Deixou a função de reitor em 2008. Como tem acompanhado a vida do Santuário de Fátima?
Estive 35 anos como reitor. Antes, vivi aqui durante alguns períodos. Quando deixei a função de reitor, a minha vontade era mudar-me para a Casa do Clero, em Fátima. Porém, o bispo diocesano mandou-me ficar a viver no Santuário. Era natural que fosse observando o desenvolvimento da acção pastoral. Comecei então a dar- -me conta de que o princípio fundamental era diferente do que tínhamos seguindo antes. Ou seja, no meu tempo a prioridade eram os peregrinos em geral, os quais podem considerar- se pobres, a classificação humana que mais convém aos filhos de Deus. No actual programa do Santuário, o fito primário mais explícito são os intelectuais. A dedicação total à intelectualidade não deixa espaço para a dedicação aos pobres.
Por que diz isso?
Não só o cuidado, mas sobretudo o tempo necessário, tanto num campo como no outro, é demasiado absorvente para que possam conjugar-se as duas dimensões. Se eu dou todo o tempo à ciência não posso dedicar- me aos pobres, e vice-versa. Posso esforçar-me, mas sem suficiente eficácia. Ao longo dos 35 anos em que estive em funções, nomeado de cinco em cinco anos – nunca pedi nem me neguei a ficar – fui, naturalmente, recebendo sinais de que estava a percorrer o caminho recto. Também isto foi para mim uma razão para melhor atender ao caminho diametralmente diferente do que ia sendo seguido. É verdade que a razão imediata desse novo caminho era o Centenário [das Aparições] que se estava preparando, mas o método e duração do programa seriam suficientes para marcar um futuro diferente, mesmo depois de 2017.
Viveu isso com mágoa?
Com muita mágoa. Mas, apesar de muito convencido que verdades apuradas podem e, muitas vezes, devem ser publicadas, até hoje nunca publiquei as divergências que acabo de exprimir.
Quando é que percebeu que o caminho que estava a ser seguido era diferente daquele que defendia?
À maneira que se aproximava o Centenário. Compreendo que era uma data importantíssima, que convinha celebrar de forma adequada. A equipa constituída tentou isso, mas fê-lo, em bastantes casos, de forma violenta, e de tal modo que pôs em causa a própria saúde psíquica de alguns funcionários. Houve trabalhadores que praticamente foram expulsos. A vários ou talvez muitos, teve a instituição de pagar altas indemnizações; outros saíram e calaram-se, com receio de retaliações. Quase de rompante, foram admitidos mais de 130 novos funcionários, numa casa que tinha 210. Houve uma série de pessoas que foram empurradas para sair. Algumas estiveram vários anos na prateleira, ganhando sem trabalhar. Ainda hoje, há quem observe que o Santuário está com demasiados trabalhadores. Ao que parece, também aqui com muita perturbação, com entradas e saídas permanentes de funcionários, sobretudo de estrangeiros, hoje muito comum na Europa, que de si vai perdendo população.
Quem é, em geral, responsável por essa nova força de trabalho que entrou no Santuário?
Um grupo de doutores, com vocação e docência universitária. Pessoas, sem dúvida, muito capazes e dedicadas, mas que acabam por construir uma espécie de castelo intelectual no Santuário, cuja finalidade imediata não pode ser senão um público doutoral e artístico, que não é o povo das nossas peregrinações tanto de portugueses como estrangeiros. Prevalece a intelectualidade e a arte. Em plano secundário, fica a grande massa de peregrinos, gente simples, pobre e humilde, a gente que, na realidade, Nossa Senhora convida para vir a Fátima. Não deixa de impressionar que no cartaz mensal do Santuário tenham hoje lugar três ou quatro nomes de pessoas, entre oradores e artistas musicais, e não a lista de dezenas de peregrinações, portuguesas e estrangeiras, que antes eram fraternalmente acolhidas no Santuário.
Pode dizer-se que houve uma certa secularização do Santuário? Que sinais identifica nesse sentido?
O brasão do Santuário, inscrito desde sempre na torre da basílica, com as iniciais de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, está hoje substituído por outro, apenas com as iniciais SF (Santuário de Fátima). Parece-me algo atrevido e sem razão. Fez-se uma esplendorosa celebração do Centenário. Houve muita música e outras manifestações artísticas. Fazem-se ainda hoje exposições maravilhosas, mas que a meu ver ficam demasiado caras e, até por isso, de resultado pastoral menos evidente. O peregrino que vem a Fátima não precisa senão de um ambiente de oração. As duas casas de alojamento, incluindo a zona hospitalar, perderam a denominação de “casa de retiros”, passando a funcionar simplesmente como unidades de alojamento, tal como qualquer hotel de Fátima. Deixou de se ter em conta que essas casas serviam, antes de mais, para retiro ou oração. Tenta-se que possam acolher retiros espirituais de peregrinos e de doentes, mas não se vê como se podem juntar grupos de retiro com grupos de passagem.
O que resultou desse processo de “secularização”?
Em primeiro lugar, a admissão de dezenas de pessoas desnecessárias no Santuário. Com a elevação cultural do núcleo directivo, pode ter-se registado um aumento significativo dos salários. No referente aos sacerdotes, o aumento chegou a ser criticado numa carta anónima que escalpelizava a diferença entre os salários dos sacerdotes diocesanos. Um padre é um padre. Não pode, de maneira nenhuma, comparar-se a um administrador de uma empresa, mesmo que os leigos que o sacerdote dirige recebam salário superior.
Mas com a entrada em funcionamento da nova basílica seria necessário contratar mais pessoas.
Tínhamos pensado contratar mais uns 20 trabalhadores. Mas 20 não eram 130.
Já com a pandemia, o Santuário dispensou trabalhadores e algumas das coisas de que falou vieram a público.
Impõe-se um enorme esforço de purificação do Santuário, no sentido de o fazer voltar-se para o público de peregrinos, que pode ser considerado de pobres. Não podemos esquecer que Nossa Senhora escolheu um país pobre, uma família pobre e três crianças pobres. As exposições são úteis, mas não faz sentido que também elas sejam ricas, menos ainda que caiam na tentação de promover o louvor dos homens. Nesta terra, precisamos é de louvar a Deus e imitar Nossa Senhora e os pastorinhos. Os homens já se sabem louvar a si próprios, mais do que o necessário.
Com a pandemia, o Santuário assumiu que havia um défice no seu orçamento.
O défice não é do tempo da Covid. O défice deve vir, pelo menos, de 2017, ano do Centenário. Em 100 anos de história, não se tinha feito um único peditório público a favor do próprio Santuário, ao ponto de haver quem considere verdadeiro milagre que nunca o Santuário tenha tido necessidade de recorrer a qualquer colecta. Agora, não só se teve de introduzir os pedidos públicos de ofertas como se usa todo tipo de estratégias para angariar dinheiro. Até fora do recinto, nas Casas Dores e do Carmo, nas alamedas, debaixo das árvores e nas estátuas exteriores dos Papas, existem caixas de esmolas. Nas duas basílicas até o multibanco serve para pedir. O Santuário está ao que parece, ainda com grande dificuldade em pagar as suas despesas. É urgente tentar o equilíbrio entre o deve e o haver.
Estudo dos abusos: “Igreja está também a expiar uma culpa que toda a sociedade devia expiar”
Fátima prepara-se para viver, no próximo ano, mais um momento histórico com o regresso do Papa Francisco por ocasião da Jornada Mundial da Juventude. O que espera deste momento?
Do Papa e de todos os presentes, espero devoção, confiança em Maria e nos Pastorinhos e renovação da fé e da peregrinação. Será uma alegria grande voltar a ter o Santo Padre em Fátima. Enquanto espaço acolhedor de peregrinos, espero que haja no Santuário um reforço da fé, da esperança e da caridade.
Que balanço faz dos primeiros meses de episcopado de D. José Ornelas à frente Diocese de Leiria-Fátima?
D. José é uma espécie de fina flor do todo o episcopado português. A sua nomeação para esta diocese é o reconhecimento da importância de Fátima. Uma das coisas positivas do nosso bispo é que, em vez de começar logo a decidir e fazer coisas, optou primeiro por visitar a diocese e contactar com os seus colaboradores. É o melhor que pode fazer para não navegar à vista.
Este Natal será, como disse D. José Ornelas na sua mensagem, vivido num quadro “dramático”. O que mais o preocupa neste momento? Além da crise humanitária, preocupa- me a crise espiritual e religiosa e a crise da Igreja na Europa, também em face da imigração. O Ocidente deixou de ter filhos. Automaticamente, o território vai sendo ocupado por outros, de credos diferentes, enquanto não caírem nas mesmas tentações ou necessidades em que nós caímos.
A sociedade tem vivido os últimos anos de crise em crise. Foi a pandemia, agora a guerra e todas as consequências humanitárias e económicas que daí resultam. Que sociedade gostava que emergisse desta situação?
Gostava que emergisse uma sociedade capaz de uma decisão universal de salvação do planeta como casa de todos. O planeta está em perigo e com ele a vida. Os especialistas têm avisado que, se a temperatura subir mais de três graus, entramos num ponto sem retorno. António Guterres disse mesmo que estamos numa espécie de auto-estrada do inferno. E mais, sem poder voltar atrás. Abusámos e abusamos da Terra, incapazes de conseguirmos uma decisão comum que possa salvar-nos. O Papa Francisco tem sido uma das mais activas vozes na defesa desta nossa casa comum e a Igreja tem seguido esse rumo. Só que a Igreja é uma força, mas não abarca a Humanidade inteira. Por mais estranho que seja, pela primeira vez, (parece) podemos falar com realismo do fim do mundo. O planeta terá mesmo esgotado a sua capacidade de alojamento para o ser humano, que só agora se dá conta da sua própria responsabilidade.
A Igreja católica em Portugal está a atravessar um momento difícil com a investigação em curso aos abusos sexuais. Como vê a decisão da Conferência Episcopal em avançar com este estudo?
A decisão do nosso episcopado implicou sofrimento, mas também alívio. Foi arrependimento, em linha com a posição da Igreja e com as indicações dadas pelo Papa Francisco. A Igreja está a sofrer muito com esta questão dos abusos. Por outro, está também a ser vítima, só que não é uma vítima inocente.
Vítima em que sentido?
Porque está também a expiar uma culpa que toda a sociedade devia expiar. Infelizmente, este fenómeno não é exclusivo da Igreja, e nem vai acabar. Admito que o celibato, em certos casos, não ajude a lidar com a sexualidade. A instância sexual interior pode ser tão forte, que, não vendo a possibilidade de seguir um caminho normal, a pessoa acabe por cair na anormalidade. É um problema que sempre existiu e vai continuar a existir. Acredito que, com penas fortes e aplicações reais, poderá diminuir. No entanto, não se espere que a sociedade se esteja a salvar do fenómeno da pedofilia, por via do castigo agora aplicado à Igreja.
Referiu o celibato. O que pensa da sua obrigatoriedade?
Sinceramente, não sei bem o que dizer. Por um lado, com o celibato, o sacerdote está muito mais livre para poder dedicar-se à sua missão. Por outro lado, o casamento não lhe evitaria todos os pecados, nem mesmo os da sexualidade.
Qual a mensagem de Natal que gostava de deixar?
Que os cristãos – pelo menos eles – resistam à comédia do Pai Natal, dos trenós do Inverno nórdico, e que a troquem pela realidade dos anjos, anunciando o verdadeiro príncipe da paz. A Ele vale a pena saudar e rezar pelos irmãos em guerra na Ucrânia e pela paz em tantas outras zonas e corações no mundo.
Dois anos depois, concluía o curso de Teologia na Universidade de Salamanca. Seria, então, nomeado capelão no Santuário de Fátima , onde permaneceu quase dois anos, até ter sido designado para dirigir um colégio da diocese na Marinha Grande, onde esteve quase quatro anos.
“Senti que precisava de sair. Estávamos a viver o Concílio Vaticano II. Deu-me ocasião para uma grande reflexão sobre a minha própria vocação como padre, como cristão e como homem. Um dos meus problemas de sempre é a existência de Deus”, recorda. Foi, então, fazer um aperfeiçoamento em Filosofia no Instituto Católico de Paris, em França.
Regressa a Portugal em 1968 e retoma à Marinha Grande. É nomeado reitor do Santuário de Fátima em 1973, um ano antes do 25 de Abril. “No contexto do pós-revolução, houve vários episódios no Santuário. Houve tempo em que quiseram ocupar a Casa de Retiros Nossa Senhora das Dores e a casa dos doentes”, recorda o antigo reitor, que a determinada altura teve também conhecimento que elementos do Movimento das Forças Armadas teriam falado “na possibilidade de se nacionalizarem os tesouros das catedrais e que o objectivo seria chegar ao ouro de Fátima”. “Ficámos receosos e tivemos de esconder o ouro no chão dentro de caixas. Foi assim que salvei o ouro do Santuário.”
Os 35 anos que esteve como reitor corresponderam a uma fase de grandes obras em Fátima, com destaque para a nova basílica, que gerou controvérsia dentro e fora da Igreja, e para o Centro Pastoral Paulo VI. Foi também um período de reestruturação administrativa do Santuário. Após deixar a reitoria, em 2008, monsenhor Luciano Guerra continuou a viver no Santuário, “por indicação do bispo diocesano”. Aos 90 anos, continua “com gosto”, a fazer vida de padre, celebrando ao domingo e confessando “sempre que necessário”. Diz também “gostar de pensar”.