Lúcio Tomé Feteira, multimilionário, português, de Vieira de Leiria. Chegou a ser considerado um dos homens mais ricos do mundo. Morreu em 2000, deixou uma fortuna que ainda está por calcular.
Todas as opiniões ouvidas sobre Lúcio Tomé Feteira, natural de Vieira de Leiria, convergem no sentido de o considerar um homem brilhante, visionário, generoso, perspicaz, inteligente e sensível.
A sua faceta de excelente contador de histórias também é destacada por todos os que privaram de perto com ele. O seu percurso por vários países do mundo abriu-lhe ainda mais os horizontes e possibilitou que se relacionasse com grandes figuras da História, como a primeira-ministra britânica Margareth Thatcher ou o banqueiro norte-americano David Rockfeller.
Apesar disso, era uma pessoa simples e acessível. “O meu maior prazer na vida era fazer bem.” A afirmação proferida por Lúcio Tomé Feteira, aos 98 anos, é confirmada pelo seu percurso de vida, marcado pelo apoio não só à família como a instituições e pessoas desfavorecidas.
Na entrevista que o JORNAL DE LEIRIA republica hoje, Lúcio Tomé Feteira refere os dois milhões que doou à Ordem de S. João de Deus para apoiar o tratamento de doentes, instituição onde o filho Lucito, que sofria de esquizofrenia, recebeu assistência médica até falecer com 30 anos.
O empresário garante ainda que sempre que morria um operário, continuava a pagar o ordenado à viúva. Rui Venâncio Pedrosa, director da Biblioteca de Instrução Popular, conta que, a partir de 1934, Lúcio passou a entregar 100 contos (cerca de 500 euros) por mês àquela instituição até morrer, quando qualquer sócio pagava apenas 100 escudos (50 cêntimos), como forma de reconhecimento por o então presidente da biblioteca lhe ter oferecido uma actuação privada do rancho folclórico na residencial onde estava hospedado.
Paulo Vicente, ex-presidente da Junta de Freguesia da Vieira, recorda que Lúcio apoiou ainda os bombeiros, a construção da Igreja (onde existe um busto dele e do irmão João, que geria a fábrica de aços), o jardim dos pequeninos, a cantina escolar e o rancho.
“Mas nunca quis o nome dele nas instituições que financiava, mas o da mãe ou da irmã”, acrescenta Joaquim Tomé Vidal, actual presidente da junta. Segundo Paulo Vicente, era ainda frequente Lúcio oferecer apartamentos.
O ex-autarca diz que o empresário deu dois a Rosalina, um dos quais doou à sobrinha-bisneta que era companheira do músico Jorge Palma. O ex-presidente da Câmara da Marinha Grande, Álvaro Orfão, destaca ainda o facto de ter sido presidente da junta entre 1934 e 1939, apesar de não ter necessidade disso. “Foi um gesto amigo.”
|Testemunho|
“Foi a entrevista da minha vida”
Quando entrevistei Lúcio Tomé Feteira, em 1999, com a idade de 98 anos, foram quatro horas de convívio electrizante, tanto era a energia irradiada pelo entrevistado.
Amigo de reis e presidentes de repúblicas, tratava por tu os barões do dinheiro de Wall Street e era um dos homens mais ricos do mundo. Entrevistei-o no seu modesto apartamento em Lisboa.
E a determinada altura Lúcio Tomé Feteira teve de se deslocar ao médico. Mesmo assim, nunca deixou de falar em quando se dirigia para o tratamento, no seu Mercedes com o motorista particular. E enquanto falava, eu não largava o gravador de braço sempre esticado para não perder nada do que ouvia.
Foi a entrevista da minha vida. O 25 de Abril, durante o período revolucionário, prejudicou imenso este grande empreendedor que muito amava a sua Vieira de Leiria. Um facto curioso: quando entrevistei Tomé Feteira, quem me abriu a porta no apartamento foi a sua secretária, Rosalina Ferreira, recentemente assassinada no Brasil, que já nessa altura confessou que havia muita inveja da família Feteira em relação a si.
Um homem do século
Considera Salazar o maior estadista da História de Portugal. Mas repudia a burocracia do Estado Novo, uma barreira à sua "mania" de construir. Financia, por isso, uma tentativa de revolta, em 1947.
Em 1987, recusa o convite do Presidente da República, Mário Soares, para integrar o Conselho das Ordens Honoríficas. Gesto que marca o seu distanciamento ao regime saído do 25 de Abril. Dez anos depois, o JORNAL DE LEIRIA volta a publicar uma das últimas entrevistas do Tomé Feteira, se não a última.
Texto de Damião Leonel (2010)
Esta entrevista foi recolhida pelo jornalista do JORNAL DE LEIRIA, em 1999.
A sua família é originária de Vieira de Leiria?
O meu avô era natural de São Tomé de Mira, abaixo da Figueira da Foz.
Foi para a Praia da Vieira numa carroça.
Naquele tempo o rio Lis era navegável. O meu pai, Joaquim Tomé Féteira, que nasceu na Vieira, criou uma indústria, em 1868. Os seus produtos tornaram-se conhecidos no mundo inteiro. Havia países que desconheciam a existência de Portugal, mas conheciam as limas portuguesas. Tive a ocasião de verificar isso em Saigão. Um dia, houve um incêndio que devorou as casas da Praia da Vieira. Eram barracas. Foi por isso que o meu pai veio para Vieira de Leiria. Era um homem com grande paixão pelas ciências. Possuía um poder de argumentação extraordinário. Tornou-se conhecido em todo o País. As maiores intelectualidades de Portugal iam visitá-lo. Havia mesmo um livro que dizia: – se um dia passares por Leiria não deixes de visitar o Tomé das limas.
Que tipo de educação recebeu do seu pai?
O meu pai cuidava dos seus 12 filhos com uma certa rigidez. Como era dantes! Obrigou-nos a andar descalços até aos quatro anos. Andar calçados só era permitido ao do mingo. Dizia que andar em contacto com a terra fazia bem. Isto passou-se na Vieira, onde nasci. Começou a ensinar-me a ler aos 3 anos. Ainda era uma criança e já lia o jornal para o meu pai. Saía da escola primária e ia tomar banho para o rio Lis. Naquele tempo, o Lis não era poluído. Aprendi a nadar muito cedo. Cheguei a nadar durante duas horas sem ir a terra. Esse exercício físico revelou-se importante ao longo da minha vida. O meu pai foi sempre monárquico. Eu tinha um irmão, o Raul, que era republicano, apoiante do António José de Almeida. Discutiam política e outras coisas. Eu ouvia. Isso traduziu-se, em mim, num certo saber. E tanto assim foi que quando entrei no liceu aquilo não foi nada para mim.
Que ideia tem da República?
A passagem da Monarquia para a República foi uma desgraça. Os republicanos mataram padres, cometeram os crimes mais violentos, aquela coisa… a legião vermelha… matou três juízes e cinco jurados. Até o fundador da República, o Machado dos Santos, foi morto. Depois veio o Gomes da Costa, que fez o 28 de Maio… E a ordem determinante para que não se fizesse mal aos republicanos. O Bernardino Machado, que estava exilado em Madrid, contou-me isto a chorar. Convidei-o a almoçar comigo. Comeu muito pouco. Chamei-lhe a atenção: – o senhor Presidente come tão pouco! – Vou dar-lhe um conselho -, respondeu. – A frugalidade conduz à longevidade. E contou-me quanto estava grato ao Gomes da Costa por ter protegido os republicanos. E que até tinha sido destacado um coronel para acompanhá-lo. Disse-me isto a chorar!
Cumpriu o serviço militar?
Andava no 5.º ano quando apareceu um rapaz com uns galões de oficial. Aquilo era um fascínio para as moças. Fiquei com muita inveja. Perguntei-lhe como era possível conseguir aquilo. – Aliste-se para a guerra. Faça o curso de oficiais, em Mafra, e terá uns galões como estes -, foi a resposta que obtive. Até me ajudou a fazer um requerimento ao ministro da Guerra, general Norton de Matos, com quem trabalhei mais tarde. Mas, para o requerimento ir avante, era necessário uma declaração assinada pelos meus pais, pois tinha 15 anos nessa altura. Andava esgotado. Estava no 5.º ano. E já tinha tido outro esgotamento. Naquele tempo estudava-se Latim a partir do 3.º ano do liceu. Uma ocasião disse ao professor que, no espaço de um mês, meteria na cabeça toda a gramática do latim. E meti mesmo! Mas depois caí doente durante três meses.
Homem notável
Recorda-se de algum professor?
Um dos meus professores era o pai do José Hermano Saraiva, aquele que faz programas de televisão sobre História de Por tugal. O seu irmão, o António José Sarai va, foi um homem notável, um grande escritor. Deixou de ser comunista depois de ter feito uma viagem à Rússia. Entretanto, disse à minha mãe que queria ser oficial do Exército. Isto aconteceu, em 1917, quando Portugal entrou na Grande Guerra Mundial. Tinha 15 anos. A minha mãe ficou aflita. Mandou-me falar com o meu pai. Lembro-me perfeitamente de ter dito que não. Era o medo, o respeito… Andei três dias a ganhar coragem para falar com o meu pai.
E falou?
Ao fim de três dias, depois de ganhar cora gem, fui ter com o meu pai. – O que é que o senhor deseja? -, perguntou, tratando-me por senhor. – Nada, respondi. – Nada? O senhor gasta uma imensidade de Latim para não querer nada? – Bem… queria que o pai assinasse isto. – É só? – É só. – Vou buscar a pena. A pena era a caneta daquela época. Apareceu com umas cordas dobradas. Dizia qu, com aquilo, os ossos não quebravam…
Pensou nalguma alternativa?
Pensei em tirar o curso de piloto de na vios. Houve até um familiar meu que falou com o tenente da Marinha Francisco Champalimaud. Anos mais tarde, até perguntei ao António |Champalimaud| se era parente daquele oficial da Armada. Res pondeu-me que não. – Costuma-se dizer que as pessoas ricas não têm parentes, disse-lhe. – Não é nada disso, acrescentou.
Tem boas relações com António Champalimaud?
Tratamo-nos por tu.
Foram sócios?
Nunca fomos sócios. Um dia, o Jucelino de Oliveira (presidente do Brasil) disse-me que tinha uma jazida maravilhosa de cimento para mim. Respondi-lhe que não queria mais nada. E indiquei-lhe o António Champalimaud. Então o Champalimaud contraiu um empréstimo – era isso que deveria ter dito no livro dele – de 12 milhões de libras num banco da Alemanha, dando como garantia o Banco Pinto e Sotto Mayor. Quando se venceu a letra foram pedir dinheiro ao BPSM. No banco, disseram que era com o senhor Champalimaud. E o Champalimaud disse que não. Conclusão: o Estado teve que pagar esses 12 milhões de libras. Portanto, ele ganhou esses 12 milhões. É isso que deveria ter dito. Às vezes há falta de sinceridade… Isso foi quatro anos antes do 25 de Abril.
O que se passou após o seu familiar ter falado com o tenente Francisco Champalimaud?
O tenente arranjou-me lugar, como aprendiz de pilotagem, num navio dos Transportes Marítimos do Estado. Informaram-me logo que ia traba lhar como um simples marinheiro. E que ganharia 75 escudos por mês. O dólar valia então oito escudos. No dia seguinte, apresentei-me no navio. O contra-mestre perguntou-me se sabia nadar. Disse-lhe que sim. – Então o seu serviço é numa escada de corda com uma lata de tinta e uma raspadeira. Vai pintar o navio. – Bom, disse eu -, pode ser que saia daqui um Malhoa [risos]. À noite, quando me deitei, não podia com os mosquitos. Eram milhões! No dia a seguir, o Francisco Champalimaud disse-me que era mesmo assim. Então a mulher dele reagiu: – Não é bem assim. O praticante não faz esse serviço e dorme em segunda classe. Isto passou-se em Lisboa, em 1917, quando o navio do tenente Carvalho e Araújo foi afundado por um submarino alemão. Era amigo do irmão dele. Entretanto, fiz uma viagem à Madeira e à ilha do Corvo, nos Açores. Estive 17 dias no mar. Mas para entrar na Escola Náutica era preciso passar 365 dias no oceano.
Ficou em terra…
Pensei que só num barco à vela era possível ingressar na Escola Náutica. Até que encontrei, junto ao cais, uma galera de quatro mastros. O comandante era de Cabo Verde. Perguntei-lhe se precisava de um praticante de pilotagem. Disse-me que sim. Ia ganhar 150 escudos por mês. A partida para Baltimore estava marcada para o dia seguinte. Fui logo à Capitania para registar o meu nome. Mas estava lá muita gente. E não consegui resolver a minha situação. O barco partiu sem mim. Três dias depois foi afundado por um torpedo de um submarino alemão. Os tripulantes morreram todos. Verifiquei logo que não tinha vocação para a Marinha. Regressei a casa e pedi à minha mãe que me desse três tostões para pagar a pensão em Leiria. Fui para lá estudar como aluno externo. Os livros eram emprestados. Assim fiz o 6.º e o 7.º anos. A minha mãe ficou toda contente. Mais tarde, em 1922, após tirar, no Porto, o curso |incompleto| do Instituto Superior de Comércio, fui para Luanda como funcionário superior de finanças.
Em Angola
O que aconteceu após a morte do seu pai?
O meu pai, quando morreu, deixou à minha mãe, em testamento, uns títulos brasileiros, emitidos pela Casa Rothschild, em Londres. E também deixou a empresa de limas, com a condição de passar para os filhos 25 anos depois. Por isso, quando me formei, concorri ao Ministério das Colónias. Fiquei em primeiro lugar e fui trabalhar com o Norton de Matos – um homem extraordinário -, como oficial superior de finanças, em 1922. Ele era alto-comissário em Angola. Já tinha sido governador, em 1912.
Como era a relação de Norton de Matos com o povo de Angola?
Ele criou um prestígio tão grande que depois foi vítima da inveja. A inveja, afirmavam os romanos, é a companheira inseparável da glória. Norton de Matos não consentia que houvesse um preto ocioso. Mas também não permitia que se tratasse mal um preto. Queria fazer uma confederação de estados portugueses. A sede dessa confederação, que seria no Huambo, passaria a chamar-se Nova Lisboa. Uma vez apareceu o Venâncio Guimarães, que negociava pretos. Norton de Matos avisou-o que não consentia aquele negócio. O Venâncio Guimarães pensava que tinha as costas quentes, pois era amigo do engenheiro Cunha Leal, o maior tribuno que havia na República. E prosseguiu com as suas actividades. Norton de Matos expulsou-o.
Conheceu Alves dos Reis, considerado o maior falsário português do século?
Conheci-o muito bem. Fiz um inquérito ao Alves dos Reis. Ele era responsável pelos caminhos de ferro que iam de Luanda a Malanje. Até vou contar uma coisa que tem graça. Estava com ele e mais dois amigos quando passou uma senhora muito bonita. Eu disse: – Bonita senhora. – É bonita mas é minha, retorquiu ele. Respondi: – Oh Alves dos Reis, eu também não a quero. Fica lá com a mulher [risos]. Alves dos Reis era visto como um génio financeiro… Era um tipo muito inteligente. Foi para Angola com o primeiro ano do curso de Engenharia e apresentou-se como engenheiro. Digo mais: deve-se a Alves do Reis o facto de Portugal não ter ido à falência. Graças àquelas notas falsas de 500 escudos.
O maior estadista
Quem é, na sua opinião, o português mais ilustre deste século?
Salazar foi o maior estadista da História de Portugal.
Mas o senhor financiou uma tentativa de revolta contra o regime de Salazar. Porquê?
É verdade. Foi em 10 de Abril de 1947. João Soares, pai do Mário Soares, era um dos implicados, assim como o almirante Mendes Cabeçadas, entre outros. Vieram ter comigo. Eu andava danado com a burocracia. A questão não era com o Salazar. Queria construir fábricas. Tinha a mania de construir. Ainda hoje, não posso com a burocracia portuguesa. Na América consegui o que quis, no Brasil também. Na América até criei uma fundação em 15 dias. Em Portugal também quis fazer uma fundação e não me deixaram. Entretanto, o pai do Mário Soares, com quem me dava muito bem, apareceu em minha casa…
Salazar gostava de si?
Gostava! Pediram-me para financiar o golpe, pois não tinham dinheiro. E financiei. O que dava ao Governo o direito de me confiscar os bens. E Salazar não o fez. Salazar afirmou a um ministro que sentia grande apreço por mim. – Tenho tanta admiração por este homem e ele não gosta de mim -, terá desabafado a meu respeito. Mas não era bem assim. Eu não gostava era da burocracia. Salazar nunca me quis mal.
Ele soube do seu envolvimento na tentativa de revolta?
Soube de tudo. Fui o único que escapei. Os restantes, mais de três centenas, foram para a prisão, entre os quais o Manuel Cunha, meu cunhado.
João Soares também foi preso?
Também foi. Um PIDE mandou-me embora. Quando foram presos estava eu a caminho do Rio de Janeiro. Fui o único dos implicados a escapar. Mais tarde, em 1950, durante o Ano Santo, o Papa Pio XII pediu uma amnistia para os presos políticos. Mas Salazar não deu. O único que precisava da amnistia era eu. Os outros, afinal, já tinham cumprido a pena. Depois apareceu o pro fessor Queiró, de Coimbra, a discursar: – Portugal não pode perdoar a esses traidores da Pátria… Mas traidor era só um [risos]. E estava no Rio de Janeiro [risos].
É verdade que acolheu opositores ao regime do Estado Novo na sua casa no Rio de Janeiro?
Sim senhor! A todos prestei auxílio. E tanto foi assim que, uma ocasião, ao chegar a Lisboa, fui interpelado por um PIDE: – Nós sabemos que tem auxiliado certas pessoas… – Tenho, sim. Mas se amanhã o Salazar me aparecer desgarrado também não o abandono. – Está bem. Você é boa pessoa. Pode ir embora -, disse o PIDE.
Salazar nunca prejudicou os seus negócios?
A mim, não.
Mas ao financiar a tentativa de revolta o senhor estava a rebelar-se contra Salazar…
Pois era… Estava danado com a burocracia. Evidentemente que o Salazar também era responsável por aquilo que não praticava. Era o chefe do Governo. De qualquer modo, poderia ter confiscado os meus bens e não o fez. Depois veio o 25 de Abril e roubaram-me tudo…
Qual é o seu património actual?
É uma centésima parte do que tinha!
Mário Soares sabe que o senhor era amigo de João Soares?
Está ao corrente disso tudo. Ajudei o Mário Soares quando ele estava no exílio. Mais tarde, quando era Presidente da República, pediu ao Azeredo Perdigão para eu aceitar fazer parte do Conselho das Ordens Honoríficas, o máximo que há. E recusei.
Milagre económico
Em que ano foi para o Brasil?
Em 1941, a conselho de Washington Luís, presidente do Brasil. Getúlio Vargas era ministro das Finanças. Comecei a abrir fábricas no Rio de Janeiro, S. Paulo, Argen tina, Uruguai, Venezuela… Eram fábricas de vidro, de cimento, de várias coisas… Ainda hoje tenho uma fazenda no Brasil com 1300 cabeças de gado. Um dia, conheci um antigo diplomata brasileiro que me falou numa propriedade com muitas areias para as minhas fábricas de cimentos. Ficava a 20 quilómetros de Niterói, no outro lado da baía do Rio de Janeiro. Situada à beira-mar, tinha seis lagoas e 70 quilómetros de extensão. Era a coisa mais bela do mundo. Comprei a propriedade por 130 mil dólares. Fiquei deslumbrado. Cheguei a vender 25 toneladas de camarão por dia.
Chegou a fundar a cidade de Olímpia, no Brasil, em homenagem à sua irmã?
Gastei milhões de dólares nesse projecto. Mas o senhor |Leonel| Brizola embargou tudo. Seria a cidade mais linda do mundo. Isto é confirmado pelo Lúcio Costa, o arquitecto de Brasília.
Quando regressou a Portugal?
Em 1964, resolvi vender as minhas empresas. E depois pensei no melhor local para colocar o dinheiro. O dinheiro não tem pátria, vai para onde há melhores garantias. Qual era o país que me oferecia melhores garantias? Portugal, que tinha o orçamento equilibrado e a moeda mais forte do mundo. É por isso que hoje não me deixam falar. Portugal tinha a inflação a zero e 980 toneladas de ouro. O Financial Times escreveu: – Portugal, a continuar a sua expansão económica, atingirá o terceiro milagre económico do mundo em 1980. O que ultrapassaria muitas vezes os outros dois milagres económicos: o japonês e o alemão.
Trouxe o dinheiro para Portugal?
Sim, onde já tinha outras coisas… E quanto dinheiro trouxe? Muitos milhões de dólares. Tinha cá a Covina e outras fábricas. Até fundei o Banco Comercial de Angola, em Luanda, em 1964. Em Angola, encontrei o general Silvino Silvério Marques, de quem sou muito amigo. Comprei muitas coisas, incluindo acções de muitas companhias…
O 25 de Abril
Trouxe o dinheiro para Portugal. E depois?
Deu-se o 25 de Abril…
E os seus bens foram nacionalizados…
Nacionalizados? Roubados! Nacionalizar é um eufemismo que eles criaram. Há três países que roubaram o povo: Cuba, Rússia e Portugal. A Inglaterra, a determinado momento, estatizou. Mas pagou por isso o dobro do valor. Mitterrand, quando era presidente da França, fez o mesmo. Mas também pagou o dobro. As fábricas, nas mãos do Estado, nunca dão nada.
Que património tem na Vieira?
Uma quintazita…
É verdade que tratou o almirante Rosa Coutinho como simples marinheiro?
É verdade. Disse-lhe: senhor marinheiro: como toda a gente sabe, depois do tenebroso 25 de Abril, fez uma grande fortuna.
Pode explicar à gente como a fez?
Só disse que não era rico. Isso aconteceu durante um programa televisivo. Foi no vigésimo aniversário do 25 de Abril. Foi a primeira vez que me deixaram falar sobre os roubos.
É verdade que recebeu uma carta de Ezer Weizman, ex-presidente de Israel, a agradecer a sua ajuda a refugiados judeus durante a Segunda Guerra Mundial?
Escreveu-me uma carta a pedir que salvas se um cunhado seu, cientista… Eu era cônsul honorário do Paraguai. Fui à França ocupada, com o senhor Magalhães, cônsul português em Marselha, e conseguimos salvar o homem. Weizman, quando fez escala em Lisboa, a caminho da Nova Iorque, onde ia fazer um conferência, convidou-me para almoçar no Avis. Ofereceu-me um relógio de ouro. Weizman era professor em Inglaterra e foi o inventor do radar. Mais tarde dei o relógio ao doutor Vasconcelos Marques, grande cirurgião, o mesmo que tratou Salazar.
Quem lhe ofereceu um Van Gogh?
Outro judeu, chamado Van Bergh, veio ter comigo com um telegrama do Canadá dirigido a mim. Quando me viu começou a chorar. Contou-me que tinha a mulher e as filhas debaixo da pata do Hitler. Van Bergh, que era banqueiro, tinha a maior colecção de quadros de Van Gogh. Era um homem muito rico. Pediu-me que lhe arran jasse um visto para a África do Sul. E arranjei. Quis oferecer-me a obra-prima de Van Gogh. Não aceitei. Convidei-o, juntamente com o embaixador do Paraguai, a jantar comigo. Então ele pediu ao embaixador que me convencesse a aceitar a sua relíquia mais valiosa: uma caixa de rapé, em ouro, com uma coroa. Ainda hoje guardo esse objecto em minha casa. Uma ocasião, estava a almoçar num restaurante de Wall Street, em Nova Iorque, com directores do City Bank, quando um deles me disse que Van Bergh perguntara por mim. Telefonei-lhe e o banqueiro disse-me que tinha uma obra para mim e que não a vendia por dinheiro algum. Era a História de Portugal do Século XVIII. Também a tenho comigo. Mais tarde, numa viagem de Londres para Paris, soube que a obra-prima de Van Gogh tinha sido vendida por 56 milhões de dólares. E também soube que o banqueiro morrera.
Também arranjou um advogado a Calouste Gulbenkian…
Sim, apresentei-lhe o meu advogado, o Azeredo Perdigão…
Fez alguma coisa pelo próximo?
Fiz muito. Só à Ordem de São João de Deus dei dois milhões de contos para o tratamento dos doentes. Fui o único industrial a dar assistência social aos operários. Por exemplo, morria um operário e a viúva continuava a receber o ordenado do marido. O meu maior prazer na vida era fazer bem. Também Deus foi meu amigo. Corri riscos enormes e Deus pôs-me sempre a mão.
Que conselhos daria à geração actual?
Esta geração, coitada, anda toda envenenada. Contam-lhe a história mentirosa. Disse isso ao meu neto, quando se formou em Direito.
Amigo de reis e presidentes
Nasceu em Vieira de Leiria, em 21 de Dezembro de 1902, no reinado de D. Carlos. Com 21 anos, foi para Angola como funcionário superior de finanças. Em 1924, passou para o Congo Belga, onde exerceu cargos de direcção em importantes empresas, sendo condecorado pelo rei Alberto da Bélgica com a Ordem de Leopoldo II. Regressado a Portugal, em 1928, ingressou na Empresa de Limas União Thomé Fèteira, fundada pelo pai, donde parte à conquista dos mercados externos.
Em 1933 fundou, na Guia, a Companhia Industrial de Vidros. E, anos mais tarde, a Covina, dotada com o mais moderno processo de fabricação de chapa de vidro do mundo. Ao mesmo tempo que assegurava aos operários os meios de subsistência, benefícios que estende aos traba lhadores inválidos e às viúvas.
O Governo, em reconhecimento, condecorou-o com a Ordem de Mérito Industrial, no grau de Comendador, cujas insígnias lhe foram oferecidas pelo povo da sua terra numa homenagem pública, em 1939.
A partir de 1941 criou várias empresas no Brasil, sendo considerado o português que maior obra industrial realizou na história daquele país. Do seu império industrial, que vendeu, em 1964, para regressar a Portugal, constavam cerca de quatro dezenas de empresas espalhadas pelo mundo.
Cônsul do Paraguai em Lisboa durante muitos anos, também foi alvo de várias homenagens públicas em Portugal e no estrangeiro. Possuía várias condecorações conferidas pelos governos de cinco países. Em 1987, recusou integrar o Conselho das Ordens Honoríficas, depois de um convite do Presidente da República, Mário Soares.
Fundador de um império financeiro, que aproximou línguas e culturas dis tintas, condecorado por reis e presidentes, amigo de ditadores e democratas, Lúcio Tomé Féteira simboliza o espírito criativo e universalista do português no século XX. Morreu em Lisboa, a 15 de Dezembro de 2000.
Entrevista de Damião Leonel para os fascículos Ecos do Século XX, publicados pelo JORNAL DE LEIRIA, republicada em 2010-08-19