Catarina Caseiro acredita que teria sido possível salvar o filho, de 23 anos, se Enzo começasse a consumir canábis mais cedo, para lhe abrir o apetite, fortalecer e tirar as dores causadas pelas sessões intensivas de quimioterapia a que foi submetido para combater um cancro ósseo. A conselho do médico, a florista de Leiria teve de recorrer ao mercado negro para comprar erva, sem saber se tinha qualidade. Para evitar que outras pessoas passem pela mesma situação, defende a legalização da venda de sementes ou plantas de canábis para fins medicinais.
A mãe do jovem conta que os vómitos e as náuseas causadas pelas 96 horas de quimioterapia seguidas, por sessão, tiraram o apetite a Enzo. “Ficou muito magro e perdeu a massa muscular rapidamente”, diz. O médico especialista em Oncologia e Hematologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra, Paulo Freitas Tavares, recomendou-lhe, por isso, que comprasse canábis, para o filho ter mais apetite e poder continuar a fazer os tratamentos. Quando Catarina lhe perguntou onde a devia adquirir, o clínico disse-lhe para abordar um barman ou um segurança de uma discoteca.
Com a ajuda de amigas, Catarina Caseiro, 50 anos, conseguiu comprar erva, com a qual preparou manteiga aditivada, brownies e bolos com pepitas de chocolate, seguindo as receitas que lhe enviaram do hospital. Apesar da renitência inicial de Enzo, a mãe garante que deixou de vomitar e passou a ter mais apetite. “Pedia-me kebab, pizas e hambúrgueres”, recorda. “E o que eu mais queria era que ele aguentasse a comida no estômago”, explica. A canábis atenuou-lhe ainda as dores, causadas pelo cancro e pelas escaras.
Proibir não resulta
“Ninguém deixa de fazer nada por ser ilegal. Quando temos um filho a morrer, vamos atrás de tudo”, assume a mãe de Enzo. “Podemos é correr perigos desnecessários e, se as coisas fossem legalizadas, sabia o que lhe estava a dar”, sublinha. “Sou a favor da legalização da venda de canábis por uma questão de saúde pública: há uma diminuição de riscos e de danos”, confirma Paula Mota, jurista e presidente da Associação Mães pela Canábis (AMPC). “É preferível termos uma substância controlada do que andar a comprar no mercado negro.”
Mãe de uma jovem de 15 anos com epilepsia grave e resistente à medicação, Paula Mota, 52 anos, conta que, a partir dos 6 anos, as crises de Margarida tornaram-se constantes e prolongadas. “Até aos 9 anos, chegou a experimentar 20 antiepiléticos”, afirma. Em 2017, foi-lhe diagnosticado síndrome de Dravet. “Fazia 16 comprimidos por dia e uma série de terapias, mas as crises continuavam.” Quando soube, através da internet, que havia pais nos EUA a dar CBD (canabidiol, um dos ingredientes activos obtido da planta de canábis, que não tem efeito narcótico) aos filhos, começou a reduzir a medicação a Margarida, a dar-lhe CBD e o comprimido para o síndrome.
“Ao fim de 15 dias, já conseguia andar e abrir mais os olhos”, garante a presidente da AMPC. “Começou a reagir, a ler, a escrever e a socializar com os colegas.” Apesar da legalização do uso de canábis para fins medicinais, em 2018, continua a adquirir um óleo no mercado paralelo, que manda analisar com regularidade, e as crises de Margarida tornaram-se mais pequenas e espaçadas. De manhã, toma CBD com CBG e à noite a dose inclui ainda THC. “Tem uma vida quase normal, porque as melhorias são brutais. Se pudesse andar para trás no tempo, a minha filha não tinha tomado nem um terço da medicação química.”
Médicos sem formação
Apesar da legalização do uso da canábis medicinal, Paula Mota lamenta que não tenha sido dada formação aos médicos, como está previsto na lei. “A maioria dos neuro pediatras não se opõe ao uso do CBD, para reduzir os efeitos secundários da medicação química, mas não há o que prescrever no mercado”, denuncia. “O Infarmed [Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde] determinou apenas sete patologias que podem ser tratadas com produtos à base de canábis, que incluem a epilepsia, mas não existe nada na farmácia indicado para crianças e jovens.”
A jurista contesta ainda que Alzheimer e Parkinson não constem entre as sete patologias, e os preços praticados nas farmácias. “Pode ser prescrito pelo SNS, mas não é comparticipado”, assegura. Criou, por isso, um movimento, para tentar ajudar as famílias, e lançou uma petição pelo direito ao cultivo pessoal e associativo dos pacientes da canábis medicinal. A agora associação encaminha ainda os pais para médicos espanhóis e israelitas, através da internet.
Paulo Santos, fundador e gerente da Loja da Maria, aberta há 20 anos, nas Caldas da Rainha, considera contraditório proibir a venda de canábis, se o consumo foi despenalizado. “Na Alemanha, já autorizam as pessoas a plantar três plantas”, exemplifica. Ao início, além de vender fertilizantes, terras e lâmpadas, comercializava sementes, obtidas em Espanha, onde é permitida a venda, mas como foi diversas vezes a tribunal, deixou de o fazer, apesar de assegurar ter ganhado todos os processos. “É melhor ter uma planta do que comprar no mercado negro.”
Face a essa restrição, fechou a loja de Badajoz, mas mantém abertas as do Porto, Lisboa e Coimbra, para estar mais próximo dos clientes. “A canábis medicinal tem de ter THC, para se vender nas farmácias, mas é difícil obter receitas médicas, porque os médicos não estão bem informados. Só os que têm mais mente aberta”, afirma o gerente da Loja da Maria. Além disso, só é permitido comprar se os medicamentos não tiverem resultado.
“Há 20 anos que fazemos medicação para ajudar pessoas que têm cancro, epilepsia, fibromialgia, Alzheimer, insónias, vítimas de acidentes que perderam a mobilidade ou que fazem quimioterapia”, revela Paulo Santos. “Para as dores é sempre bom”, assegura. “Agora, se não for através da planta, é muito difícil arranjar um produto de qualidade.” Os principais clientes são pessoas mais velhas. Compram pomadas para as pernas cansadas, articulações e varizes, com o objectivo de aliviar a dor, “quase sempre esgotadas”, devido ao aumento das vendas.
Qualidade de vida
“Os clientes que nos procuram estão fartos de fármacos e querem ter qualidade de vida”, sublinha Igor Amorim, sócio da CB Weed, em Leiria. “Temos uma venda muito consistente dos nossos óleos, sobretudo a 10%, que resolvem os problemas mais simples”, explica. “Mas só ao fim de uns 15 dias é que o óleo começa a fazer efeito. As pessoas sentem menos ansiedade, começam a dormir melhor e deixam de sentir dores”, afirma. Já para pessoas com fibromialgia, diz que têm de ter uma percentagem de 15 a 20%. “O feedback é muito bom.”
A prova disso é que, no segundo ano de actividade, a CB Weed duplicou as vendas, e a expectativa de Igor Amorim é triplicar no fim deste ano. Com clientes entre os 30 e 70 anos, revela que “muitas pessoas” têm trocado o tabaco por CBD. “As flores são mais vendidas, mas o efeito dura pouco tempo e o alívio é momentâneo, enquanto o óleo tem uma acção de 12 horas no corpo”, refere.
Em 2023, foram prescritas 1157 embalagens de canábis medicinal com THC, enquanto no ano anterior foram passadas receitas médicas para 929. O Infarmed concedeu ainda autorização de cultivo a 29 empresas, de fabrico a 19, de importação/exportação a 37, e de distribuição por grosso a nove. A quantidade exportada foi de 11973 quilogramas, sobretudo para a Alemanha, Polónia, Espanha e Austrália.
Paulo Freitas Tavares, médico oncologista: “Há doentes que morrem à fome e por falta de hidratação, por recusarem consumir canábis”
Por que recomenda canábis aos pacientes em quimioterapia?
Para anular a náusea e a má disposição que impede que comam e bebam. Um doente em quimioterapia, se deixar de comer e de beber, morre, ou então arranja graves lesões renais ou coisas do género. No hospital, pomos o doente a soro ou, se for preciso, com alimentação parentérica e o problema alimentar está resolvido, mas quando está em casa tem mesmo de comer, beber e não vomitar. Hoje, temos medicamentos que controlam 95% da náusea da quimioterapia, mas o tal restinho que fica dessa má disposição, para alguns doentes, é impeditivo de terem uma qualidade de vida aceitável e de fazerem uma nutrição e uma hidratação adequadas. Infelizmente, ainda tenho doentes que morrem à fome e por falta de hidratação, por recusarem consumir canábis. Isso é especialmente dramático quando são jovens e são os pais ou as mães que dizem que não querem meter o filho na droga. Há doentes que têm de decidir todos os dias se tomam opioides e passam um dia sem dores, mas a vomitar, ou se não tomam opioides e passam o dia a comer, mas cheios de dores. Se associarem a canábis ao tratamento conseguem o melhor dos dois mundos. A canábis devia ser disponibilizada gratuitamente ou a um preço simbólico a todos os doentes oncológicos. Funciona em 100% dos casos e logo após a primeira toma.
Por que não há mais médicos a prescreverem produtos com canábis ou a recomendarem aos pacientes o seu consumo?
Neste momento, não há nenhum produto com qualidade na farmácia. Há dois ou três derivados de canábis, com muitas restrições, e são específicos para doentes neurológicos, pelo que só podem ser receitados por neurologistas, e as outras coisas que existem não têm composições adequadas ao fim que pretendo. Recomendo aos doentes que procurem canábis no mercado negro, porque é perfeitamente inócua, nunca matou ninguém e é mil vezes menos perigosa do que o álcool. Não há muitos médicos a encorajar os doentes a irem ao mercado negro comprar, por uma questão de preconceito e porque entendem que nunca se sabe o que se compra. O ideal seria venderem derivados da canábis com uma composição adequada em farmácias hospitalares ou nas farmácias de rua, mas isso ainda não acontece por culpa das empresas e do Infarmed, apesar da legalização da canábis ter sido aprovada em 2018. O Infarmed não delega, não encoraja, e depois há duas ou três empresas a vender produtos de má qualidade, a preços especulativos, que não têm nada a ver com os custos de produção, que são reduzidíssimos.
Apesar de a lei determinar que o consumo de canábis é legal, considera que a indústria médica interfere para haver poucos produtos no mercado?
É claro que a indústria não tem interesse nenhum que apareça um medicamento que resolve vários problemas das pessoas, sem gastarem um tostão. E o Infarmed vive muito da indústria.