Parece que foi há uma eternidade, mas não passaram muitos anos desde que imergimos nos desafios de uma pandemia desconhecida.
As máscaras, o distanciamento social, as limitações rodoviárias entre concelhos… tomaram conta dos nossos dias, sem, então, um fim previsto. Nos tempos da desinfecção, em que o álcool gel era omnipresente, a higiene também se aplicava aos passeios.
Num desses passeios higiénicos, permiti-me descobrir a cidade com mais calma. O silêncio das ruas pouco movimentadas contrastava com o ruído da voz interna: não há transito, mas há pessoas que não têm trabalho, o ar está mais limpo, mas não há máscaras de oxigénio.
O movimento do corpo apaziguava, como podia, as inquietações e os sentidos tornavam-se muito mais atentos.
Casas, jardins, rio, árvores, melros, gatos chamavam a minha atenção nestes percursos orientados pelo GPS do “vamos ver onde isto vai dar”.
Um caixote do lixo transbordava numa rua. Ao lado, havia uma pilha de livros. Parecia que tinham sido deixados de propósito para que alguém os recolhesse. Estariam ali há muito tempo. Aquele não podia ser o seu fim. Resgatei-os. Depois da quarentena e da higienização, dei-lhes atenção: os sonetos de Florbela Espanca e os contos de Antonio Tabucchi coexistiam com os ensinamentos de Dalai Lama.
José Mário Silva, escritor e jornalista, também lá estava, num livro fino, de duas faces: Luz indecisa e Efeito borboleta e outras histórias – prosa de um lado e poesia do outro. Os contos apanharam-me. São diretos, maduros e têm humor. Alerta de spoiler de um deles: o que vai na cabeça do ponta de lança quando tem a baliza à frente? O que pensa o guarda-redes quando o observa? Ambos vivem a mesma ansiedade, a mesma responsabilidade. No final, é a bola que decide o resultado.
Estes contos revelam um olhar astuto sobre a vida humana e põem as acções do quotidiano em perspectivas muito originais. Terá o antigo dono do livro sido, como eu, arrebatado pelo olhar de José Mário Silva?