edição fac-similada com melhor resolução do que na edição original de 1947.
A minha gratidão a todos por terem devolvido ao futuro esta rara edição.
Que ALV possa vir a ter a sua obra poética também acessível ao futuro e não apenas como uma relíquia: o meu desejo pode ser interpretado como uma prece ou um poema… et pour cause…