O novo Conselho de Administração do Centro Hospitalar de Leiria (CHL) foi nomeado no final de Janeiro e passadas poucas semanas já estava a enfrentar a Covid-19. Quais têm sido as principais dificuldades?
No princípio de Fevereiro, nomeámos uma task force para preparar as respostas à pandemia que se avizinhava. Fizemos um excelente trabalho. Felizmente, a sorte também passou para aqui. Mas a sorte dá trabalho. Houve uma mobilização enorme de todos os serviços. Fizemos muitas alterações, tivemos muitas incertezas e tomámos decisões que, provavelmente, se fosse hoje não tomaríamos, mas isso faz parte da vida. Foram três meses inesquecíveis. O lidar com as dúvidas e os receios que tínhamos foi um dos factores que fez deste um período inesquecível. O saber como adaptar a capacidade de resposta do CHL, não só para tratar os doentes Covid, mas também para manter a porta aberta a todos os outros doentes que continuaram a precisar de nós e que fizeram as suas cirurgias, consultas, tratamentos e sessões de hospital de dia. O primeiro grande desafio foi o de prepararmos a instituição, as equipas e os serviços, para dar resposta ao que aí vinha. O medo foi um factor muito difícil de gerir. Não podemos esquecer que cerca de 10% dos infectados com Covid-19 em Portugal são profissionais de saú de. A mobilização, a entrega e o esforço incondicionais de todos os profissionais e de todos os serviços para darmos a melhor resposta possível ao desafio, torna inesquecível a minha passagem por este centro hospitalar. As pessoas passaram a privilegiar o essencial em vez do acessório. Têm todos o direito e o dever de estarem orgulhosos, porque prestaram uma excelente resposta.
Como sentiu a reacção da sociedade civil no apoio ao hospital?
Houve, de facto, um grande apoio, que se pode dividir em duas partes: a prontidão da comunidade em ajudar, das mais diversas formas, e o comportamento dos cidadãos, seguindo as recomendações e revelando uma grande compreensão pelas novas regras e privações, como o não poder visitar os seus familiares ou acompanhar o parto. A população teve um comportamento exemplar. O apoio que a comunidade demonstrou ao hospital, desde o início da pandemia, foi emocionante. Foram cerca de 200 as entidades públicas, privadas ou sociais, ligadas às autarquias, à indústria, ao futebol, ao transporte, a fornecedores e a tantas outras áreas, que fizeram donativos, em dinheiro ou em material, que atingiram várias centenas de milhares de euros. Recebemos da comunidade um grande conforto. Todos os municípios da nossa região fizeram uma oferta em numerário para a utilizarmos onde fosse necessário e expressaram a disponibilidade para ajudar no que fosse preciso. Foi um momento ímpar. A mensagem que recebemos da comunidade, desde a primeira hora, foi a de que estava connosco para tudo o que precisássemos.
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[O mais difícil] Foi o gerir um clima absolutamente inseguro e incerto. As imagens do que se estava a passar em Itália ou em Espanha eram aterrorizadoras. Punham-nos a pensar: ‘E se acontecer aqui?’.
O que foi o mais difícil e mais marcante?
Foi o gerir um clima absolutamente inseguro e incerto. As imagens do que se estava a passar em Itália ou em Espanha eram aterrorizadoras. Punham-nos a pensar: ‘E se acontecer aqui?’.
Houve algum momento em que tenha pensado que isso podia acontecer?
Honestamente, não. A reacção da população, na aceitação das regras e orientações que iam sendo emanadas, transmitia-nos alguma tranquilidade. Eu sentia isso quando andava na rua. As pessoas não circulavam e, quando o faziam, tinham cuidado. Mas a incerteza estava sempre presente. Passámos dois ou três meses muito difíceis. Questionávamos se o que estávamos a fazer era suficiente.[LER_MAIS] Fazíamos reuniões diárias do ponto de situação, onde estava eu, o director-clínico e o enfermeiro-director e dois elementos da task force. Todos os dias avaliávamos se as medidas que tomámos na semana anterior estavam a resultar e quais as medidas a adoptar na semana seguinte. Tratámos doentes de 18 concelhos e de cinco distritos, num total de 92. Todas as semanas preparávamos um plano de contingência, muito focado na evolução da situação. Tudo o que era preciso fazer internamente, fazia-se.
Houve profissionais do CHL infectados com Covid-19?
A primeira pergunta que fazia nas reuniões diárias era essa. Ainda hoje [dia 5 de Junho], continuamos sem qualquer profissional infectado em contexto hospital. Houve três que apanharam a doença fora do hospital. A task force definiu mais de 120 procedimentos, que obrigaram a estudar, a optar, a aprovar e a divulgar. Houve um grande acompanhamento e pressão para que as pessoas cumprissem e, de facto, registou-se uma clara adesão a essas regras, sendo que algumas não eram fáceis nem objectivas. Toda a gente percebeu que tinha de ser assim. [LER_MAIS]O resultado também se deve a essa consistência de estratégia para fazer a prevenção e a gestão de risco.
Como está a ser o regresso dos utentes ao hospital?
A retoma da actividade assistencial está quase nos 100%. Temos as consultas praticamente retomadas a 100%, o mesmo acontece com o hospital de dia, sendo que as cirurgias estão acima dos 80%. Entre Janeiro e final de Maio, tivemos menos de 18% de doentes internados, menos 13% de sessões de hospital de dia e menos 25% de urgências, sendo que a distribuição não é idêntica ao longo dos meses. Em contrapartida, as consultas externas cresceram 4%, sobretudo, através da tele-consulta. Agora, preocupam-nos as cerca de 9.350 primeiras consultas e perto de 550 cirurgias que foram desmarcadas. Estamos a fazer um esforço para recuperar, procurando chamar as pessoas de acordo com o nível de prioridade.
Está a ser difícil fazer regressar as pessoas ao hospital?
Os membros do Governo nas conferências diárias têm referido mui – tas vezes que não há razão para receio. É importante dar esse sinal de confiança e que as pessoas não faltem às consultas. Em caso de dúvida, liguem e esclareçam-se. As pessoas estão a voltar. O facto desta região e deste centro hospital não terem tido uma situação muito difícil na gestão da pandemia também dá confiança. A mensagem a passar é que as pessoas podem e devem vir fazer os seus tratamentos, as suas consultas e as suas cirurgias, porque há condições de segurança para o fazerem.
Assumiu as funções de presidente do Conselho de Administração (CA) do Centro Hospitalar de Leiria (CHL) há um ano. Que balanço faz?
Sou suspeito para falar do assunto, mas, tentando ser o mais objectivo possível, considero que o balanço é positivo. Todos temos um estilo de gestão e de trabalho. Procurei estabilizar a governação do CHL e preparar a equipa para o mandato que começou em Janeiro e a instituição para os grandes desafios que temos pela frente, dando continuidade ao trabalho desenvolvido pela anterior equipa, à qual eu pertenci, com muito gosto, e que foi liderada pelo Dr. Helder Roque. Preparámos também o plano estratégico para 2020-22, que coincide com o mandato para o qual fomos nomeados.
A sua designação para o cargo aconteceu após a saída do anterior presidente do CA, em protesto pela falta de meios dados pela tutela para o CHL cumprir a sua missão. Não sente que, fazendo parte da equipa, deveria ter sido solidário com essa posição?
A decisão tomada à data e nas circunstâncias em que aconteceu, pelos quatro membros do CA, teve em conta a salvaguarda dos interesses da instituição.
Que prioridades traçou para este triénio?
As linhas de força passam pelo crescimento do CHL, pela diferenciação dos serviços e da organização, pela conclusão do plano de investimentos que o Governo está a apoiar, por normalizar e reforçar os recursos humanos e por introduzir regras claras de gestão a todos níveis os níveis. A gestão da instituição está assente em cerca de 80 chefias. Temos, de facto, uma grande estrutura. Outro objectivo é o de continuar a defender a política de qualidade que o CHL tem e que, há um ano, viu renovada a sua acreditação. Há também objectivos relacionados com a eficiência. Temos de ter uma gestão eficiente, que responda às necessidades da população, sem esquecer que os custos e os recursos não são ilimitados no SNS nem no País nem no CHL.
Face à dimensão que o CHL atingiu, qual a margem de crescimento que tem?
Este centro hospitalar tem tido um grande crescimento e ainda não é tempo de abrandar o ritmo. Vamos continuar a crescer, porque a procura assim o exige e a isso nos obriga. Não temos recursos ilimitadas e as necessidades na área da saúde vão variando. Temos desenvolvido projectos que vão da hospitalização clássica à domiciliária, um serviço novo que iniciámos agora e que permite trocar estruturas hospitalares com camas instaladas em casa dos doentes. É uma forma de os doentes serem tratados, com equipas hospitalares e recursos de um serviço hospitalar clássico, mas no conforto do seu domicílio. Claro, que isto não é aplicável a todos os doentes. Há critérios clínicos, sociais e geográficos que condicionam essa resposta. É um exemplo de como podemos crescer, sem que isso implique mais betão.
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Tem havido dificuldade em fixar algumas especialidades. Em 2019, houve um sinal diferente. Tivemos a maior taxa de ocupação de vagas postas a concurso
Mas o aumento das estruturas físicas também é necessário para dar resposta ao crescimento da actividade assistencial.
Sem dúvida. E isso está a ser feito. Temos em curso uma empreitada de expansão do serviço de gastrenterologia, nomeadamente da área de exames e de técnicas especiais. Já adjudicámos também a ampliação do serviço de pneumologia, que irá começar dentro de dias, e a expansão do hospital de dia. Estamos ainda a crescer em Alcobaça, encontrado-se em fase final a reabilitação de uma área que estava sem uso, onde funcionará a unidade de cuidados paliativos. É uma obra estrutural para a região que o CHL serve e que deverá ficar concluída no início de Setembro. Vamos constituir um centro de responsabilidade integrado no serviço de oftalmologia, que, acreditamos, nos permitirá fazer mais com os mesmo recursos.
De que forma?
Através de uma estrutura mais ágil em termos de gestão, incluindo a gestão clínica, que permitirá que o serviço cresça, com alargamento de horários e de prestação de serviços, com uma autonomia acrescida. Este passo acontece ao mesmo tempo que criámos serviços novos, como o de reumatologia e de nefrologia, que dentro de um mês vai iniciar uma técnica que este centro hospitalar e a região nunca tiveram em termos públicos, que é a possibilidade de fazermos tratamentos de hemodiálise no hospital. Será para doentes insuficientes renais crónicos que venham ao hospital, fazer uma cirurgia ou um outro qualquer tratamento, e que precisem de fazer hemodiálise enquanto estão cá internados. Quando isso acontece agora, para onde são encaminhados esses doentes? Ou têm condições para ter alta e ir a um centro privado convencionado ou são transferidos para o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, onde fazem o tratamento, regressando depois ao nosso hospital.
Mas para os serviços crescerem são precisos mais recursos humanos, área onde o CHL se debate há anos com grandes dificuldades. Há indicações da tutela de querer inverter esta situação?
No ano passado, registámos um crescimento razoável de recursos humanos. E o nosso plano para 2020 caminha no mesmo sentido. Ao nível dos médicos especialistas, há carências em todo o País. Não existe um hospital que diga que tem os recursos médicos de que precisa. O CHL debate-se com um outro problema, que é a dificuldade de fixar médicos. É verdade. Tem havido dificuldade em fixar algumas especialidades. Em 2019, houve um sinal diferente. Tivemos a maior taxa de ocupação de vagas postas a concurso desde que são feitos estes procedimentos nacionais para a colocação de médicos especialistas recémformados. A taxa de ocupação aproximou- se dos 60%, o que é bastante bom, porque era recorrente as vagas ficarem por preencher.
O que está ou pode ser feito para alterar essa realidade?
Essa é uma questão que depende de vários factores, como a capacidade formativa ou as alternativas que o País ou o estrangeiro oferecem. Quanto mais os hospitais se diferenciarem, mais potenciam a capacidade de atracção de novos recursos e de novos profissionais. É evidente que, se tivermos mais especialidades, se tivermos equipas mais amplas, se tivermos mais apoios, seja na investigação, seja na formação, com serviços onde se façam novas técnicas e se tratem casos complexos, isso funciona como atractivo. Mas há também factores externos que determinam a escolha de um determinado hospital, como a distância ao local onde as pessoas vivem, onde se formaram e se diferenciarem, onde criaram raízes familiares. A mobilidade dos recursos humanos é hoje completamente diferente. E, a verdade é que tem havido um reforço de médicos em vários serviços.
De que forma?
Por via dos concursos nacionais, mas também de contratações directas de especialistas que estavam fora do SNS e que estão disponíveis para voltar. Em relação aos outros grupos profissionais, em que o mercado tem oferta disponível, as limitações têm mais que ver com questões orçamentais e de dotação, definidas pelo Estado e às quais o CHL tem de corresponder. Também nesta área tem havido um crescimento grande. Nunca tivemos no CHL tantos profissionais como temos agora.
Qual é o universo do CHL ao nível dos recursos humanos?
Temos cerca de 2100 profissionais, dos quais 250 médicos especialistas, 800 enfermeiros, 160 assistentes técnicos, 120 técnicos superiores de diagnóstico e de terapêutica e 550 assistentes operacionais. Para este ano, prevemos um reforço de 110 a 115 novos profissionais, sendo que, quase metade, são médicos especialistas. O objectivo é irmos, progressivamente, crescendo e preenchendo as necessidades que temos. É evidente que não temos a expectativa nem condições para, de um dia para outro, contratarmos 100 médicos, seja porque não os há disponíveis, seja também porque o crescimento tem de ser faseado, sob pena de não conseguirmos organizar os serviços.
Em termos de área geográfica o CHL já não terá margem de crescimento, depois da inclusão de Ourém, que trouxe complicações.
Ao nível da área de influência dos hospitais estávamos formatados em termos de circunscrições geográficas (concelhos e distritos). Esta é uma visão que já não corresponde à realidade. Neste momento, qualquer cidadão nacional pode escolher ter uma consulta de uma especialidade em Leiria ou no Algarve, por exemplo. Desse ponto de vista, a questão de Ourém é irrelevante. O CHL está disponível e tem serviços para responder às necessidades dos doentes, independentemente da sua proveniência. Não há nenhuma diferenciação geográfica. Quando se tratam de cuidados urgentes, tem de haver uma referência e um encaminhamento preferencial, de acordo com os protocolos definidos. Ao nível da consulta externa, os médicos aconselham os seus doentes em função da capacidade de resposta da rede nacional hospitalar.
Parece-lhe um bom modelo?
Sou totalmente de acordo. O SNS tem de funcionar em rede. Todos o defendemos, mas não basta dizer. Temos de nos focar no doente e não tanto nas organizações. Estas têm de estar preparadas para responder aos doentes e não o contrário. A existência de vasos comunicantes entre os vários hospitais que compõem o SNS é uma medida que realça o interesse dos doentes. Sãos eles que estão no centro do SNS.
Quando levantava a questão de Ourém é porque Leiria é o hospital de referência para os doentes urgentes desse concelho, que tem muitas casas de acolhimento de idosos, um tipo de doente que complica na urgência.
Temos de encontrar soluções para responder a toda a procura, independentemente da sua proveniência. Há muita população de Ourém que continua, naturalmente, a ir aos hospitais do Médio Tejo. O que interessa é que o CHL assuma o seu papel como parte de um processo e não como destino final de um determinado tipo de resposta a dar aos doentes. É nossa obrigação adaptar a resposta, a estrutura e as equipas às necessidades dos doentes e à procura dos nossos serviços. Que projectos gostaria de concretizar até ao final do mandato? O nosso plano de investimentos para 2020-22 é de cerca de 15 milhões de euros, que contempla a conclusão da unidade de paliativos em Alcobaça, a criação de uma área de convalescença em Pombal e a reorganização da consulta externa e do bloco operatório, em Leiria. Está também prevista a aquisição de muito equipamento.
E a criação de uma nova torre para acomodar o crescimento perspectivado para o hospital de Leiria?
Há várias opções: fazer uma nova torre ou reorganizar serviços. As necessidade e as respostas de saúde não são proporcionais aos metros quadrados de betão. Mas não descartamos qualquer hipótese.
São frequentes as queixas dos utentes do hospital de Leiria relativas à falta de estacionamento. Que soluções estão a ser trabalhadas?
O acesso dos cidadãos ao hospital começa com o estacionamento. É incontornável. Provavelmente, daqui a 20 anos esta será uma questão irrelevante, mas neste momento não o é. Abrimos um concurso público, que está suspenso, porque um concorrente recorreu para o tribunal. Duas empresas apresentaram propostas para expansão do estacionamento, com a colocação de um piso no parque maior, que permitirá criar mais 250 lugares. Os concorrentes têm também de encontrar uma solução nas proximidades, para ser usada como estacionamento enquanto decorrerem as obras. Teremos de aguardar que o processo judicial se desenvolva. Estamos, em conjunto com a Câmara, a estudar os horários e os percursos do Mobilis, para maximizar a sua utilização.
Percurso
Squash e bicicleta como hobbies
Nascido na Figueira da Foz, Licínio de Carvalho, 54 anos, formou-se em Direito pela Universidade de Coimbra, mas tem dedicado grande parte da sua carreira profissional à administração hospitalar, tendo também sido docente do ensino superior. Chegou ao Hospital Distrital de Leiria em 1991, como administrador hospitalar, onde esteve três anos, fazendo depois um interregno de um ano para assumir o cargo de administrador-delegado do hospital de Lagos. Regressou depois à região, passando a desempenhar essa função no Hospital Distrital de Pombal (1995-2001). Daí, transitou para o Hospital de Santo André, em Leiria, também como administrador- -delegado, sendo que a partir de 2002 passou a integrar o Conselho de Administração (CA) da instituição como vogal executivo. Foi essa função que assumiu aquando da constituição do Centro Hospitalar de Leiria, em 2011, integrando as sucessivas equipas lideradas por Helder Roque. Há um ano, com a saída deste dirigente, Licínio de Carvalho passou a presidente do CA, cargo no qual foi reconduzido em Janeiro deste ano. Nos tempos livres, gosta de praticar squash e andar de bicicleta.