Com a pandemia, o que é que ficou a descoberto no sector social?
Ficou muito evidente que as comparticipações do Estado eram, de facto, muito baixas. Já sabíamos que assim era, mas agora ficou completamente à mostra. O sector social está com um grave problema de sustentabilidade.
Ainda antes da pandemia, já alertava para esse problema.
Pois já. É um problema que não resulta apenas da pandemia. Já vinha detrás, mas agravou-se com a Covid-19 e, de dia para dia, está pior. Há outros factores a acrescer, como o aumento justíssimo do salário mínimo. Ninguém discute essa necessidade, mas o Estado não acompanhou o impacto que a medida está a ter nas instituições. Somos consumidores finais. Não podemos fazer repercutir o aumento dos custos na comparticipação paga pelos utentes. As reformas são como são e as famílias não têm como suportar mais encargos. Este ano, quando todos julgávamos que a pandemia ia dar tréguas e que iríamos ter alguma forma de nos reorganizar, estamos a apanhar com o aumento da inflação e a escalada dos custos dos combustíveis e da energia. E não sabemos ainda bem o que a guerra nos irá trazer.
Que impactos está a ter o aumento dos preços nas instituições?
Está a ser tremendo. Numa reunião que tive recentemente no Norte com um conjunto de provedores, um deles contava que, num acto de boa gestão, tinha mudado o sistema de aquecimento para gás. Pagava 8 mil euros por mês, agora passou para 24 mil. O Estado tem de perceber que, se quer o lar a funcionar, tem de comparticipar. Não há volta a dar. Os parceiros sociais não precisam de ser mais reivindicativos. Têm é de dizer a verdade e de lutar por ela, ou seja, exigir que nos paguem o custo real. É também isso que me cabe como presidente da União das Misericórdias Portuguesas. É importante que, em conjunto, se acerte o custo real da resposta social. O Estado não pode querer pagar o mesmo e exigir como exige. Vai ser um dos grandes desafios desta legislatura.
O novo Pacto de Cooperação para a Solidariedade Social, assinado recentemente, abre caminho nesse sentido?
O pacto social para a solidariedade foi sempre considerado por nós como a magna carta do sector, que regula a nossa relação com o Estado. O anterior, celebrado há 25 anos, era muito genérico. O então primeiro-ministro, o engenheiro António Guterres, disse na altura que o Estado teria de pagar, no mínimo, 50% do custo real das respostas da cooperação e desejavelmente 60%. Mas isso nunca foi cumprido. Por exemplo, em centro de dia o apoio do Estado cobre apenas 25% dos custos e em lar 36%. Fazendo a média de todas as valências, o valor anda pelos 36,4%. Por aqui se percebe bem os problemas de sustentabilidade das instituições. É imperioso que se cumpra aquilo que disse o engenheiro Guterres há 25 anos. Isso ficou agora clarificado no pacto, que definiu também um conjunto de responsabilidades do sector, do Estado e das autarquias. É uma revisitação ao documento original, feita com grande abertura, diálogo e compreensão. Se queremos dispor de um conjunto de respostas sociais, temos todos de cumprir o pacto.
Qual a meta assumida pelo Estado?
O Estado compromete-se a chegar rapidamente aos 50%. Além dos aumentos anuais, tem de pôr mais uns ‘pozinhos’ para atingir essa meta.
A pandemia trouxe também à luz do dia a realidade de um País envelhecido.
Há muito que o sector andava a dizer que o envelhecimento é um problema grave da Europa e muito grave em Portugal. Temos um duplo envelhecimento, porque as pessoas vivem mais anos e temos menos bebés. Portugal é o País que envelhece mais depressa. É um primeiro lugar que não nos interessa de todo. É óptimo que as pessoas vivam mais tempo, mas só vale a pena viverem se lhes conseguirmos garantir qualidade de vida e cidadania, para que se sintam, de facto, protegidas. O Estado tem de olhar, efectivamente, para as questões do envelhecimento. Olhou durante a pandemia, mas tem de manter esse foco. Precisamos de adoptar uma postura de atenção aos idosos e de procura de respostas que correspondam ao novo perfil do idoso.
Como será o lar do futuro?
Será um lar dirigido a pessoas mais dependentes. Quando digo que a meta é manter as pessoas mais tempo em casa, não significa acabar com os lares. Pelo contrário. Chega um momento em que as debilidades são tantas e tão pesadas que a pessoa já não consegue estar no seu domicílio, ou porque tem uma demência ou porque tem uma quase total ausência de mobilidade. Nestes casos, o lar é a solução, mas tem de estar preparado para essas pessoas. Será semelhante a uma unidade de cuidados continuados, mantendo o sentido de lar, de casa. A tecnologia vai permitir coisas fabulosas. Por exemplo, o Skipe ou o whatsapp tiram-nos de casa. Põem-nos na rua. No lar do futuro, por exemplo, as camas terão suporte para computador. E terá de haver um reforço das ajudas técnicas que tornam menos pesado o trabalho dos funcionários.
Defende que no futuro, o pivot do envelhecimento terá de ser o apoio domiciliário. De que forma?
Temos de deslocar o pivot do envelhecimento do lar para o apoio domiciliário, mas este terá de ser mais eficaz e funcionar sete dias por semana. Em muitos casos, o apoio domiciliário ainda funciona apenas de segunda a sexta-feira, numa ideia romântica de que ao fim-de-semana a família toma conta do idoso. Isto é completamente irrealista. É uma ficção da Segurança Social. Alguém que vive em Lisboa e tenha os pais em Bragança não vai ao fim-de-semana tomar conta dos seus entes queridos, por muito que quisesse. A adaptação à realidade obriga-nos a ter mais recursos e a sermos mais exigentes. As instituições não querem ganhar dinheiro com o serviço que prestam, mas não podem perder, porque precisam de pagar aos seus trabalhadores o que eles merecem. E só teremos a qualidade que ambicionamos se pagarmos bem às pessoas. Caso contrário, elas fogem. A falta de mão-de obra é outra das dificuldades com que se debatem as instituições. As instituições que estão no interior têm muita dificuldade em cumprir os rácios exigidos pelo Estado porque não há pessoas. Nos centros urbanos, a principal dificuldade é competir com outros sectores e ter dinheiro para pagar a essas pessoas. Por outro lado, com a Covid-19 ficou muito evidente a necessidade de outro tipo de recursos humanos nos lares, como psicólogos ou nutricionistas.
Que papel terão as famílias na reorganização das respostas sociais que defende?
As famílias não são dispensáveis. O problema da responsabilização das famílias é um problema que ultrapassa muito o sector. É uma questão cultural de uma sociedade, que tem que ver com estilos de vida, mas também com as dificuldades da vida. As sociedades modernas não podem pôr o idoso como uma coisa. São pessoas que têm direitos, que votam. É importante que os políticos percebam isso. Os idosos votarão cada vez mais. A nova geração de idosos que está a chegar aos lares percebe que o voto é quase a única arma de que dispõe. O perfil do idoso institucionalizado é hoje mais culto, mais exigente e mais preparado. O lar do futuro tem de responder a esse desafio.
Na fase aguda da pandemia, alertou para a falta de articulação entre a Segurança Social e o Ministério da Saúde. Houve melhorias? Honestamente, não. Continua a haver falta de articulação entre a Segurança Social e a Saúde. E temos uma evidência na rede de cuidados continuados. Se não houver um acerto de valores nesta resposta, vamos assistir, este ano, ao encerramento de muitas unidades ou à sua transformação em lares.
Por quê?
Não dá para manter o serviço. Já ouvi alguns responsáveis a propor a criação de um grupo de trabalho. Não concordo. Primeiro faz-se o acerto e depois avança-se com o grupo. Dizem que o Ministério das Finanças não autoriza esse acerto ou que o atrasa. O que fazemos? Fechamos? Deixamos morrer as pessoas? Não pagamos aos funcionários o que merecem? Despedimos? Estamos aentrar no domínio do surreal. Como já chega de desmandos no mundo, talvez aqui fosse melhor sentarmonos à mesa e encontrar uma solução para salvar a rede de cuidados continuados, considerada o terceiro pilar do SNS.
Disse recentemente que só agora é o que o SNS está a “acordar” para a realidade de que somos um País de velhos.
Quando se criou o SNS, quase não havia idosos em Portugal. Quarenta anos depois, a pirâmide está invertida e o SNS não olhou como devia para essa mudança. Não é culpa da ministra Marta Temido ou dos seus antecessores. É do sistema. O SNS escamoteou o problema do envelhecimento e continua a escamotear, nomeadamente, com a questão das demências. Não há valor fixado para cuidar de um doente com demência.
Estão anunciadas verbas significativas da designada ‘bazuca’ para a requalificação de equipamentos sociais, mas o sector social tem alertado para a necessidade de rever os critérios de candidatura. Há o risco de as verbas disponíveis não serem usadas?
Estou cada vez mais preocupado. Quando vinha para a entrevista, telefonou-me um provedor a dizer que estava para lançar um concurso, mas que, perante os preços de referência, não ia haver concorrentes. Alguém pôs num papel – e os ministros assinaram – um valor completamente irrealizável. Não vale de nada definir que o preço das obras de recuperação é de 700 euros o metro quadrado, se no mercado não se adjudica nada a menos de 1.300 ou 1.400 euros. Desta forma, a ‘bazuca’ pagará 55% e não os 85% estipulados. O sector, que está a tentar sair de uma crise e com as dificuldades que enfrenta, não tem dinheiro para entrar em obras nessas condições. É meter-se num buraco sem saída. As instituições ou não se candidatam ou desgraçam-se. O meu conselho é que não se candidatem. O problema é que estão entaladas contra a parede pelo Estado, que lhe impõe obras. Concordo que se estabeleça um preço de referência, para que não haja devaneios megalómanos, mas tem de ser um valor justo. É preferível fazer menos, mas bem.
Como vê a recondução da ministra da Segurança Social?
Vejo com muito bons olhos. É uma pessoa bastante activa e interessada e muito sensível, que já conhece o sector e os dossiers. É uma boa parceira.
Como é que o cidadão Manuel Lemos gostava de envelhecer?
Gostava de envelhecer continuando a actuar socialmente e a manter activa a minha cidadania o mais tempo possível. Gostava também de ter tempo para ler e viajar mais. Gosto muito do que faço, porque acredito que sou útil aos outros. E isso é uma boa forma de envelhecer. Mas há-de chegar o momento em que vou perceber – se não perceber já pedi a vários amigos, a começar pelos meus filhos, para que me façam entender – que já não terei capacidade.
Natural do Porto, Manuel Lemos, 72 anos, é licenciado em Direito. Foi deputado, presidente da Administração Regional de Saúde do Porto, chefe de gabinete de Leonor Beleza no Ministério da Saúde, e director do Centro Distrital da Segurança Social do Porto. Desempenhou funções em instituições do sector social, sendo, nos últimos 15 anos, presidente da União das Misericórdias Portuguesas, um cargo que exerce de forma “completamente voluntária”, mas “com muito gosto” É também presidente da Confederação Mundial das Misericórdias e recém-eleito líder da Confederação Portuguesa da Economia Social. “O sector social é um pouco como a Coca-Cola. Primeiro estranha-se, depois entranha-se”, ironiza. Profissionalmente, trabalha como consultor na área jurídica.