Entrevista publicada originalmente a 23 de Novembro de 2018
Ainda se sente um aprendiz da arte, da pintura e da cerâmica, “um aprendiz de tudo”, como um dia disse?
Enquanto trabalhamos estamos sempre a aprender. Quando se é – custa-me usar esta expressão – um “artista verdadeiro”, que trabalha sinceramente, está-se sempre a descobrir e sem fazer qualquer esforço para isso. São coisas que têm de acontecer naturalmente, pois, se não há um trabalho espontâneo, não se acrescenta nem descobre nada. A minha vida inteira tentei ser sincero no trabalho. Se tiverem esse dom, qualidade ou defeito, todos os artistas, sem darem por isso, sem fazerem esforço, fazem acontecer as coisas. Um poeta nasce poeta, não é? Por exemplo, Mozart, que admiro muito, nasceu a saber. E é o mesmo na arte, na pintura e em qualquer profissão.
É por isso que cumpre o ritual diário de se sentar em frente a uma página branca e deixa fluir por si a inspiração?
Conheci um pintor que dizia que estar em frente a uma tela branca é como estar em frente a um touro. “É um medo; o que vou arrancar daqui, o que vou fazer?”, dizia ele. Eu atiro-me para a frente e deixo andar. Há muitos anos, o Jorge Amado organizou uma viagem de 15 dias ao Brasil, com um grupo de artistas de tudo, até a Amália Rodrigues foi. Quando lá chegámos, ofereceram uma t-shirt a cada um. Na frente, em várias cores, estava escrito: “deixa o teu coração mandar”. Conto esta história aos jovens estudantes franceses, quando faço visitas às escolas, porque quando eles começam a fazer desenhos é interessantíssimo ver a diferença entre aqueles que querem procurar algo de muito intelectual e aqueles que estão à vontade, a deixar o coração andar.
No entanto, o mestre também diz que aquilo que fixa na sua cerâmica, pintura e tapeçaria, é uma reinterpretação do que vê. Há, aí, um filtro intelectual do artista.
É claro! Quem se entrega a esta actividade e gosta disto tem de o fazer. Por vezes, os artistas esquecem-se disso, porque entram num estado especial, fruto de uma entrega total, porém, nada do que fazemos é por acaso, mas uma sensação que queremos transmitir aos outros. É uma mensagem. Pessoalmente, entendo que as cores são todas lindas, mas é preciso saber qual é a que se põe ao lado da outra. A mensagem deve ser transmitida no conjunto das cores. Também na música, há imensa variedade de bons sons, uns ao lado dos outros, mas é preciso saber compor. Quando pintamos, colocamos uma cor aqui e outra ali e é preciso que haja equilíbrio. Se pesar mais para um lado, o quadro fica errado e não gostamos do quadro. Não nos sentimos bem. Olhamos para ele e há qualquer coisa que não está certa.
É um homem discreto, que não gosta de estar em evidência. Enquanto artista, esse luxo existe?
Depende. Aceito tudo. Há artistas que são um pouco exibicionistas, mas fica-lhes bem. Sentem-se bem com isso. Veja aqueles bigodes do Dalí… ou as brincadeiras do Andy Warhol. Se fossem discretos, não eram eles! Eu, quando era novo, fazia uma vida mais social, ia a exposições e a todo o lado, mas hoje quero é estar descansadinho. E andar por aí o menos possível. Um dia fizeram um livro com a minha obra em Paris e o dono da galeria com quem trabalho disse-me: “ó Manuel, tu, que conheceste toda a gente, deves ter uma colecção de fotografias fabulosa”. Respondi-lhe que, por acaso, não tenho. Ele insistiu e que ia para a minha casa procurar. Lá lhe expliquei que, quando nos pediam para tirar fotografias, fazia tudo para ficar lá atrás. Sempre detestei estar à frente!
Fotografias não tem, mas tem recordações de artistas como Maria Helena Vieira da Silva ou do marido Árpád Szenes, artistas de quem era amigo…
Também vivi muitos anos, na mesma rua do Picasso. Ele, no número 7, e eu, no 19. Com a Maria Helena e com o Árpád havia uma relação especial. Conhecemo-nos em Portugal, em 1954, na minha segunda exposição. Foram vê-la e deixaram um cartão na galeria, sem me conhecerem, a convidar-me para um almoço no dia seguinte, em sua casa, em Lisboa. Foi o início de uma relação muito forte.
Enquanto ceramista, costuma dizer que é “o mais antigo operário da Fábrica de Cerâmica da Viúva Lamego”, mas, a sua obra, conta com peças na pintura e em tapeçaria. Alguma vez se sentiu tentado a misturar estas técnicas?
Não. Nem na minha cabeça. Neste momento, quando inicio um trabalho, já pensei nele durante muito tempo. Especialmente, quando é uma encomenda de responsabilidade. Fiz muitas serigrafias e litografias na minha vida. Fiz muitas… na proporção pequenina que é Portugal. Houve um crítico de arte português que disse mal de mim porque eu estava a “estragar a vida dos outros artistas” porque já tinha “mais de 200 edições”. Até hoje, fiz duzentas e poucas. Por comparação, o Tàpies, artista catalão, ofereceu para uma fundação francesa três mil diferentes. Sabe por que foi que as fiz? Porque entendo que as pessoas que não tinham dinheiro para comprar um original, poderiam levar uma obra minha para casa. A minha pintura não agride e essas pessoas, quando chegam a casa olham para ela e descansam. Sempre quis esse objectivo para a minha arte.
Neste momento, tem em mãos alguma obra de grande fôlego?
Há 23 anos, decorei a estação de Champs Élysées-Clemenceau, a mais central do metro de Paris, que dá acesso ao Grand e ao Petit Palais. Encomendaram-me obras para cerca de 70 metros do átrio da estação e agora pediram-me para continuar o trabalho num novo túnel de acesso ao Grand Palais. É um trabalho que me preocupa, absorve e chateia. Há quem me critique porque faço muita coisa “pequenina”. Posso fazer obras muito grandes, mas onde me encontro é nas pequeninas. Um dos pintores que mais admiro era o suíço-alemão Paul Klee e o Picasso dizia que ele era “o maior dos mais pequenos”. Toda a obra dele é composta por peças e quadros pequenos, mas é fabulosa!
Manuel Cargaleiro. Poeta da Arte é o nome da exposição de obras suas que o Museu da Consolata, em Fátima, tem patente até ao ano que vem. Mas há uma ligação mais antiga entre si e a cidade.
Na Escola Arroios, em Lisboa, onde fui professor de Pintura de Cerâmica foram realizados todos os painéis da Via Sacra da Basílica antiga do Santuário. Foi na minha sala de aula e tive a ajuda de um grupo de alunos do curso de Cerâmica que escolhi entre os finalistas. Demorei dois anos a concluir o trabalho. Foi o Lino António, director da escola e pintor natural de Leiria, que ganhou o concurso para idealizar este trabalho e que me chamou. Disse-me: “nunca pintei nada em cerâmica. Tu, põe-me isto em cerâmica”. Hoje, compram-se os esmaltes e tintas, já tudo preparado, mas, naquela época, não. Era eu quem preparava as cores e fazia as tintas. O Lino António, que não percebia de cerâmica, colocava cores que não existiam nesta disciplina. Quando o avisava, ele dizia-me que mudasse os tons e que fizesse como entendesse melhor. Ele queria que eu assinasse, mas eu tinha vinte e poucos anos e recusei. Se calhar, considerava que aquilo era muito clássico e já queria outras coisas. Mesmo assim, eu e os alunos colocámos as nossas iniciais. As minhas, MC, estão lá. Aqueles painéis têm imensos segredos.
Que impressão tem dos fenómenos políticos que se estão a passar na Europa, Estados Unidos e Brasil?
Nestes anos todos de vida, já vi pior. Vivi 40 anos no antigo regime e assisti a coisas de que não gostei nada. Aprendi a ser democrata em França, onde fixei residência em 1957. As pessoas pensam que a democracia é brincadeira, mas não é! A França é um país rigidíssimo. Nas ruas, sentimos a força da protecção e da polícia. No bairro onde moro em Paris, posso sair de casa às 2 horas da manhã e ir dar uma volta. Não tenho medo e não há perigo.
Alguma vez se arrependeu de não ter sido agrónomo, como o seu pai desejava?
O meu pai era agricultor e queria que o meu irmão fosse veterinário – e foi – e que eu fosse agrónomo. Era o sonho dele. Não, nunca me arrependi. Gosto imenso da agricultura, mas foi isto que me seduziu. Tenho de dizer que, felizmente, os meus pais viveram o suficiente para poderem ver o meu sucesso. Não poderia ligar menos a isso de ter ou não sucesso, mas, sinceramente, tenho de admitir que o tive e que a minha maior alegria é saber que os meus pais o testemunharam. Esse foi o meu maior sucesso.
“Espalhei-me por muita coisa”
Nascido a 16 de Março de 1927, em Vila Velha de Ródão, Manuel Cargaleiro é um dos últimos grandes mestres da arte do século XX. O encontro com a arte começou, em criança, numa olaria no Monte de Caparica.
Cargaleiro ia ver o oleiro fazer peças saídas de uma bolinha de barro e começou a pedir-lhe barro com que modelava bonecos. Numa visita ao Museu de Arte Antiga conheceu o historiador de arte Luís Reis Santos que lhe apresentou António Barradas.
“Sou o seu ‘filho espiritual’. Foi um dos poucos renovadores da cerâmica, nos anos 40-50. Na Fábrica da Viúva Lamego, partilhávamos o atelier. Ele tinha dois terços e eu um. Fui para lá com 17 anos e aprendi imenso com ele.”
O artista foi docente na Escola António Arroio, antes de se fixar em Paris, e quando deixou o estabelecimento de ensino, recomendou que o seu posto fosse ocupado por Querubim Lapa, outro grande mestre da cerâmica.
“Fui para Paris e espalhei-me… pela pintura, pela tapeçaria… espalhei-me por muita coisa.” O Consolata Museu | Arte Sacra e Etnologia, de Fátima, acolhe a exposição Cargaleiro, Poeta da Arte mostra de 32 trabalhos, entre serigrafias e litografias de vários períodos do artista.