A última cimeira do clima (COP29) ficou, mais uma vez, marcada pela dificuldade em chegar a acordo. Era possível ter ido mais além?
Foi mais um flop. Continuo a dizer ‘antes COP do que nada’, mas precisamos de outra forma de lidar com a diplomacia internacional, porque não estamos a tomar as medidas necessárias. Não conseguimos entendimento sobre a criação do fundo de perdas e danos com alguma dimensão, para apoiar os países que quase não têm responsabilidade nas emissões de gases com efeito de estufa, mas que são aqueles que mais têm sofrido com os seus impactos. Há uma mobilização da comunidade científica a pedir medidas de combate às alterações climáticas, a comunicação social tem expandido esses avisos e as pessoas estão cada vez mais preocupadas, mas as grandes decisões não avançam.
Defende que a COP precisa de um novo modelo.
Pois precisa. A COP é um momento muito importante de comunicação, de encontro e de mostra do que se está a fazer em termos de sustentabilidade, mas, na hora da decisão, esta fica sempre aquém. No ano passado, a transferência para os países em desenvolvimento foi equivalente ao salário anual dos 10 futebolistas mais bem pagos do mundo.
Por que é que é tão difícil chegar a acordo?
Estamos com falta de lideranças. Precisamos de líderes com mais força, com mais capacidade de dirigir e de mobilizar para novas formas de encarar todos estes problema. A Covid-19 e, depois, as guerras na Ucrânia e agora no Médio Oriente vieram abafar um pouco a questão das alterações climáticas. Mas o problema não desapareceu. Pelo contrário, agravou-se e tem de ser encarado de uma forma muito mais séria, com liderança, indo buscar outros líderes, não só à política, mas também às artes e à cultura e, claro, com participação pública. Parece que estamos à espera de mais catástrofes para tomar decisões. Temos de agir e já.
Publicou no ano passado, o livro 50 Anos de Políticas Ambientais em Portugal – Da Conferência de Estocolmo à Actualidade. Por que diz que este “é um livro contra o esquecimento”?
Porque faz uma revisão, julgo que justa, das diversas dinâmicas que as políticas ambientais foram assumindo em Portugal desde o seu início. Apesar de ter sido depois do 25 de Abril que se criou uma estrutura própria – a sub-secretaria de Estado do Ambiente liderada pelo arquitecto Gonçalo Ribeiro Teles -, recuo a 1972, quando Portugal foi convidado para a conferência de Estocolmo. No livro analiso as diferentes etapas das políticas ambientais e da sua afirmação e força, por períodos e também muito em função de quem está à frente da pasta, porque isso tem muita importância. Em determinados momentos, a influência externa foi fundamental na nossa política ambiental. Aconteceu com a entrada na União Europeia. Nessa a altura, uma pessoa marcante foi Carlos Pimenta, então secretário de Estado do Ambiente.
Quais os principais avanços registados nestes 50 anos?
Há uma área que avançou claramente, embora com solavancos: o sector da água e do saneamento básico. Em 1974, só pouco mais 40% da população tinha água em casa e menos de metade tinha retrete. Em Lisboa havia 100 mil barracas e 80 mil casas clandestinas, muitas sem canalização. Tínhamos prédios de 10 andares nessas condições. Era uma situação absolutamente caótica. Aquando do 25 de Abril, a taxa de cobertura de saneamento era de 18%. Tivemos cólera em Lisboa nos anos de 1973 e de 1974, justamente por causa desses grandes bairros lata. Dar casa às pessoas era uma prioridade, mas fez-se sem qualquer ordenamento. A electricidade não chegava a 30% da população, mas a água era mais grave.
A entrada na União Europeia foi um grande contributo para os avanços registados nesta área.
Sem dúvida. Foi feito muito investimento nesta área, mas parte mal feito. O grande salto deu-se nos anos 90, com a legislação sobre a qualidade da água. Criou-se o Instituto Nacional da Água, o INAG, e criou-se a Águas de Portugal, absolutamente centrais para conseguirmos levar para a frente o abastecimento de água e o saneamento. Temos hoje mais 99% de habitações abastecidas com água de consumo de qualidade. Os portugueses podem abrir a torneira e beber. Isto é um luxo, comparando com o que se passa em tantas partes do mundo.
E em relação ao saneamento?
Andaremos pelos 87%, mas demos um grande salto, porque a situação era absolutamente caótica nos rios e nas praias. Havia muitas praias onde não se podia ir a banhos. Por exemplo, na linha de Cascais e algumas na Costa da Caparica. Não havia praias fluviais. Esta foi uma conquista extraordinária por causa do investimento no saneamento básico. No início de 2000, quando fiz o documentário “Portugal – O Retrato Ambiental”, havia situações catastróficas. O Rio Ave era às cores por causa da poluição das fábricas. Havia estações de tratamento de águas residuais [ETAR], mas não estavam ligadas.
O rio Lis é outro exemplo.
Pois é. Lembro-me de filmar em Leiria ETAR que nunca funcionaram. Houve muito dinheiro mal gasto. O Lis teve já vários projectos para o tornar uma área realmente interessante para as pessoas, mas, até hoje, não se conseguiu resolver. É absolutamente catastrófico continuar a haver tanta poluição no rio Lis, com tanto investimento que já se fez.
Parece haver agora uma luz ao fundo com a valorização dos efluentes para a produção de biometano.
O biometano é muito importante, mas é preciso haver várias soluções ao mesmo tempo e envolver as diversas entidades, fazendo com que olhem para a situação de uma forma integrada e multi-sectorial.
No sector dos resíduos houve avanços, mas estamos agora longe das metas a atingir em termos de redução e valorização.
De facto, o sector dos resíduos avançou muito, mas precisa de melhorar agora muito mais. No final dos anos 90, tínhamos cerca de 340 lixeiras a céu aberto, a escorrer para os rios, a poluir os solos, uma coisa perfeitamente dantesca em cima das aldeias e das vilas. Criaram-se condições para as pessoas separarem os resíduos, montou-se todo o sistema dos ecopontos e investiu-se muito na educação ambiental, com as escolas a corresponderem ao desafio da necessidade de separarmos os resíduos. Foi uma conquista que tem de ser reactivada, porque estamos muito atrasados nas metas dos resíduos.
Em que áreas regredimos?
Um sector em que claramente não avançámos, pelo contrário, parámos, foi o dos transportes. Desactivámos milhares de quilómetros de ferrovia, o que foi gravíssimo, porque é um transporte absolutamente essencial. Houve claramente uma regressão e um desleixo completo ao nível daquilo que são os transportes públicos eficientes. Estamos agora a tentar reverter a situação. Mas a área onde mais regredimos, embora nunca tenhamos sido muito bons nisso, é no ordenamento do território.
Num dos capítulos do livro refere que desordenamento do território “continua a ser o problema fulcro do ambiente”.
O desordenamento do território agravou-se a seguir ao 25 de Abril. É verdade que, nos anos 60, por não termos políticas de habitação – aliás, nunca tivemos políticas de habitação – não conseguimos acolher as centenas de milhar de pessoas que se mudaram do mundo rural para as cidades. Depois do 25 de Abril, o êxodo rural continuou, houve o regresso de mais de 700 mil pessoas que viviam nas antigas colónias e continuámos sem qualquer política de ordenamento do território para construção. O êxodo rural nunca parou, até hoje. Isso vê-se nos últimos Censos. Somos um país inclinado, com 80% da população a viver a menos de 50 quilómetros da costa.
O desordenamento do território reflecte-se também no estado da nossa floresta?
Claramente. O desordenamento florestal foi outra matéria em que piorámos substancialmente. O problema começou ainda no Estado Novo, com a ‘pinharização’ no Centro e Norte do País nos anos 50, que acabou também por expulsar as pessoas dos seus territórios. À medida que as pessoas saem, essas zonas ficam o abandono. A questão é que, se houver vontade política, a floresta consegue-se ordenar. Dá trabalho e exige políticas fortes, mas é mais fácil substituir uma floresta desordenada por uma floresta biodiversa ou por agricultura do que estar a demolir casas de locais onde não deviam ter sido construídas.
Em várias zonas do litoral essa situação é flagrante.
Há zonas onde se construiu em cima da areia e onde têm vindo a subir os paredões para as proteger. E o absurdo é estarmos a fazer demolições de casas em risco, como está a acontecer em Esposende, e, ao mesmo tempo, a aprovar projectos em zonas de alto risco no Algarve. Além de ser absurdo e irracional, é injusto. É absolutamente inaceitável que isso continue a acontecer, quando, cientificamente, está estudado que há zonas que vão ter de recuar, não só pela subida do nível do mar, mas pela erosão. Já perdemos 13,5 quilómetros quadrados de costa e há zonas altamente vulneráveis.
Nessas zonas, as medidas de mitigação serão suficientes?
Não. Portanto, é inaceitável deixarmos construir, com uma agravante de a Lei portuguesa não prever que sejam as pessoas que estão a construir a pagar uma eventual deslocalização. Isso vai sair do Orçamento do Estado, como já aconteceu com um resort em Vale de Lobo, no Algarve, ou com uma casa em Aveiro. Os processos vão para Tribunal, com o argumento de que o Estado/autarquias permitiram. Portanto, quem paga somos nós e as gerações futuras. Tal como já fizeram vários países na Europa, é preciso mudar a lei no sentido de responsabilizar quem construir em zonas vulneráveis.
Muitos dos projectos que estão a avançar encontram-se protegidos pelos designados direitos adquiridos. Há um caso desses na Pedra do Ouro, em Alcobaça.
Conheço esse caso. Às vezes, dá-me a ideia que todas as ciências avançam, menos a ciência jurídica e do Direito. Se sabemos que há zonas que estão ameaçadas e que o domínio público marítimo tem recuado por isso mesmo, o Direito tem de acompanhar. Se a ciência mostra que aquelas zonas vão ser invadidas, não pode haver direitos adquiridos.
O Governo aprovou recentemente uma alteração à lei dos solos que vai permitir construir em terrenos actualmente classificados como rústicos. O que pensa das novas regras?
Tem de ser muito fiscalizado para não entrarmos, outra vez, no descontrolo absoluto da construção em todo o lado. Temos muitas casas vazias nas cidades. Em Lisboa, estão identificadas 45 mil. É preciso ver quais as possibilidades de ocupar essas casas, com apoio das autarquias e do Estado para não lesar os proprietários. Não podemos ter tantas habitações vazias. Noutras cidades europeias isso não acontece. Em Amesterdão, por exemplo, uma casa não pode estar por alugar mais de três meses.
Vê riscos em deixar a decisão da alteração do uso dos solos apenas nas mãos das autarquias?
Não devia ficar só na alçada dos municípios. Há autarcas de grande qualidade, mas, até por eles, tem de haver aqui um grande controlo do Estado. Se não, há o risco de se instalar o caos em algumas dessas áreas. Podemos estar novamente a contribuir para o desordenamento do território e para a ocupar e impermeabilizar zonas que são fundamentais para não sofrermos eventos extremos como aquele que aconteceu recentemente em Valência.
As últimas décadas têm sido marcadas por desastres naturais e tecnológicos e agora também pela guerra. Estamos a caminhar para o abismo ou o progresso conseguirá resolver os problemas que vão surgindo?
Os decisores não estão a ouvir a ciência como deviam. Em Portugal, uma das grandes vulnerabilidades está relacionada com a população. Quando pensamos nas alterações climáticas, temos de pensar na nossa demografia e no impacto que os fenómenos extremos podem ter numa população envelhecida, muitas vezes isolada e sem capacidade de se mover. Mais de 50% das mortes em Valência foram de pessoas com mais de 70 anos. Também é importante a questão da literacia. As pessoas não têm conhecimento suficiente sobre esta matéria das alterações climáticas. Outra das nossas vulnerabilidades é falta de robustez das instituições políticas. Muitas vezes, as políticas públicas ficam no papel, em planos que não passam à prática, porque não há força para as implementar. O problema do desordenamento do território resulta disso mesmo. O mesmo se passa com as estratégias nacionais para o ordenamento da orla costeira e de adaptação às alterações climáticas.
O ambiente precisa de um pacto de regime?
Sem dúvida. O ambiente precisa de um pacto de regime urgentemente. E julgo que o Presidente da República devia intervir muito mais. Todas das vulnerabilidades que temos, obrigam-nos a olhar para esta situação de uma forma integrada.
A que vulnerabilidades se está a referir?
Por exemplo, os riscos que corremos por causa do desordenamento do território, associados, por exemplo, a zonas sub-urbanas altamente densificadas, onde as pessoas estão mais vulneráveis às ondas de calor e de frio. Outra vulnerabilidade é a construção em leito de cheia, mas também em encostas e até dentro de florestas. O desordenamento não foi só nas cidades. Também aconteceu nas aldeias e nas vilas. Temos um povoamento disperso que depois é mau ao nível dos incêndios, mas também pelo custo das infra-estruturas. Já falei das zonas costeiras, muitas delas altamente densificadas e susceptíveis a sofrer tempestades costeiras e com a subida do nível do mar. A política de ordenamento do território, de planeamento, tem que ser absolutamente prioritária, até do ponto de vista económico. Além de pouparmos vidas, de melhorarmos a qualidade de vida e o bem-estar das populações, as políticas adaptativas são muito mais baratas do que os impactos de nada fazer.
Portugal regista um grande incremento da energia solar. Só que, em alguns casos, isso está a ser feito à custa da desflorestação e da ocupação de solos agrícolas.
Hoje, mais de 60% da nossa electricidade já é renovável. E isso é importante para a segurança energética do País e também para a economia. Mas no solar estamos a cometer erros. O que fazia sentido era democratizar e descentralizar a produção de energia solar nos telhados ou em pequenos terrenos, com projectos de menor dimensão, mas que podem fazer grande diferença no País e beneficiar as pessoas directamente, através das comunidades energéticas ou de auto-consumo. Há imensos pedidos na Direcção-Geral de Energia e Geologia, mas que não avançam. Há uma burocracia que não se compreende. Fazer grandes centrais solares, no modo como se está a processar em Portugal, é absolutamente irracional. O Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) fez um levantamento dos locais onde se poderiam implementar algumas centrais solares de maior dimensão com menores impactos. No entanto, esse estudo não serviu para nada. Faz-se ao contrário. É o investidor a escolher.
Percurso: Entre as ciências sociais e o ambiente
O percurso de Luísa Schmidt tem andado sempre entre as ciências sociais e o ambiente. Socióloga e investigadora coordenadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa) integra a equipa que introduziu a Sociologia do Ambiente em Portugal, tanto na investigação como no ensino e na articulação entre academia e sociedade. Fez parte do grupo de investigadores que criou o Observa – Observatório de Ambiente, Território e Sociedade, que coordena, e onde desenvolve vários projectos de investigação. É ainda membro do Conselho Nacional do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. É colunista regular no jornal Expresso, onde aborda, sobretudo, questões ligadas ao ambiente e à cidadania, e tem 20 livros publicados.