Em conjunto com o pintor de Leiria Hirondino Pedro, tem patente a exposição L’aprés midi d’un faune, na Galeria Perve, onde ambos brincam com a identidade e com o “apagamento nacional”. É um apagamento na cultura?
Somos um País de tradição de poesia e de literatura muito rica. Temos alguma tradição pictórica menos rica do que a literatura, mas a questão principal é que, mesmo na literatura, tivemos sempre muitas influências externas e isso também aconteceu na pintura. Cada vez mais, essas influências tornaram-se determinantes e mais importantes. Mantém-se uma atitude de: “aquilo que está a dar é o que se faz lá fora” que é, mais ou menos, igual à que havia nos anos 50 ou 60, só que, neste momento, temos uma influência quase instantânea vinda pelas redes sociais. Não é preciso ir a Paris para se ver o que lá se está a fazer. Estamos mais ou menos obcecados com a velocidade, o que não quer dizer que as atitudes não sejam muito semelhantes. Por outro lado, existe, dentro da tradição ocidental, uma espécie de imperialismo cultural norte-americano ou anglo-saxónico. Na arte, há também um bocadinho de alemão – os grandes centros económicos são também os grandes centros culturais que acabam por impor a sua visão e pontos de vista estéticos. A maneira que temos para contribuir para a civilização ocidental ou de seja o que for, é sermos, o mais possível, iguais a nós próprios e tentar afirmar-nos através da nossa originalidade e peculiaridades. Temos de nadar contra esta corrente que nos leva para um mundo onde não existe uma diferenciação intelectual.
Prevê um futuro onde haverá uma orientação intelectual de régua e esquadro?
Em Portugal, as pessoas que se ocupam da cultura têm uma visão a régua e esquadro. É sempre académica e não uma visão sensível. Têm de haver uma formação muito escrupulosa, a nível académico e teórico, mas também de existir uma sensibilidade poética, pictórica e conhecer as coisas. Acima de tudo, não ter medo de que aquilo que é original possa contradizer os “diktados” dos centros internacionais de arte.
Quando apresentará o “candidato Vieira” a sua tradicional candidatura a candidato à Presidência da República?
Ele é uma personagem folclórica e sê-lo-à sempre, até ao momento em que arranjar dinheiro para concretizar a questão das 7500 assinaturas… Neste momento, parece que é preciso ganhar o Euromilhões ou o Totoloto para isso. Só nessa condição se poderá passar a um patamar superior… O “candidato Vieira” começou por ser uma simples performance sobre política, onde se misturava a política e a realidade da política. Diz-se que a política é a “arte da realidade”, onde a arte da irrealidade está no meio da arte da realidade e a ficção está no meio da realidade. A política, que é a tal arte da realidade é, na verdade, a arte da ficção. Os media criam ficções e o que são a ficção e a realidade? O “candidato Vieira” é a ponte do absurdo entre esses dois mundos. Até poderia haver condições para um entrosamento entre os dois mundos mas, a partir do momento em que as barreiras burocráticas se colocam, é muito difícil passá-las, sem ter um um grupo coeso, sólido e militante ou dinheiro.
E sem a má companhia dos partidos políticos?
Com um grupo, era possível fazê-lo. Da última vez, conseguimos mais de oito mil assinaturas, mas, reconhecidas, não chegava a duas mil, porque as pessoas não têm problemas em assinar, o problema é ir à Junta de Freguesia fazer o reconhecimento que demora uns dias e implica mais duas assinaturas. Não é preciso pagar, mas as pessoas têm de levar uma seca à espera e isso não lhes apetece. Éramos três pessoas na organização e, depois dos espectáculos e das recolhas de assinatura, tínhamos seis mil assinaturas para reconhecer, de Bragança a Ponta Delgada. Era inexequível. Se fôssemos um partido, teríamos gente em todas as capitais de distrito que poderiam resolver a coisa.
“Só desisto se for eleito!”
Manuel João Gonçalves Rodrigues Vieira nasceu em Lisboa a 17 de Outubro de 1962. Artista plástico com uma obra onde predomina o sarcasmo e o humor, estudou na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, mas boa parte dos portugueses conhece-o pela sua carreira musical nas bandas Ena Pá 2000, Irmãos Catita ou Corações de Atum, e pelas memoráveis personagens absurdas que criou como Lello Universal, Orgasmo Carlos ou o “candidato Vieira”.
Foi membro do movimento Homeostético e candidato a candidato à Presidência da República por duas vezes, estando a anunciar a terceira candidatura para 2016. “Só desisto se for eleito!” E “se for eleito presidente, reúno todas as condições para desistir” são os seus slogans. Tinha seis anos, quando começou a comprar a revista Tintim… porque queria fazer banda desenhada. E fez.
Editou algumas BD mas, aos 18 anos, teve de optar entre Letras e Belas Artes.
“A primeira, tinha Literatura, História e conto, que podem estar na base das novelas gráficas… Mas decidi ir para Belas Artes. O meu interesse pela disciplina também aconteceu pelo contacto com o grupo Homeoestético, quando comecei a separar a narrativa da parte visual.”
Filho mais velho de João Rodrigues Vieira, diz que o pintor sempre foi uma pessoa com quem podia falar sobre o seu grande entusiasmo e assoberbamento pela pintura. “Faz-me muita falta falar com ele.”
Para o NOS Alive levou, como organista, “Varoufakis, o grego”.
Foi a sua maneira de mostrar solidariedade para o que se passa na Europa e na Grécia? É verdade. Ele tem dois dedos numa mão e oito na outra… Compensa, de certa forma… Gosto muito da religião ortodoxa grega e, por outro lado, os gregos mostraram que é possível dizer não. Aquilo que aconteceu em termos negociais, mesmo assim, foi positivo. Não ganharam muita coisa… e continuam debaixo da pressão da dívida. Mas nós, em Portugal, nunca tivemos sequer uma atitude próxima da dos gregos. A verdade é que existe uma grande pressão e uma grande ameaça do “Estado central europeu”, que é a “Alemanha do patrão”. Existe uma espécie de fascismo económico e fiscal que joga contra os países da periferia europeia, mas isto não pode ser visto de uma forma isolada de tudo o resto que se passa no Mundo. Aquilo a que chamam “neoliberalismo” é uma força que se revigorou com o fim do Muro de Berlim. Antes disso, a social-democracia era uma espécie de fachada social confortável para mostrar ao outro lado do muro que vivíamos bem. A partir do momento em que a sociedade alternativa do outro lado desapareceu, por muito má que fosse, não há razão para continuar com “a palhaçada socialdemocrata”… é o que pensam os gajos do imperialismo económico. E estão a tornar as coisas diferentes. Estão a tentar uma hegemonia global do bloco anglo-saxónico, enquanto outros blocos reagem e nós somos apanhados no meio. Como diria Salazar, “a partir do momento em que cada português deixa de ter o seu quintal para plantar as suas couves, corre o risco de passar mal” no meio da economia global. O que o “candidato Vieira” faria seria tornar cada português num país auto-suficiente.
Como faria isso?
Visto que o tráfico internacional de droga é dos negócios mais importantes ao seguir ao armamento e ao petróleo, Portugal deveria transformar-se, não já na actual plataforma giratória do tráfico de droga, mas num produtor. Deveriam ser feitas grandes plantações de cocaína, ópio e Sumol de ananás, para exportar directamente para a Europa. Deveriam transformar-se também alguns pontos de Portugal em paraísos fiscais, para lavar o dinheiro e tornar cada português auto-suficiente… em termos de alimentação. São ideias, que não são tão estúpidas como parecem. Podem tornar-nos num Estado pária, é verdade, mas até a Grécia, que apenas quer uns tostões para viver dignamente, foi transformada num Estado pária. Mas isso é preciso ser preparado. Não acontece de um momento para o outro… demora, pelo menos, umas duas semanas. Claro que teríamos de sair do euro e proponho uma nova moeda portuguesa que seria o “narco”.
O dia 13 de Julho de 2015, com a assinatura do acordo de resgate entre a Grécia e a União Europeia, marca o fim da União Europeia e do sonho de Robert Schuman?
Schuman era um grande compositor e não é para aqui chamado, embora fosse alemão. Mas a sério… o sonho da Europa está em cada um de nós e cada um de nós tem um sonho diferente da Europa. Deveríamos pensar no sonho que queremos para o nosso País e como esse sonho pode contribuir para um sonho europeu. Devemos começar por aquilo que podemos manipular mais facilmente. É verdade que os portugueses estão um bocado distraídos do projecto europeu, é verdade que não há informação, é verdade que o que existe é desinformação e os meios de comunicação estão dominados, a 95%, por um determinado sector e o que existe é espelho de apenas um dos lados da informação. Não são dados todos os lados para as pessoas poderem julgar, caso se interessassem. São bombardeadas com programas de televisão e outras coisas que têm o objectivo declarado de as estupidificar. Até a cultura está a trabalhar para estupidificar as pessoas. O que dá na televisão? Uns tipos numas cidades com uma arquitectura horrível, no meio da província, com música pimba, a dizer uns disparates boçais. É a isso que chamam “portugalidade”. Portugal tem a possibilidade de ser um império intelectual, como já quase foi um império naval. O sonho do 5.º império de Fernando Pessoa aponta para determinadas possibilidades e nós temos de pensar sempre no mais e não no menos. Lancei agora com os Irmãos Catita um disco chamado Portugal dos Pequenitos, porque, na Europa, os portugueses comportam-se como se fôssemos um circo de anões. Não somos um circo de anões, somos pessoas normais como os alemães ou outros povos quaisquer. Cada um de nós é um centro de decisão e para sabermos pensar, temos de nos informar e a cultura é essencial para isso. A cultura é tão essencial como comer ou beber. Hoje, as pessoas estão a comer e a beber pequenos venenos que não alimentam. Quando compreenderem que a cultura é essencial, talvez o País se possa levantar moralmente.
Ainda acredita num Portugal alcatifado?
Isso era uma metáfora para o que estavam a fazer em Portugal, naquele tempo, que era alcatroar esta porcaria toda. É verdade que o País alcatroado tinha a vantagem de não ter incêndios e os portugueses gostam de alcatroar, alcatifar, eucaliptizar e eu era contra essa maneira de ver – na época, era também contra um tipo de construção civil que estava a uniformizar Portugal de uma maneira hedionda e que, hoje, domina a paisagem, sendo raro vermos uma aldeia com um mínimo de qualidade visual, como a que existia no tempo de Salazar. Pessoas que não têm o mínimo de informação visual e são quase analfabetos, acabam por criar esta paisagem urbana ridícula com azulejos e outras coisas. Portugal precisa de uma reforma a todos os níveis. O País precisa de fisioterapia para ficar mais forte fisicamente, psicoterapia para combater a loucura e precisa de pensar um bocado
Dentro de si, vivem o Lello Minsk, o Lello Marmelo, o Elvis Ramalho, o “candidato” Vieira e mais umas quantas personagens. Essas personalidades múltiplas colocam-lhe dificuldades ou convive bem com elas?
Não tenho os sete anões dentro de mim e isto não tem que ver com o universo pessoano. É uma coisa mais terra-a-terra e pequenina e relacionada com a dificuldade que tenho em encarar o meu próprio nome em determinadas acções. Inscrevo-me como Manuel Vieira na minha pintura e estou mais ou menos bem com o meu nome do BI. Mas, em relação a coisas como os Ena Pá 2000, dá para inventar pseudónimos, e, como tinha vários grupos, senti que os pseudónimos deveriam ser diferentes. Quando repeti o “vício”, na minha experiência nas artes plásticas, como Orgasmo Carlos, foi exactamente porque ele é um personagem fictício que faz arte que é uma crítica a determinado tipo de expressão contemporânea e pensamento. É por isso que é um personagem rocambolesco e absurdo, porque a arte nacional tem o vício de não ter um grande humor. Na época do Orgasmos Carlos, os artistas vestiam de preto. A arte era uma espécie de sacerdócio onde a seriedade ia de mãos dadas com o lambe-cuzismo… ou o culambismo e o lambe-botismo. Tudo isso continua actual. “Deveria haver, algures em Portugal, uma estátua, numa rotunda, com uma língua a lamber um rabo”. Seria fundamental, dentro da nossa prática social.
É professor na ESAD.CR. Vê vantagens em transformar o Politécnico de Leiria em universidade?
Sou professor de Desenho. O Politécnico está a trabalhar muito bem nas Artes Plásticas e no Design. Se a transformação em universidade abrir mais possibilidades em termos de investigação e doutoramentos, sou a favor. Mas, diga-se, devido à austeridade, o ensino universitário está sob cerco. Há universidades que têm pouco apoio estatal e que se vêem gregas – lá está – para resolver os seus problemas de financiamento. Dizem que o ensino deve ter apenas aquele tipo de cursos que garantem empregabilidade… Tem de haver cursos desses, mas também tem de haver opções para quem não quer “empregabilidade” e quer ser investigador ou artista. Um país é feito de tudo isso.
É uma formatação através da educação?
O ensino primário e secundário deveriam ser de maior qualidade, como já foram. Por exemplo, uma coisa que não ajuda de todo à qualidade e ao enriquecimento da cabeça das pessoas é o Acordo Ortográfico, que transforma a língua portuguesa num idioma mais pobre e mais absurdo, mais parecido com o newspeak orwelliano. Orwell escreveu um livro chamado 1984 que fala de um país onde se iam retirando fonemas e palavras à língua até ela ficar o mais básica possível, para as pessoas não saberem pensar e terem mentes simples. Vejo, incrédulo, que se passa uma coisa parecida na língua portuguesa em prol de uma Lusofonia de que mais ninguém quer fazer parte. O Português deve evoluir de forma natural e não com um espartilho criado por meia-dúzia de obscurecidos.