Fez parte do grupo de cinco técnicas que, em 2012, fundou a InPulsar – Associação para o Desenvolvimento Comunitário, em Leiria, com o sonho de criar uma organização que “rompesse com intervenções mais tradicionais” na área social. Dez anos depois, que balanço faz?
Vão sempre surgindo novos problemas e novos desafios. E, portanto, vamos tendo mais sonhos. Enquanto houver pessoas em situação de pobreza e de exclusão social, o nosso sonho não está totalmente cumprido. Se acabarmos porque já não existem pessoas em situação de sem-abrigo ou crianças que não precisam das nossas respostas, serei uma pessoa feliz e não tenho problema de ir à procura de outro trabalho. Mas, infelizmente, acho que vamos sempre ser necessários nas áreas que abrangemos. Trabalhamos com as franjas, com aqueles que estão em situação de exclusão social. Infelizmente, os problemas têm-se agudizado. Pelo que, o sonho inicial da InPulsar, de lutar contra pobreza e a exclusão, continua a fazer sentido.
Falou de novos problemas e desafios. O que mudou ao longo destes dez anos?
Algumas das problemáticas que faziam parte dos nossos objectivos iniciais mantiveram-se. Refiro, por exemplo, as pessoas em situação de sem-abrigo e as crianças e jovens sem suporte familiar no pós-horário lectivo. Entre os novos desafios, está a resposta à vaga de refugiados e de imigrantes e às famílias que, cada vez mais, não têm forma de fazer face à diminuição do poder de compra e à quebra de rendimentos.
Há hoje mais pessoas a bater à porta da InPulsar?
Sim. Supostamente, não temos acção directa no apoio a pessoas, tirando aquelas que estão na franja da sociedade e que acompanhamos através do projecto Giros na Rua, mas acabamos por dar resposta a muita gente, Lisete Cordeiro, directora-geral da InPulsar, aponta a habitação como um “grande entrave” à inclusão social. Diz ainda que “o desconhecimento gera preconceito” nem que seja fazendo a ponte com os técnicos da câmara ou do SAAS [Serviço de Atendimento e Acompanhamento Social]. Na primeira vaga da pandemia, estivemos sempre abertos e com muita afluência. Agora, as pessoas continuam a recorrer a nós.
Quem são essas pessoas?
Temos famílias com carências alimentares, onde se incluem muitos imigrantes, com ou sem a sua situação regularizada. Temos um Gabinete de Inserção Profissional dirigido a imigrantes, mas quando estes não têm a sua permanência no País regularizada, torna-se difícil encontrar empresas para os colocar. Há que desencadear o processo de regularização, em apoio com o CLAIM [ Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes] de Leiria.
A InPulsar começou por intervir junto da comunidade cigana com o projecto Giró Bairro. O que vos levou a iniciar com este público-alvo?
Quando criámos a InPulsar, propusemo-nos a trabalhar com públicos marginalizados, nomeadamente na área das dependências. Entretanto, foi extinta uma associação que trabalhava no Bairro da Cova das Faias e criou-se um vazio, até porque não existia nenhuma entidade a querer intervir junto desta população. Fizemos uma proposta ao município e, em 2013, começámos com o Giró Bairro, que trabalha com crianças de etnia cigana. Inicialmente, íamos três vezes por semana e muito em regime de voluntariado, mas o projecto foi crescendo e ainda hoje se mantém.
Os objectivos de integração da comunidade cigana têm sido atingidos?
Sempre pugnámos para que as crianças frequentassem o pré-escolar e hoje a maioria está no jardim de infância. Isto é fundamental para o sucesso escolar. Quando chegam ao 1.º ciclo já sabem as regras básicas. Por outro lado, contactam mais cedo com crianças não ciganas e criam outros amigos além dos do bairro. Há uma maior possibilidade de integração. O bairro da Cova das Faias é muito isolado. Quando iniciámos o projecto, percebemos que muitas crianças tinham o primeiro contacto regular com crianças não ciganas aos seis anos. É fundamental que isto aconteça mais cedo, para que haja uma maior interligação entre a comunidade cigana e não cigana.
Ainda há muito preconceito em torno desta comunidade?
Sim. A certa altura, participámos num evento a vender bolas de Berlim para angariar fundos, com o apoio de uma pastelaria da cidade que nos fez um desconto. Quando nos entregou as bolas, a pessoa disse-nos que gostava muito de ajudar associações, “desde que não trabalhem com ciganos”. Dissemos que apoiávamos vários tipos de pessoas, sem especificar. Ainda hoje penso se nos teriam feito o desconto se tivéssemos dito que esse era um dos nossos públicos-alvo. Até nós, como associação, sentimos o preconceito por trabalharmos com a comunidade cigana. Às vezes, sentimos que era mais fácil se trabalhássemos só com idosos. Há organizações marginalizadas pelos grupos que escolheram trabalhar.
A InPulsar já sentiu essa marginalização?
Pontualmente sentimos, nomeadamente quando precisamos de apoio de empresas. Trabalhar com públicos não sexy é uma dificuldade acrescida. Temos de explicar por que é que é importante apoiar e acompanhar pessoas que têm determinados consumos e com um percurso de vida diferente daquele que se espera.
Um dos projectos mais emblemáticos da InPulsar é o Morada Certa, que apoia sem-abrigo. Quantas pessoas já conseguiram retirar da rua?
O projecto surgiu no final de 2020. Temos 15 pessoas integradas em apartamentos dispersos pela cidade. Paralelamente, temos um outro projecto de apartamentos partilhados, com mais cinco pessoas abrangidas. Havia a ideia de que não existiam sem-abrigo em Leiria. Uma ideia errada. Os problemas da habitação estão a agudizar-se. As pessoas que se encontram em maior fragilidade são as primeiras a ficar em situação de sem-abrigo. Temos mais pessoas sinalizadas. O Núcleo de Planeamento e Intervenção junto de pessoas sem-abrigo de Leiria, do qual a InPulsar faz parte, procura actuar de diversas formas. Nem toda a gente tem de ir para o modelo housing first, específico para casos crónicos de sem-abrigo. Fazemos um trabalho de capacitação e de integração destas pessoas, em articulação com as próprias. Muitas delas já estão reformadas por invalidez. Já tivemos algumas integradas no mercado de trabalho, mas a maioria não tem essa capacidade.
Numa fase em que as dificuldades de habitação são tremendas, como foi conseguir casa para 20 sem-abrigo?
Temos dois ou três senhorios espectaculares, com quem temos uma relação próxima e que nos têm apoiado. Depois, há um trabalho enorme de pesquisa. Para conseguirmos uma casa, fazemos 20 ou 30 contactos. Somos honestos e especificamos o que queremos fazer.
Já tiveram recusas depois de os inquilinos perceberem quem são os destinatários das casas?
É frequente. Já não temos qualquer preconceito relativamente a isso. Quando abordamos as pessoas, dizemos logo ao que vamos. Garantimos que o contrato é feito com a InPulsar, uma associação com dez anos, que tem uma direcção e uma equipa técnica. Se algo acontecer, nós damos a cara. Essa disponibilidade faz com que, às vezes, as pessoas aceitem o nosso projecto.
Ao longo do seu percurso profissional já trabalhou com reclusos, sem-abrigo e toxicodependentes. Qual é a maior barreira à inclusão social?
As pessoas têm uma história, um percurso. E é difícil apagar essas vivências e trabalhar as competências pessoais e sociais a partir do zero. Além da bagagem que a pessoa traz consigo, há uma série de barreiras que se vão colocando. A questão da habitação é um grande entrave. Hoje, é super-difícil uma família minimamente estruturada arrendar casa. Imagine-se quem está nas franjas da sociedade. Há depois muitos outros factores.
O preconceito é um deles?
Sem dúvida. O desconhecimento gera preconceito. Se, por vezes, conhecêssemos a história por detrás da pessoa em situação de fragilidade, talvez tivéssemos outra visão dela e da problemática que a afecta. Outra dificuldade da intervenção social prende- -se com o facto desta ser uma área que exige um grande trabalho de articulação. Apesar das melhorias, ainda podemos fazer mais para intervir em conjunto. É também importante trabalhar com menos preconceito em relação às pessoas junto das quais se faz intervenção social. Queremos definir muito o que é que elas têm de fazer, envolvendo-as pouco no processo.
Como vê o crescimento de discursos de ódio contra alguma das minorias com as quais a InPulsar trabalha?
Já não esperava ver este tipo de discurso num País como o nosso, com educação e onde as pessoas fazem algum investimento na sua formação. Isso está associado a um desconhecimento da realidade social. Veja- -se, por exemplo, a ligação que se faz entre o RSI [Rendimento Social de Inserção] e a comunidade cigana. Só 5% das pessoas que recebem este apoio são da comunidade cigana. Por outro lado, o RSI tem um peso muito pequeno no Orçamento do Estado. Não é com o valor que recebem por esta via que as pessoas vão fazer fortuna. Haverá casos pontuais de falta de fiscalização, mas isso acontece noutras áreas. O que acontece é que quem recebe o RSI faz parte de um grupo mais visível. Se uma pessoa importante ‘rouba’ o País, não está exposta no café a gastar o dinheiro. Estará num campo de ténis ou de golfe, mais ou menos invisível.
Das muitas histórias que acompanhou, houve alguma que a tenha marcado especialmente?
Várias. Recordo um cidadão romeno que veio para Portugal na vaga de imigração dos anos 2000, para trabalhar nas obras. Assim que conseguiu o primeiro dinheiro, enviou para a família. A mulher e os filhos quiseram fazer-lhe uma surpresa e meteram- -se num autocarro para o visitar no Natal. Morreram os três na viagem. Deixou de os conseguir contactar e só mais tarde soube da situação quando a Interpol lhe bateu à porta. Acabou por se refugiar no álcool e ficou numa situação de vida muito complicada e nunca mais recuperou.
Como o conheceu?
Quando trabalhava ainda no Académico [de Leiria]. Logo no início da InPulsar, todos os seus documentos caducaram e ele deixou de ter direito a receber qualquer subsídio. Com o apoio de alguns privados, conseguimos que fosse à Roménia tratar da documentação. Foi também ver a campa onde estava a família e comprou todas as flores à florista que estava à entrada do cemitério. Contou-nos que a senhora o abraçou, porque os 20 euros que lhe tinha dado eram muito dinheiro na Roménia. Fez ali o seu luto. Regressou a Portugal. Tem tido muitos retrocessos e alguns avanços nos consumos de álcool. Se olharmos para o que já vivenciou, conseguimos perceber melhor o seu percurso.
Em dez anos de InPulsar, o que é que tem sido mais difícil e mais gratificante?
O mais complicado são as dificuldades de arranjar financiamento, o estar sempre a pensar que um determinado projecto pode acabar. Às vezes, temos vontade de desistir, mas depois surge mais uma linha de financiamento e ganhamos folgo para desenhar uma nova candidatura. Não sabermos se conseguimos dar continuidade aos projectos e manter os recursos humanos é o mais frustrante. Temos tido alguma sorte, também porque trabalhamos para isso, conseguindo dar continuidade aos projectos. Mas este ano está a ser difícil. É algo que me angustia diariamente. O mais gratificante é ver que uma criança que estava para desistir da escola não o fez ou outra que não podia ir às aulas de ginástica por falta de meios pôde continuar a fazer o que gostava porque conseguimos o apoio de uma empresa. É também muito gratificante ver uma pessoa que foi sem-abrigo durante anos conseguir manter um espaço limpo, deixar certos consumos ou começar a ter mais preocupação com o seu aspecto físico. Podem parecer pequenas mudanças, mas são grandes vitórias.